Abortamento clandestino na realidade brasileira

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Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro – Santa Maria/RS

Por que lutamos pelo aborto seguro, legal e gratuito?
Por que é uma questão de saúde pública?

Alerta de gatilho: este texto possui conteúdo que pode ser sensível

Vivemos sob uma estrutura machista e patriarcal, o que significa que temos todo um sistema que abrange o senso comum, os costumes, as leis, etc. Que interfere em todas as relações sociais. É preciso que se tenha noção dessa grande estrutura na qual estamos inseridas para que possamos ver de forma objetiva contra o que estamos lutando.

Apesar de vivenciarmos situações de machismo e as violências de gênero no nosso dia a dia, não podemos limitar nossa luta e indignação contra este ou aquele indivíduo. É preciso mais! Vivemos em uma sociedade capitalista, onde o lucro vale muito mais que a vida e os interesses econômicos baseiam as decisões que envolvem todas nós. Direitos humanos básicos, direitos trabalhistas ou nosso direito à aposentadoria, por exemplo, são todos ponderados e decididos com base no que dá mais lucro para os já tão ricos e poderosos.

Quando falamos em direitos reprodutivos das mulheres, isto não é diferente. A liberdade de poder decidir sobre o próprio corpo não é um direito assegurado para nós. Um país onde suas casas legislativas são constituídas por homens cis, heterossexuais, brancos e ricos e que tais legislam para defender os direitos de seus semelhantes. Legislação essa que trata o aborto com leis de 1940, com 82 anos de defasagem para abordar esse tema central na saúde sexual e reprodutiva das mulheres e pessoas com útero no Brasil.

Um país que se diz laico em sua constituição, mas que seu Estado burguês exerce estrito controle ideológico religioso na sociedade, principalmente sobre as populações mais vulnerabilizadas. Um país que tem um sistema de saúde para ricas e outro para pobres, onde essas mulheres ricas abortam em clínicas clandestinas privadas, com um certo grau de segurança ou viajam para o exterior (já que só é crime em território nacional) em comparação às pobres que abortam e morrem nos fundos de quintais, clínicas baratas ou nas mãos de profissionais desqualificados, sendo submetidas à todo tipo de tortura física, psicológica e à toda sorte de situações degradantes. País este onde assuntos de saúde pública são regidos pelo moralismo religioso, o patriarcado e a misoginia. Esse é o Brasil!

Complicações por abortamento clandestino oscilam entre a quarta e quinta causa de mortalidade materna no Brasil. Uma mulher morre a cada 2 dias. Por se tratar de uma prática proibida que se faz clandestinamente, esses números provavelmente estão subnotificados. Temos pouquissímas situações permitidas para aceder a um aborto legal no Brasil:

1. Quando a gravidez é decorrente de estupro
2. Quando há risco de morte para a mulher
3. Na condição de feto anencéfalo.

Muitas vezes, mesmo as gestantes que se encaixam nessas possibilidades encontram grandes dificuldades para ter seu direito garantido.

Mas o que é um aborto inseguro? É um procedimento para interromper uma gravidez não desejada, realizado por pessoas que não têm as habilidades necessárias ou em ambientes que não cumprem com mínimos requisitos médicos, ou ambas condições.

Panorama mundial: A OMS estima que se realizem 25 milhões de abortos no mundo, 97% deles em países em desenvolvimento, onde a maioria criminaliza a prática. Desses 25 milhões se estima 43 mil mortes, totalmente evitáveis por ano. A lei brasileira penaliza a prática em dois artigos do código penal. Sim! No Brasil mulheres são presas por abortar. Mas quem são essas mulheres presas por abortar no Brasil?

Podemos dividir em dois grandes grupos:

Grupo 1: Mulheres processadas pela conduta de provocar o aborto em si mesma (Art. 124 do CP), com pena de detenção de 1 à 3 anos. A maioria negras (pretas ou pardas), com ocupações que, em sua maioria, evidenciam sua situação de pobreza (garota de programa, salgadeira, faxineira, auxiliar de cozinha, manicure etc.), que residem em áreas periféricas de suas cidades (favelas na capital ou outras áreas empobrecidas no interior), 80% delas já têm filhos, e o tempo gestacional à época da interrupção é superior a três meses.

Grupo 2: Na sua maioria são mulheres processadas em virtude de investigação policial das clínicas clandestinas de aborto, os camados “estouros de clínicas” (Art. 126 do código penal: Provocar aborto com o consentimento da gestante), com pena de reclusão de 1 a 4 anos. Neste grupo predomina a cor branca em 53% dos casos, gestação inferior a 12 semanas, com índice de escolaridade superior ao grupo de mulheres que se submeteu a métodos caseiros de interrupção da gestação, o grupo de mulheres flagradas em clínicas clandestinas de aborto não experiencia uma situação de pobreza tão drástica quanto as do Grupo 1.

Quem são as mulheres mortas por abortar no Brasil?

