“Uma psicóloga que entrelaça clínica e política.”

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Entrevista com Marianna Rodrigues para a Revista Quitinete

Entrevistador: Matheus Alves de Oliveira, militante no Núcleo da UJC no Instituto Federal de Goiás

Apresentação: Mari Rodrigues, 28 anos, atualmente sec. nacional de movimento LGBT do PCB e também integrante da Coordenação Nacional do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro. É psicóloga clínica e pesquisadora na área de estudos feministas e diversidade sexual e de gênero.

(Revista Quitinete) – Como se deu a sua militância dentro do Movimento Estudantil e LGBT?

(Marianna Rodrigues) – 1. Como comecei na militância do movimento estudantil e LGBT: Comecei a envolver-me com política ainda na adolescência, isto é, por idos de 2006. Fiz parte da fundação do Grêmio Estudantil da minha escola e também fui cônsul adjunta juvenil do meu clube de futebol, o Grêmio. No entanto, naquela época minhas posições políticas eram reflexo de uma formação cultural bastante conversadora, especialmente devido ao contexto em que se deu parte da minha trajetória escolar: em São Borja, uma cidade da fronteira oeste do Rio Grande do Sul rodeada de latifúndios.

O futebol me acompanha desde criança e posso dizer que foi através dele que encontrei os primeiros sentidos da minha militância, afinal, por ser mulher e jogar bola acabamos sendo alvo de muito preconceito. Meu corpo e meu estilo eram muito diferente daquilo que se esperava para as gurias da minha idade, e, assim como outras gurias que jogavam “como guris”, era comum ser chamada de “machorra”, “fiona”, “macaca”, enfim, adjetivos com a intenção de ofender nossa expressão de gênero. Aos poucos fui percebendo que aquela formação política conservadora não tinha nada a ver comigo, e, com a ajuda de alguns movimentos de contracultura da cidade, fui tomando conhecimento de leituras e experiências mais críticas.

De fato, minha primeira experiência na militância LGBT+ foi um grupo de extensão vinculado ao Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (SAJU) da UFRGS, o G8-Generalizando, no qual ingressei ainda no primeiro ano de faculdade, em 2012. Além de assessorar mulheres em situação de violência, esse grupo deu início a um projeto histórico chamado “Direito à Identidade: Viva Seu Nome”, reivindicando alteração de registro civil para pessoas trans e travestis e denunciando a patologização da transexualidade. Também participávamos da articulação das Paradas Livres e inúmeras ações ao lado dos movimentos LGBTs e feministas da cidade. Foi uma atuação extraordinária que transformou minha forma de ser e ver o mundo, sem dúvidas.

Através do SAJU/UFRGS comecei a entender mais do movimento estudantil, seja participando de encontros da RENAJU (Rede Nacional de Assessorias Jurídicas Universitárias), seja participando de encontros da FENED (Federação Nacional de Estudantes de Direito). Vivi as jornadas de junho de 2013 como “militante independente”, e foi quando decidi organizar-me em um Partido. Muitas coisas importantes aconteceram em 2013, mas o excesso de autonomismo que, para mim, em muito se confundia com individualismo; além de um apartidarismo reacionário, expresso nas inúmeras manifestações em que se pedia para abaixar bandeiras, foram duas das principais razões para a tomada de Partido. Eu não conseguia conceber que as poucas liberdades democráticas conquistadas na democracia das elites brasileira poderiam ser tão facilmente desprezadas. Aí se inicia minha militância no PCB – o Partido Comunista Brasileiro, ou popular Partidão.

Durante a faculdade, ainda, fiz parte de Centro Acadêmico, Diretório Central de Estudantes e fui delegada de Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE). Hoje, sou diretora da Associação Nacional de Pós-Graduandos/as (ANPG).

2. Relação com o movimento LGBT

Os mutirões em parceria com a ONG Igualdade de Travestis e Transexuais; as Paradas Livres ao lado de diversos movimentos sociais como a ONG SOMOS, o Nuances; as marchas pela visibilidade lésbica e bissexual, enfim, esses são apenas alguns exemplos da grande rede de atuação do movimento LGBT em Porto Alegre, que certamente fazem parte da minha trajetória.

