Natocracia, ou a cúpula contra a democracia

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Por José Goulão, via ABRIL ABRIL

A «cúpula para a democracia» foi um ato de guerra. Nada teve a ver com democracia, mas com interesses imperiais, coloniais, globalistas e unilaterais.

Mais de cem países juntaram-se virtualmente na «cúpula da democracia» sob a batuta do excelentíssimo democrata Joseph Biden, o atual chefe de um regime que tem por hábito deixar um rastro de mortos, desalojados, refugiados e de destruição sempre que decide «exportar a democracia».

A assim chamada «cúpula da democracia» foi uma espécie de pontapé inicial num ano «de ação para tornar as democracias mais reativas e resilientes», de modo a «impor à Rússia os custos reais das suas violações das normas internacionais» e para formar «uma frente unida contra as ações agressivas e as violações de direitos humanos por parte da China». Ficou então combinado que dentro de um ano haverá uma nova cúpula para «construir uma comunidade de parceiros empenhados na renovação democrática mundial».

Entretanto, como determinou o próprio Joseph Biden, e certamente todos os súditos aceitaram, «os Estados Unidos vão desempenhar o papel de guia para escrever as regras». Consumar-se-á assim, presume-se, a estratégia do regime norte-americano de substituir o direito internacional tal como o conhecemos por uma «ordem internacional baseada em regras» emanadas de Washington. O diktat do império, por assim dizer. Tal como em 1989 aconteceu com o chamado «Consenso de Washington» para impor a selvageria neoliberal como regime econômico único em escala global.

Agora vivemos, por consequência, a era da materialização do bloco que institucionalizará o regime político único, a opinião única e a ideologia única como armas da economia única para impor no todo planetário. Ao contrário da democracia, que é plural por definição, esta «democracia renovada» funcionará no quadro do monolitismo. E ai daqueles que não estiverem de acordo: a democracia tornada «ativa e resiliente» unirá a «comunidade de parceiros» sob o abraço férreo da OTAN [em inglês, NATO] e não tolerará dissidências. A democracia assim reformatada vai emergir – como ordem natural das coisas sentenciadas em Washington – em figurino de OTANcracia.

Escolhas reveladoras

Quem mais poderia ser o maestro deste concerto democrático do que o próprio Joseph Biden – tal como teriam sido a preceito, por exemplo, Reagan, a dinastia Bush, Clinton, Obama ou Trump? Os «valores democráticos» e a «defesa dos direitos humanos» estão «no DNA dos Estados Unidos», proclamou o presidente em exercício para invocar – como se fosse necessário – o direito de escolher os participantes na «cúpula da democracia».

A criteriosa seleção abrangeu governos, representantes da «sociedade civil» e dos setores privados de 111 países. E não haverá nada de mais democrático do que o funcionamento dos setores privados, como todos muito bem sabemos e reconhecemos.

Naturalmente, o núcleo dos privilegiados incluiu a esmagadora maioria dos membros da União Europeia e da OTAN, as democracias frescas e tuteladas dos Bálcãs nascidas da destruição manu militari da Iugoslávia, governos ditatoriais africanos, asiáticos e latino-americanos reconvertidos em «democráticos» por eleições e golpes organizados em Washington e Bruxelas. Enfim, a fina flor dos democratas moldados ao jeito do regime norte-americano.

Não foram convidados, sem surpresa, países como a Venezuela, a Bolívia, o Peru e a Nicarágua. Ninguém, em seu juízo perfeito, irá contestar a opção de Biden em excluir estas nações. É verdade que fazem eleições segundo os mecanismos que Washington determina como inquestionáveis, mas os resultados nem sempre correspondem aos desejados pelos Estados Unidos e os aliados europeus, pelo que assim a democracia não vale.

Um tanto surpreendentemente foram excluídos da cúpula governos como os da Hungria e da Turquia, nascidos de eleições realizadas segundo padrões considerados «legítimos», ao que parece por namorarem agora com formas autocráticas de poder. Isso não impede a Turquia do sultão Erdogan de continuar um firme aliado da «comunidade democrática» dentro da OTAN e de ser um auxiliar imprescindível no apoio militar e financeiro a grupos terroristas e mercenários que os Estados Unidos e a União Europeia sustentam para conduzirem, entre outras frentes, a guerra e o golpe permanente contra a Síria.

E se a Hungria foi excluída, por que não a Polônia, seguramente tanto ou mais autocrática do que o governo de Budapeste – estando ambos de pedra e cal na União Europeia, apesar de alguns sobressaltos e ameaças sem consequências? Porque a Polônia, hélas!, é um pilar de sustentação do regime terrorista da Ucrânia, uma peça chave da pressão «democrática» e «civilizadora» contra a Rússia.

