Estado terrorista de Israel prossegue limpeza étnica na Palestina

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Por José Goulão, Via ABRIL ABRIL

[Uma violenta carga policial à saída do Hospital de São Luís dispersou a multidão que acompanhava o funeral da jornalista Shireen Abu Akleh, assassinada quando cobria uma ação repressiva das tropas israelitas em Jenin, na Cisjordânia, e não poupou os palestinos que transportavam o féretro, cuja queda esteve iminente. Jerusalém, 13 de Maio de 2022. Créditos: Ahmad Gharabli / AFP]

O fuzilamento de Shireen Abu Akleh

A primeira vez que estive em Jenin, na parte norte da Cisjordânia ocupada por Israel, foi em fevereiro de 1988, já lá vão 34 anos. Vivia-se então o início da chamada primeira Intifada ou a «revolta das pedras», o levante popular palestino que era já um sinal inequívoco de que o epicentro da resistência à ocupação tendia a deslocar-se para o interior dos próprios territórios ocupados.

Depois de uma explosão social na cidade de Gaza, inesperada pela dimensão, a intensidade e a espontaneidade da resposta popular a um atropelamento mortal de várias pessoas por um veículo conduzido por um colono israelita, a multidão começou a arremessar pedras ao dispositivo militar destacado para reprimir o movimento; o episódio funcionou como a gota que transbordou o cálice, o escape para tanta humilhação acumulada, o rastilho que incendiou a revolta até então contida. E não mais parou. Os soldados responderam às pedras disparando balas reais, fuzilando a eito, mas isso não impediu que os focos de inconformismo ativo se espalhassem em poucos dias por todos os territórios palestinos ocupados, de Gaza a Jerusalém Leste, de Jenin, Nablus a Hebron passando por Ramallah e Belém, aldeias e vilas ao longo desses caminhos milenares.

Pela primeira vez, talvez única até agora, meios corporativos de comunicação e alguma opinião pública tiveram contato com uma realidade do problema israel-palestino para lá da versão oficial do «terrorismo» árabe ameaçando a «segurança» do Estado de Israel. Afinal, balas contra pedras, tanques contra crianças, mortes de um lado e arranhões do outro incomodaram temporariamente algumas consciências e forçaram dirigentes ocidentais a sair episodicamente, em palavras, da sua cumplicidade institucional com o Estado de Israel.

Uma notícia com destaque no jornal Haaretz levou-me nesse dia até um subúrbio de Jenin: como resposta ao arremesso de pedras por garotos de uma escola, os soldados israelenses tinham enterrado vivos três dos perigosos «terroristas», com idades entre os nove e os 12 anos. Na verdade fora um sepultamento temporário, consumado com o auxílio de um bulldozer, uma cerimónia sádica de intimidação, coação e terror que fazia jus à política de «quebra-ossos» decidida pelo primeiro-ministro Isaac Rabin contra os responsáveis por pedradas.

A população resgatou os garotos, mas já não conseguira salvar a vida de um dos colegas, abatido a tiro alguns minutos antes no pátio de recreio da própria escola. No velório sem corpo, o silêncio sepulcral e as faces inertes e inexpressivas dos anciãos da aldeia testemunhavam a certeza, ao contrário da ousadia dos mais novos ao desafiarem um dos exércitos mais poderosos do mundo, de que não havia volta a dar àquele destino de violência, opressão e supressão dos mais elementares direitos humanos de um povo esquecido.

O tempo, a experiência, o estado do mundo e a irresponsabilidade criminosa de quem nele manda não tiram a razão aos cidadãos mais velhos de Jenin. Agora, em 11 de Maio, 34 anos e alguns dias depois daquela manhã sombria, a jornalista Shireen Abu Akleh, com origem palestina e nacionalidade norte-americana, foi sumariamente executada em Jenin com uma bala no rosto disparada com precisão milimétrica por um soldado israelense. Tinha 51 anos e fazia o seu trabalho cobrindo para a estação de televisão Al Jazeera mais um ataque da tropa sionista em busca de «terroristas» num campo de refugiados palestinos.

