Estudantes, indígenas e as lutas de junho

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Quem disse que sumiu?

Por Leonardo Silva Andrada

No ocaso do outono, testemunhamos eventos emblemáticos de setores que vêm ocupando papel de destaque nas lutas populares, em um país que resiste à escalada de arbitrariedades do neofascismo. Mesmo com toda a dificuldade para se consolidar institucionalmente, em virtude de sua própria incompetência para se firmar como escolha preferencial da nossa tacanha burguesia, o grupo forjado em torno do presidente se esforça para avançar sua agenda. Depende de muita boa vontade tratar como tática e estratégia, a forma como atua essa horda, em um movimento que associa a ação fisiológica nas instituições e a brutalidade da criminalidade pura e simples. Os protagonistas dos eventos de junho foram alvos dessa combinação truculenta, cada um em seu campo. O setor da educação, alvo de cortes de recursos, perdas salariais dos trabalhadores, intervenções na administração das unidades e tentativas de militarização de escolas, é exemplo da atuação institucional de avanço do neoliberalismo com a capa rota do fascismo, e reagiu com dois atos consistentes. A luta indígena, que desde o final do ano passado vem sendo ponta de lança das lutas sociais no país, tristemente foi alvo da face mais brutal desse padrão de avanço, visível no assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips.

Os atos de rua em defesa da educação pública ocorreram em duas etapas, com a articulação de manifestações locais no dia 9 e um grande encontro das entidades nacionais em Brasília no dia 14. Capitaneado pelo ANDES, sindicato nacional dos docentes de ensino superior, o ato na capital federal contou com a participação do SINASEFE, a FASUBRA e o movimento estudantil, garantindo a força necessária às demandas populares contra as tentativas de inviabilização da educação pública. É de se cogitar se essa retomada de tração indica a disposição dos estudantes para recuperar o papel que cumpriram em momentos chave da história política nacional. No Estado Novo, na ditadura burgo-militar, no impeachment de Collor, contra o impeachment de Dilma, a posição estrutural de estudantes associada às questões conjunturais da política educacional, impulsionaram a luta estudantil em processos cruciais na dinâmica política brasileira contemporânea.

O movimento estudantil se configurou como último espaço de respiro da resistência na primeira fase da ditadura burgo-militar, depois de estrangulada a luta agrária, os sindicatos controlados sob intervenção e neutralizado o movimento popular além da reativação da perseguição aos comunistas, que já vinha de período anterior. Restaram os estudantes e as tentativas de expressão artística, que galvanizaram o descontentamento até que as possibilidades de encontro entre as demandas populares e a vida cultural, impulsionadas pelo movimento estudantil, finalmente se tornaram alvo do arbítrio através do AI-5 em fins de 1968 e o Decreto-lei 447 em 1969. A censura prévia, a deduragem, as expulsões e cassações acabaram empurrando para a clandestinidade os últimos quadros militantes que ainda atuavam à luz do dia, e a definitiva noite parecia se abater sobre nossa Latino America. Restaurada a institucionalidade da democracia burguesa, com seus limites e contradições, em apenas quatro anos de vigência da nova Carta Constitucional os estudantes retomaram as ruas para servir de esteio do movimento que uniu um grande espectro de forças políticas a remover o primeiro presidente eleito diretamente na Nova República. Em período recente, mesmo que as forças populares tenham sido derrotadas com o golpe jurídico parlamentar de 2016, a força da juventude estudantil foi novamente para as ruas, emprestando sua força para tentar barrar o avanço reacionário que afinal não foi contido. No momento enfrentamos nova conjuntura adversa, em que o reacionarismo com rasgos neofascistas se valeu da inevitável desmobilização forçada pelo isolamento social, imposto por uma pandemia global que só no Brasil ceifou mais de 600 mil vidas. Passado o período mais crítico da pandemia, outra vez mais se faz presente o impulso da juventude estudantil.

No último ano, o papel destacado esteve com os indígenas, tanto por questões objetivas incontornáveis, quanto pela atuação decidida das organizações que conduzem sua luta. Os indígenas brasileiros sofrem com o desmonte acelerado das instituições de governo que deveriam cuidar de suas demandas, como o ICMBio, o IBAMA e a FUNAI, mas não somente. Na medida em que o seu interesse se concretiza como obstáculo intransponível à acumulação predatória em determinadas áreas, também enfrentam a forma mais direta que o capital utilizou, ao longo da história, para avançar seus negócios: a violência aberta. Mineração, extração de madeira e grilagem de terras para o agronegócio, se valem da invasão de reservas, expulsão de comunidades e imposição do terror, para garantia das margens de lucro.