Em compensação, na cúpula estiveram presentes Israel do apartheid e da chacina do povo palestiniano, a Ucrânia onde pontificam nazistas hitlerianos na consolidação do regime reconhecidamente «democrático», além do Brasil do fascista Bolsonaro e o narcoestado da Colômbia recém-associado à OTAN – demonstrando-se assim o quão flexível é a democracia ditada pelo complexo militar, industrial e tecnológico que governa os Estados Unidos como núcleo das práticas imperiais e globalistas. Tão flexível que nela caberia, se estivesse em funções, a ditadura de Pinochet no Chile, instalada pelo Nobel da Paz Henry Kissinger, conselheiro de Joseph Biden e da generalidade dos seus antecessores.

Terão faltado ainda a Arábia Saudita, o Qatar, os Emirados Árabes Unidos e mais alguns, que certamente estarão em espírito fraterno com a “democracia renovada”, sobretudo quando se trata de financiar e participar, por exemplo, das destruições da Iugoslávia, da Síria, do Iraque, do Afeganistão, da Líbia, do Líbano e, com evidência especial, do Iêmen.

São insondáveis os caminhos da democracia tida como legítima e única.

Os juízes da democracia

A iniciativa da «cúpula da democracia» vale sobretudo pela prática e o conteúdo da democracia praticada pelos seus organizadores e também pelos objetivos pretendidos com o evento.

Os promotores deste renascimento democrático «mais reativo e resiliente», quiçá mais agressivo em relação aos que não se enquadram nos padrões definidos em Washington, são simultaneamente democratas por excelência – e de berço – e juízes das práticas democráticas dos outros. O que lhes proporciona o direito, por vezes divino, à maneira dos Estados Unidos, de brandirem um poderoso arsenal de armas corretivas, desde a guerra pura e simples, ao terrorismo e às sanções. Digamos que é um direito democrático inerente o de recorrer a esses instrumentos violentos que sacrificam milhões de pessoas em nome da democracia.

Não cabe aqui ser exaustivo na listagem das malfeitorias praticadas e incentivadas pelos Estados Unidos sob o pretexto da defesa dos direitos humanos e dos valores democráticos. Mais de 30 golpes de Estado organizados ao longo das últimas décadas em África, Ásia, Europa e América Latina; milhões de mortos, deficientes, desalojados e refugiados em consequência de dezenas de conflitos suscitados pelos interesses imperialistas; multiplicação de invasões e guerras de agressão baseadas em narrativas deturpadas e argumentos falsos; o recurso a grupos terroristas de todos os matizes, desde fundamentalistas islâmicos como a al-Qaida e o Isis ou Estado Islâmico, a organizações mercenárias e grupos nazistas – veja-se o exemplo recente da Ucrânia – passando por esquadrões da morte; a utilização de redes e lucros do narcotráfico para financiamento de atividades golpistas, terroristas e de subversão, como as chamadas «revoluções coloridas», são exemplos das práticas comuns dos Estados Unidos onde e quando acham que é necessário, onde quer que seja no mundo, para salvaguardarem os seus direitos «democráticos».

As invasões do Afeganistão e do Iraque, a destruição da Líbia numa aliança assumida entre a OTAN e grupos terroristas ditos islâmicos, as guerras da Iugoslávia, da Somália, da Síria e do Iêmen, a entrega de territórios a organizações mafiosas e de terror, como no Kosovo, o golpe na Ucrânia que levou ao poder organizações paramilitares que se reclamam da herança de Hitler – treinadas por oficiais da OTAN – são exemplos recentes do que é a democracia nas mãos das instituições militares, econômico-financeiras e políticas dos Estados Unidos.

A União Europeia não foi diretamente promotora da cúpula mas funcionou, obviamente, como facilitadora, interveniente e apoiante entusiasta da iniciativa pois, quando se trata de «valores democráticos» e de «direitos humanos», a comunidade dos 27 pede atrevidamente explicações aos mais democratas de todos, os aliados norte-americanos.

Conhecemos bem, até na pele e na bolsa, as proezas de que a democracia da União Europeia é capaz, como as tutelas da troika, a austeridade para quase todos e a abundância limitada a uns quantos, as guerras e invasões a reboque dos Estados Unidos e da OTAN, a ganância colonial, a asfixia da soberania dos Estados-membros e das decisões por eles tomadas de acordo com práticas pelo menos formalmente democráticas.

Aliás, como poderia ser de outra forma? A União Europeia não é uma organização democrática. A instituição que gere o seu funcionamento regular, a Comissão, não é eleita; a maioria dos Estados-membros integraram a comunidade sem que os seus povos fossem consultados; o Parlamento Europeu não tem poderes que lhe permitam influenciar de forma determinante as decisões no nível da União; o Banco Central Europeu, dotado de um poder absoluto, não é eleito; os Parlamentos nacionais, eleitos segundo mecanismos democráticos, estão submetidos em questões de fundo, como as orçamentárias, aos poderes e decisões das instituições não eleitas de Bruxelas. Além disso, de maneira absolutamente clandestina, a União Europeia caminha para o federalismo à revelia e na ignorância dos povos dos Estados-membros.