Afinal, pouco ou nada mudou em mais de três décadas, a não ser que o incômodo internacional suscitado pela política de «quebra-ossos» foi passageiro e esfumou-se. A perseguição e a limpeza étnica dos palestinos prossegue na Palestina perante o silêncio dos poderes mundiais, a começar pela ONU e respectivo secretário-geral, e pelos incansáveis defensores dos direitos humanos agraciados com uma seletividade finamente burilada. O assassinato de Shireen Abu Akleh, como os de mais 380 palestinos, entre eles 90 crianças, em 2021, e os 34 em março e abril deste ano, incluindo mais seis crianças, foram recebidos com o silêncio banal das coisas rotineiras, inevitáveis, condenadas às latas de lixo das redações e das chancelarias. Vítimas, vítimas a sério pelas quais o nosso mundo civilizado chora, são os «mártires» nazistas da cidade ucraniana de Mariupol.

Em memória de Shireen Abu Akleh
Diz quem conheceu a jornalista Shireen Abu Akleh que era uma profissional competente, apreciada pela coragem, integridade e pelas reportagens cuidadas e sensíveis sobre a vida das populações em situação de ocupação. «Escolhi o jornalismo para estar perto das pessoas», diz Shireen num vídeo que a Al Jazeera divulgou depois de ter sido fuzilada. «Pode não ser fácil mudar a realidade, mas pelo menos consegui trazer a voz das pessoas para o mundo».

Deduz-se que Shireen praticava um jornalismo quase caído em desuso, centrado nas pessoas, guiado pela realidade, nem sempre coincidente com a opinião única formatada para a questão israel-palestina, a mesma que vigora para a guerra na Ucrânia. A jornalista da Al Jazeera estava literalmente na mira do establishment do regime sionista do apartheid, que a acusava de situar-se do lado dos «terroristas». Da mesma maneira que os jornalistas informando sobre o aparelho nazista que controla o regime ucraniano não passam de «agentes de Putin».

Naquela quarta-feira, 11 de maio, Shireen estava com outros jornalistas no campo de refugiados de Jenin reportando mais uma manobra de repressão conduzida pelas tropas de ocupação. Os profissionais da comunicação presentes cumpriam todas as normas do protocolo que foi sendo apurado ao longo dos anos, pois são já 45 os jornalistas acompanhando a situação na Palestina abatidos desde 2000. Usavam colete à prova de bala, capacetes, dísticos de «PRESS» bem visíveis e situavam-se a cerca de 200 metros dos soldados israelenses.

Ouviram-se três tiros. Um atingiu nas costas o produtor da Al Jazeera, Ali Samoudi, que ficou ferido. O terceiro disparo provocou a morte imediata de Shireen: atingiu-a na face, precisamente entre a borda do capacete e a gola do colete. Um tiro de sniper, preciso, fatal, efetuado deliberadamente para atingir um alvo escolhido no local exato. Uma execução. «Um assassinato flagrante, a sangue-frio», denunciou a Al Jazeera. Uma operação idêntica às que no início surpreenderam os jornalistas em Fallujah, no Iraque, quando começaram a surgir cadáveres com um único tiro na cabeça entre as vítimas dos massacres norte-americanos.

Os especialistas que observaram a bala de 5,56 milímetros recolhida pelo lado palestiniano consideram que foi um tiro de uma M16, eventualmente uma M16A4s equipada com uma mira telescópica prismática de altíssima precisão. Porta-vozes oficiais israelenses afirmaram prontamente que os autores foram atiradores palestinos – a canônica tese absurda que fazem circular sempre que acontecem situações deste tipo. A versão, porém, foi desmontada e ridicularizada por um vídeo dos acontecimentos divulgado pelo Centro de Informação israelense B’Tselem para os direitos humanos. Ficou claro que se tratou de um crime cometido a partir da posição ocupada pelos soldados de Israel.

A verdade oficial nunca se saberá concretamente. Israel recusa-se a autorizar um inquérito independente e, mais uma vez, o assassino ficará impune. Como aconteceu há um ano com a gangue de colonos sionistas que, a exemplo das práticas das brigadas nazistas ucranianas, assassinaram o cidadão palestino Musa Hassuna: o Ministério israelense do Interior «aconselhou» o Ministério Público a encerrar o caso por se tratar de uma situação «de autodefesa».