Não é fortuito que agora estejamos lamentando as mortes de um indigenista e um jornalista que estavam na linha de frente das ameaças permanentes que negociadores criminosos perpetram contra os povos da Amazônia. Também nos projetos de desenvolvimento capitalista de períodos passados, no diapasão da via prussiana colonial brasileira, esses povos foram tratados como incômodos obstáculos a serem removidos. A ditadura burgo-militar se portava de forma semelhante ao atual governo que a cultua, considerando comunidades indígenas como estorvos a impedir a expansão da fronteira agrícola e a integração nacional. Na sua concretização como política de governo, essas expressões forneceram o verniz ideológico para grandes projetos de parceria entre os tecnoburocratas e militares de um lado e empreiteiras e burguesia agrária, do outro com a devida remuneração a todos os beneficiários em ambos. No período mais recente, o governo de conciliação de classes que expressou a vitória eleitoral de uma grande articulação de organizações populares, optou por uma via de desenvolvimento predatório que também favoreceu o grande capital em detrimento das comunidades rurais e urbanas variadas, atingidos por projetos relacionados ao Programa de Aceleração do Crescimento e as obras para a Copa do Mundo e as Olimpíadas.

Considerando a profundidade da crise econômica, social e ambiental em que estamos, em contraste com a solidão dos que se levantaram, cabe a reflexão: por que os demais setores não os acompanham em luta decidida? Faltariam motivos concretos para a mobilização e o envolvimento das outras categorias? A eliminação de direitos, as perdas salariais, a inflação que transfere renda para os rentistas, a deterioração das condições de vida e trabalho, não são suficientes para uma adesão firme do movimento sindical em seu conjunto? A ancestral concentração fundiária defendida de forma brutal, a consequente estrutura agrária que esmaga trabalhadores rurais, camponeses pobres, quilombolas e indígenas, não é o bastante para reativar a luta pela terra, tão atuante em períodos passados? Estudantes e indígenas brasileiros estão iluminando a senda que nossos vizinhos sul-americanos trilharam recentemente, culminada com vitórias eleitorais. Chile, Bolívia e mais recentemente Colômbia, reavivaram na memória, para os que pareciam ter se esquecido, como o único caminho seguro para vitória das forças populares é a luta de massas. Não podemos deixar os que já despertaram sozinhos; não devemos nos isolar de nossos irmãos-vizinhos, sob pena de sofrermos as piores consequências desse abandono. A derrota da extrema direita é uma tarefa emergente, e só será garantida com a mobilização, a resistência e a luta consequente, em que o momento eleitoral é parte relevante, mas não suficiente.

A espera por outubro é uma ilusão que pode trazer problemas no curto, médio e longo prazos. A condução da pré-campanha mais bem colocada nas pesquisas parece apontar que entendem a intensificação da luta nas ruas como um tensionamento indesejado, em oposição à imagem serena de uma candidatura assentada na conciliação. Desconsideram em absoluto que nessa linha, corre-se o risco de desmobilizar a ponto de comprometer a derrota eleitoral do neofascismo, incentivando um triunfalismo perigoso. Em caso de confirmada a vitória, os limites e contradições desse bloco hegemonizado pelo lulismo tendem a criar frustrações, pois é improvável que no contexto atual, consigam replicar a imagem edulcorada que forjaram do primeiro governo Lula. A desilusão nascida nessas condições facilita a sabotagem de extrema direita, sempre à disposição para os serviços mais sujos de limpeza do terreno para o avanço do grande capital. No longo prazo o desencanto alimenta os discursos de antipolítica, favorecendo os aventureiros que atuam como prepostos de interesses cujo retorno financeiro é potencializado à medida em que se mantêm nos bastidores.

Desnecessário estender exercícios de futurologia, fiquemos nos problemas imediatos. A ofensiva reacionária não será derrotada exclusivamente nas urnas, ainda que este seja um momento importante da atuação política. A mobilização e a luta servem para dar ao movimento popular tanto a força para derrotar o obscurantismo truculento, quanto para demonstrar ao seu substituto que não serão aceitas migalhas, em nome de uma conciliação nacional que só interessa aos estratos superiores. Uma vitória autêntica não se resume ao ganho simbólico de troca do nome do presidente, ela se concretiza em uma alteração real da orientação político-econômica. Um programa genuinamente popular envolve, necessariamente, a revogação das reformas trabalhista e previdenciária, que deram um giro a mais no torniquete neoliberal sobre a classe trabalhadora. São reformas que resultaram do esforço político de setores que se articularam em torno do condomínio golpista para conseguir sua implementação; sendo a manifestação da luta de classes, em sua expressão institucional, sua reversão não entra no horizonte político, a não ser que se consolide uma força com capacidade para impor esse gesto. Derrotar o neofascismo e trazer o próximo governo para nosso campo de reivindicações requer a mobilização e a luta de massas, método da construção do autêntico poder popular.

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