Das práticas «democráticas» da União Europeia fazem parte a guerra contra os refugiados resultantes de conflitos armados e do colonialismo pelos quais a comunidade é responsável. Essa guerra contra os refugiados é conivente com a construção de muros, a exemplo dos Estados Unidos, a perseguição e a violência nos mares contra pessoas que procuram garantir a subsistência, no mínimo a própria sobrevivência. Não hesitando a União Europeia, no quadro dessas ações desumanas, em financiar campos de concentração, de tortura, extorsão e morte de refugiados, por exemplo na Líbia.

Em relação à destruição da Líbia, na qual os Estados Unidos incumbiram a União Europeia da parte operacional da guerra, poderosos Estados desta comunidade não hesitaram em aliar-se com terroristas ditos islâmicos, que aí ganharam alento e condições para se expandir depois na direção do Sahel e da África Central. Onde agora o aparelho militar colonial da União Europeia diz combatê-los enquanto assegura a rapina dos preciosos recursos naturais existentes nessas regiões.

E que dizer da democracia formal praticada na generalidade dos Estados-membros da União, onde o espetáculo da pior qualidade substitui o esclarecimento dos eleitores, o marketing destrói as mensagens políticas, a mentira pesa mais na caça ao voto do que o debate de ideias sobre a vida das pessoas, a comunicação social dominante influencia e manipula a decisão dos eleitores de acordo com os interesses dos setores econômicos e financeiros que a detêm? Sendo que, depois disso, a esmagadora maioria dos representantes eleitos atuam como portadores de um cheque em branco que usam como entendem e sem ter de prestar contas a quem os elegeu.

Ao contrário do que tantas vezes se repete, não estamos perante as «imperfeições» da democracia, mas sim ao sabor da deturpação, do aviltamento e do sequestro dos valores democráticos pelas classes dominantes e proprietárias. Para isso e para afastar deliberadamente os cidadãos da participação democrática é que nasceu a «classe política», essencial para esvaziar e desacreditar a política.

Guerra fria

A chamada «cúpula da democracia» foi também uma tentativa de dar mais um passo na implantação de uma nova guerra fria, agora entre a «comunidade de parceiros» à disposição dos Estados Unidos e o conjunto dos países cercados e ameaçados pelo poder global da OTAN, alicerçado em mais de 800 bases militares dispostas através do planeta. É a guerra fria entre o globalismo neoliberal e países que têm vida própria e independente mesmo que, em alguns casos, sejam eles próprios fiéis ao neoliberalismo; uma guerra fria entre o unilateralismo praticado pelos Estados Unidos e imposto aos seus aliados e parceiros e o multilateralismo que funciona como uma bandeira comum à Rússia, à China e a muitas outras nações, especialmente do Sul planetário.

Uma guerra fria que vai aquecendo à medida que ganham intensidade os dispositivos militares, os jogos de guerra e as declarações provocatórias no quadro do cerco e da perseguição à Rússia e à China. É um fato facilmente comprovável, apesar da pressão brutal dos meios de manipulação social, que Pequim e Moscou não têm intenção – pelo menos até agora – de atacar qualquer país. Mas Washington e Bruxelas não descansam nas suas barreiras de propaganda: a Rússia prepara-se para atacar a Ucrânia, garantem contra todas as evidências. E a China espezinha os «direitos democráticos» em Hong Kong, Taiwan, no Tibete e persegue as minorias no Xinjiang.

Acusações proferidas, com arrogância autoritária, por países que mudam regimes e governos de outros quando as circunstâncias não se acomodam aos seus interesses transnacionais; que raptam e sequestram dirigentes políticos de países terceiros; roubam ouro e outros bens soberanos de nações independentes, impõem sanções, fome e doenças contra povos que escolhem governos «errados»; patrocinam e praticam a tortura, perseguem e deixam morrer refugiados, dão largas à xenofobia, ao racismo e ao fascismo; criam, financiam e chegam a utilizar prisões e campos de concentração montados além-fronteiras, quantas vezes clandestinamente.

No início da década de 90 do século passado, o presidente norte-americano William Clinton garantiu verbalmente a Moscou que a OTAN não iria expandir para Leste e deslocar-se em direção à Rússia. Pouco tempo depois, a aliança agressiva ocidental engolira praticamente todos os anteriores membros do Tratado de Varsóvia. E agora pretende integrar a Ucrânia, uma linha vermelha definida por Moscou sem deixar lugar a dúvidas. Clinton e todos os seus sucessores mentiram – nada mais natural uma vez que a mentira é uma arma inerente à maneira como praticam a democracia. A sua palavra vale tanto como o seu tão proclamado respeito pelos direitos humanos.

A «cúpula da democracia» foi um ato de guerra. Nada teve a ver com democracia, mas com interesses imperiais, coloniais, globalistas e unilaterais. Ficando assim provado que, ao jogarem abusivamente com o conceito de democracia, os promotores e principais apoiantes da cúpula não estão minimamente preocupados com a aplicação plena dos conceitos democráticos – para que se cumpra o poder do povo –, mas sim com os interesses próprios das elites financeiras e econômicas transnacionais.

Usar a democracia como pretexto e cobertura para ações nocivas que afetam milhões e milhões de pessoas é a violação mais grave da própria democracia.