A morte de Shireen Abu Akleh parece não ter sido suficiente para satisfazer a ânsia de vingança do regime de apartheid. No funeral da jornalista, que juntou em Jerusalém uma multidão só comparável à que se despediu do lendário dirigente palestino Faisal Husseini em 2003, a polícia antimotim assaltou o desfile, espancou participantes e fez tombar o caixão, uma imagem revoltante que corre mundo, mas não sensibilizou os grandes meios corporativos. Assaltos e bombardeios contra funerais pareciam ser uma exclusividade da Arábia Saudita no Iêmen, mas afinal não é assim: a «única democracia do Oriente Médio» segue o exemplo dos seus «inimigos» – aliados da maior petroditadura do Golfo.

Israel continua a rejeitar, com a impunidade que lhe está garantida pelos órgãos da «ordem internacional baseada em regras» guardada por Joseph Biden e os seus súditos, e garantida pela OTAN, qualquer responsabilidade no sucedido. A desfaçatez, porém, vai mais longe. «Mesmo que Shireen Abu Akleh fosse morta pelo Exército israelense, não haveria necessidade de pedir desculpa», sentenciou Avi Benyahu, ex-porta voz das tropas sionistas. Como explica o deputado Ben Gvir, «os jornalistas da Al Jazeera geralmente ficam no caminho do exército e impedem o seu trabalho». Nada que um tiro certeiro na altura exata não resolva.

Tal como há três quartos de século, vale tudo para Israel tentar erradicar o «problema» palestino da face da Terra perante as mesmas sossegadas consciências que não se sobressaltaram quando a ex-secretária de Estado norte-americana Madeleine Albright garantiu que a morte de 500 mil crianças iraquianas «valeu a pena»; ou seja, as mesmas almas caridosas que acompanham tranquilamente o massacre de milhões de vidas humanas no Afeganistão, no Iraque, na Líbia, na Síria, no Iêmen só porque são da responsabilidade da OTAN ou de exércitos de potências ocidentais, em aliança com terroristas islâmicos, que levam a civilização às terras da barbárie.

Na Ucrânia não, é diferente, há que mobilizar caridades, submissões e centenas de milhões de euros que, por exemplo, não há para salários, reformas, saúde e educação dos portugueses e entregá-los em mãos – e sem controlo do destino – ao regime mais corrupto da Europa. Mas é na Europa, são instituições que defendem a «pureza de sangue», estão em causa pessoas brancas, quanto mais louros os cabelos e azuis os olhos melhor. Afinal acusar apenas Israel da cultivar formas de apartheid talvez seja injusto.

O Nakba eterno
A Shireen Abu Akleh de nada valeram a competência profissional, o respeito pelo jornalismo, a prioridade dada às pessoas e os seus problemas, sequer o passaporte norte-americano. Tal como não valeu à voluntária Rachel Corrie em 2003, trucidada por um bulldozer quando se opunha à destruição de casas palestinas; ou o passaporte britânico de nada serviu ao cineasta James Miller, abatido em 2003 por um soldado israelense quando testemunhava mais um dos corriqueiros massacres de pessoas indefesas em Gaza. Os Estados Unidos, o Reino Unido, tal como todos os satélites orbitando em volta da OTAN, entre os quais Portugal, silenciaram sobre a morte da jornalista da Al Jazeera.

Na verdade, o assassinato de Shireen foi um episódio, apenas mais um, de uma extensa tragédia de décadas a que os palestinos chamam Nakba, a catástrofe. Um drama alimentado não apenas para impedir que os palestinos tenham acesso ao exercício dos seus direitos nacionais, cívicos e humanos, mas também, em última instância e conhecendo-se a essência do sionismo, para consumar a eliminação do próprio povo palestino.

Resoluções sobre resoluções da ONU, declarações e mais declarações dos sucessivos dirigentes das grandes, médias e pequenas potências, entre elas as mais civilizadas de todas, vários acordos de paz para rasgar e centenas de reuniões de negociações a fingir não têm travado a marcha da Nakba através de 74 anos assinalados agora. A chamada «comunidade internacional» convive muito bem com a Nakba. A hipocrisia da casta dirigente mundial – e de grande parte das nacionais – não tem limites.