Na sua grande maioria mulheres negras, pobres, periféricas, faveladas, com baixa escolaridade, que já são mães e submetidas a empregos precários. São elas as que passam por todo tipo de violência obstétrica, passando por curetagem sem anestesia, tendo seu direito ao sigilo médico quebrado, algemadas à macas hospitalares e incriminadas por não terem condições de colocar mais um filho no mundo e acabam morrendo vítimas de complicações causadas por procedimentos medievais.

Penalização do aborto e capitalismo

Um dos fatores que corrobora para essa normatização contrária ao acesso ao abortamento legal, seguro e gratuito, são os interesses socioeconômicos de cada país. Sendo assim, enquanto nos países da periferia do capital que se encontram na América do Sul, Ásia e África têm como papel a produção de mão de obra para enriquecer o capital, além dos baixos índices educacionais e forte predominância religiosa, imperam as leis proibitivas ao aborto, já os países chamados desenvolvidos, caminham no sentido contrário e têm legislações cada vez menos restritivas, obviamente com muita luta dos movimentos feministas essas leis foram conquistadas.

Percebe-se que a ilegalidade está diretamente ligada à opressão religiosa e desigualdade socioeconômica. Penalizar o aborto, além de ser um retrocesso dos direitos humanos, envolve questões puramente moralistas, misóginas, patriarcais, raciais e aporofóbicas.

Panorama socioeconômico e racial do abortamento no Brasil

A brutal desigualdade social brasileira, empurra as mulheres e pessoas com útero para a clandestinidade. Essas mulheres pobres abortam nos fundos de quintais, clínicas baratas, com pessoas desqualificadas, utilizando métodos caseiros como chás abortivos, agulhas de tricô, aros de bicicleta, talo de mamona, etc.

Recebem tratamentos degradantes e torturantes, sofrem todo tipo de dor, sofrimento, mutilações, opressões psicológicas e físicas, o que acaba gerando infecções, hemorragias, perfurações uterinas e abortos incompletos que podem levar à morte. Quando essas mulheres acabam se vendo obrigadas a procurar o sistema de saúde, sofrem violência obstétrica.

O que é a violência obstétrica no abortamento?

Caracteriza-se por: negativa ou demora no atendimento da pessoa em situação de abortamento, questionando-a quanto à causa do abortamento (se intencional ou não), realização de procedimentos predominantemente invasivos, sem explicação nem consentimento, e frequentemente sem anestesia, com ameaças, acusações e culpabilização desta mulher e coação com finalidade de confissão e denuncia à polícia.

O Ministério da Saúde calcula que, em 2016, houve 123.321 internações por complicações de aborto clandestino, o que gera uma sobrecarga no sistema de saúde. Muitas das mulheres que acabam no SUS têm seu sigilo médico/paciente quebrado, o que é crime, e são encaminhadas à serviços policiais acabando algemadas nas macas de internação e posteriormente respondendo por processos criminais.

As mulheres em situação de vulnerabilidade dificilmente têm acesso à políticas de planejamento familiar, mesmo que elas sejam oferecidas pelo SUS, seja por desconhecer seus direitos ao acesso à saúde sexual e reprodutiva de forma gratuita, seja por tabus socioculturais e religiosos, ou seja pela distância desses serviços de seus locais de moradia entre outros motivos. Essas políticas não atingem as mulheres pobres, periféricas de centros urbanos, nem as de zonas rurais.

A falta de acesso à saúde é um dos grandes agravantes para a morbimortalidade materna por abortos inseguros. Somos revitimizadas pelo racismo e sexismo institucionais. Também se percebe que, quanto menor o grau de instrução dessas mulheres, maior a taxa de mortalidade, pois mais primitivos são os métodos utilizados para findar a gravidez indesejada.

A maioria das mulheres que terminam presas ou que vão à óbito, são mulheres negras ou indígenas, o que evidencia o racismo estrutural arraigado na sociedade brasileira. Já que nas periferias do capital, como no Brasil, a população negra sofre todo tipo de opressão sistemática e, obviamente, a que mais sofre é a mulher negra, que sofre opressões patriarcais, raciais e de classe ao mesmo tempo.

Vemos então que a ilegalidade só serve para punir as mulheres por ousarem questionar seus lugares pré estabelecidos pelo patriarcado. Elas sofrem em isolamento e silêncio. São violadas sua autonomia, integridade física e psíquica, os direitos sexuais e reprodutivos, e a igualdade de gênero. Viola-se também o exercício à cidadania e a dita laicidade do Estado burguês.

Direito a aborto legal, seguro e gratuíto é direito à vida!

A criminalização também dá lugar a um mercado ilegal de remédios abortivos como o Cytotec (misoprostol), que é vendido a preços exorbitantes no mercado ilegal, negando o acesso das mulheres pobres inclusive à esse método ou então, as que podem aceder à ele muitas vezes não têm o dinheiro suficiente para comprar a dose necessária e acabam com abortos incompletos e complicações que podem ser letais.

Isso também dá lugar a clínicas clandestinas que chegam a cobrar 5 mil reais por procedimento. Percebemos que a indústria do aborto clandestino é muito rentável para algumas pessoas.