Desde que passei a entender mais da luta desses movimentos, tentei trazer um pouco do que aprendia para os demais locais onde eu circulava, como na formação em Psicologia, que não proporcionava estágios com recorte em diversidade sexual e de gênero. Ao lado de duas colegas, construímos um projeto para poder desenvolver-nos na temática, que consistia em oficinas sobre diversidade nas escolas da rede pública. Atualmente, é dessa constatação da falta de espaços para escuta e acolhimento para pessoas LGBT+s, que demos início à Clínica @psi.aquarelas, meu atual local de trabalho.

Ainda no que diz respeito à vida profissional, sou doutoranda em Psicologia Social e Institucional (UFRGS, onde desenvolvo a pesquisa com este recorte, e faço parte do Sistema Conselhos de Psicologia. Destaco a participação no Conselho, porque através dele integro o GT de diversidade sexual e de gênero do Conselho Federal de Psicologia e o Comitê Estadual de Combate à Tortura, ambos os espaços com importantes contribuições para o movimento.

(Revista Quitinete) – Trajetória muito interessante e instigante. Na sua resposta percebesse que sua militância está estritamente ligada ao movimento estudantil, tendo uma participação fundamental em sua formação política. Então gostaria que você me falasse sobre a importância de se organizar e engajar-se em algum movimento estudantil. Qual mensagem você deixa para os estudantes de história de todo o Brasil sobre isso, a importância do movimento estudantil na formação política e humana do estudante

(Marianna Rodrigues) – O movimento estudantil não foi o meu único local de atuação nesses anos todos, mas certamente ele teve uma grande centralidade. É curioso, na verdade, porque antes de compreender a importância do ME, eu fui muito crítica ao que se considerava “movimento estudantil tradicional”. Principalmente, essa crítica vinha das extensões populares e, mais precisamente, no meu caso, das assessorias jurídicas populares (AJUPs). O que percebíamos é que parte do ME afastara-se demasiadamente dos movimentos populares, das comunidades, de um projeto societário, e transformara-se em algo mecânico e pragmático. Nas eleições para entidades de representação, por exemplo, não é incomum disputas em que “vale tudo por um voto”, sem nenhuma preocupação com os processos de consciência, com as disputas ideológicas ou qualquer tipo de debate mais profundo sobre o papel da educação e da produção de conhecimento. Delegados fantasmas, diretores ociosos, enfim, uma série de condutas que para atuação junto aos movimentos populares são tremendamente incabíveis, além de produzirem muito desencantamento em quem chega no ME com sede de mudanças, com indignação, com rebeldia. Porém, por um lado, hoje eu não faço mais essa cisão entre movimentos, ou seja, compreendo que todas as lutas das extensões populares são também parte do movimento estudantil, e vejo o quanto essa diferenciação pode ser uma certa zona de conforto para não realizar determinados enfrentamentos; e, por outro, mesmo neste tal de “movimento estudantil tradicional”, reconheço que tive aprendizagens extraordinárias.

Houve um momento muito específico que me levou a superar essa cisão e compreender a importância dessas diferentes formas de atuação estudantis: na explosão de ocupações de escolas e Universidades. Ali foi um primeiro momento na minha trajetória em que esse grande coletivo que é o ME se encontrou por dia e mais dias, realizou grandes assembleias, dividiu-se em GTs para partilhar a comida e a limpeza, integrou-se em toda a sua pluralidade e tentou organizar-se em uma direção comum. É lógico que houve disputas de perspectivas políticas, de estratégias, assim como houve brigas e muitos outros desgastes. Ainda assim, foi um salto de qualidade nas experiências das quais eu havia feito parte, porque a educação brasileira foi colocada em questão, isto é, fez-se uma disputa ampla e aberta sobre o lugar da educação no futuro do país. Infelizmente, diante de uma conjuntura totalmente desfavorável, esse movimento conseguiu pouquíssimas vitórias, e temos visto a educação brasileira de caráter público, gratuito e de qualidade descer ladeira abaixo. De forma alguma essa memória serve para desestimular-nos, mas sim para desafiar-nos a entender os limites daquilo que construímos até então, e quem sabe desenvolvermos uma nova geração de militantes com ainda mais disposição e ousadia para transformar essa difícil realidade na qual nos encontramos, qual seja, em meio ao avanço brutal das mazelas do capitalismo, com índices cada vez mais elevados de desigualdade, evasão, violência.