A Nakba é a mais criminosa, prolongada e sistemática limpeza étnica dos nossos tempos. O meticuloso extermínio de um povo: chacinas e expulsões em massa; desaparecimento do mapa de centenas de cidades, vilas e aldeias e destruição arbitrária de habitações; confinamento em campos de refugiados eternos e mesmo em campos de concentração, como acontece em toda a Faixa de Gaza; assassinatos seletivos, muros que separam núcleos habitacionais, familiares e propriedades; roubo de bens, colonização por imigrantes sionistas de territórios de onde são expulsos os habitantes com raízes seculares, humilhações, perseguições, meios de repressão e controle que tornam impossível a circulação das pessoas, mesmo para ir trabalhar; condenação ao desemprego, tortura, detenções perpétuas sem julgamento, morte e prisão de crianças e adolescentes – a lista de crimes sionistas alegadamente para garantir a «existência» e a «segurança» do Estado de Israel é infinita.

E o mundo assiste, impávido, à negação mais absoluta de todos os princípios e valores que se pregam a cada passo e que, por sinal, chegam a ser invocados por quem gere o planeta para justificar outras atrocidades. Afinal, há uma lógica perversa e totalitária em tudo isto e estamos sendo vítimas dela, cercados por um ambiente de intimidação poucas vezes atingido. Os palestinos contam apenas com eles próprios para resistir ao extermínio organizado. E também com a solidariedade de cidadãos e organizações corajosas tratadas como párias ou lunáticas pelos meios dominantes – governos e comunicação social.

Ao contrário, o Estado de Israel é um parceiro de excelência da OTAN, tem acordos preferenciais com a União Europeia, as suas embaixadas usufruem do direito a barricar ruas, a sua polícia política sobrepõe-se a polícias nacionais, está imune a sanções, participa em todos os acontecimentos culturais e desportivos internacionais, chegando mesmo a organizá-los. Há casos em que o crime compensa. E assim exemplificam-se muito bem as regras em que se assenta a «ordem internacional baseada em regras».

Apesar de tudo isto, os palestinos teimam em resistir e continuar a existir. «Uma história gloriosa foi apagada; as pessoas não conhecem a longa e impressionante história desta terra», lamenta Miko Peled, cidadão israelense natural de Jerusalém, filho de um general que se distinguiu em grandes campanhas sionistas, mas que tem a honestidade intelectual e humanista para compreender a realidade em que vive e na qual os palestinos estão presentes. «Esta terra era a Palestina, é a Palestina e será sempre a Palestina», assegura. O contrário, afinal, da tese mistificadora do pai do sionismo, Theodor Herzl, quando proclamou a ideia de «uma terra sem povo para um povo sem terra». Esvaziar a Palestina do seu povo original continua a ser, como se percebe, a meta do apartheid sionista quase 140 anos depois de ditada a máxima herzliana.

O povo palestiniano continua, porém, do lado da história, mesmo desamparado pelos senhores do mundo, tão modernistas nas suas arengas cada vez mais ocas mas tão anacrônicos e retrógrados, mesmo que imersos na «transição digital». Abu Shireen Akleh fazia por contar a história incômoda que os poderes planetários querem apagar das vistas e das consciências dos cidadãos. Pagou com a vida essa ousadia, tal como milhões vêm pagando, década após década, por quererem viver libertos da canga dos opressores que não conhecem fronteiras. São três milhões na Palestina e mais de sete milhões de refugiados (estes refugiados existem há mais de setenta anos!) que não desistem dos seus direitos enquanto quase tudo em volta, na prática, não os reconhece.

Porém, haverá sempre uma Shireen que, contra a corrente de grande parte dos seus companheiros de profissão e contra as balas teleguiadas pelos oligarcas e respectivos amanuenses que ditam as regras de uma intimidante verdade paralela, continuarão a manter vivo o direito aos seus direitos. Outras e outros continuarão a «trazer a voz das pessoas para o mundo», como fazia Shireen. Mesmo para os que não a querem ouvir.

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