Machismo, misoginia, religião e patriarcado

A criminalização do aborto está visceralmente ligada ao estabelecimento de relações de poder entre homens e mulheres. Sabemos que o Estado liberal democrático se constitui na desigualdade de gênero. Além disso, há o controle ideológico religioso da sociedade brasileira mesmo o Brasil sendo um Estado declaradamente laico. A dita laicidade que só existe na teoria.

O Estado burguês ainda cede à fé, crenças, opiniões pessoais e tradições que conferem atributos metafísicos ao embrião. Surgem propostas de lei nefastas com o “Estatuto do nascituro” e o “Bolsa estupro” ou a PEC 181 de 2015 do então senador Aécio Neves, que declarava “vida” desde o momento da concepção.

O que dizem os/as ginecologistas brasileiros/as?

Segundo uma pesquisa da FEBRASGO (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) realizada com mais de 10 mil ginecologistas: < de1% dos profissionais gostaria que o aborto fosse proibido em todos os casos. 60 a 80% gostaria que a lei fosse pelo menos mais aberta. 16 a 18% gostaria que fosse descriminalizado em todos os casos. Mas parece que esse 1% fala como se fossem todos.

Um dos argumentos usados pelos contrários a despenalização e legalização do aborto são os gastos que o sistema público de saúde supostamente teria para realizar os procedimentos. Argumento este que não tem fundamento algum, já que os gastos, calculados em 500 milhões de reais nos últimos 10 anos para tratar as complicações dos abortamentos clandestinos, são infinitamente maiores do que o necessário para realizar estes procedimentos dentro da legalidade em um ambiente seguro e com equipes multidisciplinares para brindar um atendimento digno à essas mulheres.

O abortamento sempre existiu, existe e seguirá existindo. A pergunta que deve ser feita é: quem morre ou é mutilada na clandestinidade? Criminalizar não faz com que as mulheres não abortem, só colabora para aprofundar a brecha gigantesca entre pobres e ricas.

Portanto, o nascituro não pode ser entendido como uma pessoa titular de direitos da mesma forma que os que já nasceram, e as mulheres não podem ser submetidas à maternidade compulsória imposta pelo capitalismo misógino e patriarcal. Temos autonomia sobre nossos corpos, e mais do que isso, temos direito à uma vida plena e saudável. Não podemos ficar à mercê da bancada da Bíblia.

Uma mulher não é um útero a serviço da sociedade. Precisamos tirar o manto de vergonha e hipocrisia que cobre o tema do aborto na sociedade brasileira. A criminalização não elimina a prática, só submete mulheres a sequelas físicas, psíquicas e sociais, quando têm a sorte de não perder a vida.

Precisamos despenalizar e legalizar o aborto em todas as situações, até as 12 semanas se podem usar métodos relativamente simples, rápidos e muito seguros, como o misoprostol e a Amiu (aspiração manual intrauterina). É urgente investir em educação sexual integral, massiva, laica, e em programas de planejamento familiar de qualidade que abarque todo o território nacional.

Esperamos que exemplos recentes como o da Argentina e do México, países profundamente religiosos e que, depois de muita luta dos movimentos feministas, conseguiram conquistar o direito ao aborto legal, seguro e gratuíto, nos sirvam de inspiração para seguirmos de pé lutando por nossos direitos sexuais e reprodutivos.

México

No México a regulamentação sobre aborto é descentralizada, ou seja, é definida por estado. No entanto, desde setembro do ano passado, devido a uma decisão histórica e unânime da Corte de Justiça do México, o aborto foi descriminalizado. Essa decisão abre um precedente importantíssimo para a descriminalização nos demais estados. Os juízes da Suprema Corte entenderam que o aborto não é crime invalidando uma parte do Código Penal do estado de Coahuila. O aborto é considerado ilegal em 28 dos 32 estados mexicanos. Nos 4 estados onde é permitido, as mulheres podem interromper a gravidez nas primeiras 12 semanas de gestação.

Argentina

Depois de apresentado 8 vezes, sob o lema “Educação sexual para decidir, anticoncepcionais para não abortar e aborto legal para não morrer”, a prática foi despenalizada e legalizada em todo o país a partir das 12 semanas de gestação. Após décadas de luta massiva dos movimentos feministas e de muita pressão ao governo de Alberto Fernández, que havia prometido em campanha para a presidência, se aprova a lei.

Campanhas como a “Campanha nacional por el derecho al aborto legal, seguro e gratuíto”, “Ni una menos” e o anual “Encuentro nacional de mujeres” foram cruciais para a conquista desses direito pelas hermanas. Seguindo os exemplos de luta dessas mulheres e dissidências que lutaram incansavelmente para que o aborto legal se tornasse uma realidade é que fazemos dessa nossa bandeira.

O CFCAM exige ABORTO LEGAL SEGURO E GRATUITO!

JUNTE-SE A NÓS NESSA LUTA!

Feminismo classista, futuro socialista!