Precisamos olhar para a história do movimento estudantil brasileiro, desde a campanha “o petróleo é nosso” da UNE, passando pela defesa das liberdades democráticas nos anos de chumbo, até as mais recentes lutas pelas ações afirmativas, acesso universal e as devidas condições de permanência, bem como contra o fechamento de escolas públicas, enfim, para que possamos compreender por que nos movimentamos. Afinal, fazer parte do ME é superar a lógica de que estudamos apenas para construir uma carreira, um currículo, uma trajetória “individual”: trata-se de assumir uma postura de solidariedade e coletividade. Trata-se de conciliar a semana de provas com os marmitaços em defesa do RU; de escrever o TCC em meio às calouradas; de ocupar a Universidade ainda que isso seja um risco para a formatura. Em resumo, quero dizer que não é fácil fazer movimento estudantil, mas, além de necessário, tende a ser uma transformação muito radical de quem somos.

R.Q.: Quais são os limites de atuação que você encontra na clínica e o que você poderia destacar acerca dos sofrimentos das pessoas LGBT?

M.R.: Bem, inevitavelmente todos esses percursos fazem parte do que hoje me tornei profissionalmente: uma psicóloga que entrelaça clínica e política. Do ponto de vista teórico, oriento-me pelo materialismo histórico e dialético, mas com enfoque em diversidade sexual e de gênero. Sou uma entusiasta da rede de atenção psicossocial, embora hoje diante do desmonte e do congelamento de gastos seja bem difícil trabalhar no setor público. Por isso, grande parte dos profissionais da psicologia, como eu, desenvolvem a clínica no âmbito privado. Há muitos limites no nosso trabalho, especialmente pensando no público LGBT+.

Por exemplo, jovens trans que estão em sofrimento porque são ameaçadas de despejo pelas próprias famílias se não adequarem às normas da cisgeneridade: estão em sofrimento pela sua “condição trans”? Certamente não. Estão em sofrimento devido à discriminação social, bem como à falta de política social de moradia e geração de renda, já que parte do problema poderia resolver-se se a desigualdade não fosse tão grande no Brasil a ponto de não se ter um teto para viver. Então muitos jovens trans estão em casa, em profundo sofrimento psíquico, pois não podem viver a própria expressão de gênero devido ao conservadorismo presente em inúmeras famílias. O mesmo pode acontecer no que diz respeito à sexualidade de pessoas lésbicas, bis, gays. Alguém pode tentar contrapor: “ah, mas e por que não buscam um emprego e conquistam sua própria independência”? Basta olhar os índices de desemprego para a juventude, e fazer o recorte LGBT nessa estatística. Como disse acima, este é apenas um exemplo para mostrar os limites do meu trabalho. Agora, é justamente nesses momentos que vêm à tona algumas das lições do movimento estudantil. Os trabalhos que pudemos acompanhar em assentamentos do movimento sem-terra, em ocupações urbanas, ou mesmo dentro da Universidade, como nas casas de estudantes e RUs, demonstram que não há outro caminho senão a luta coletiva, popular, e que caminhe no rumo de uma transformação radical da sociedade, para que possamos combater situações como essas. Por fim, como psicóloga e, atualmente, secretária nacional de movimento LGBT do PCB, acredito que uma das principais tarefas nesse sentido é articular diversidade, políticas de cuidado e, impreterivelmente, a superação do capitalismo como modo de produção dominante.