Sobre diálogos e assassinatos

imagemARTE: @crisvector

Por Mauro Luis Iasi

BLOG DA BOITEMPO

“Yo sé que hay gente que me quiere
Yo sé que hay gente que no me quiere”
Silvio Rodríguez

A única redenção possível não é individual, mas coletiva, na medida que as massas que sustentaram o pesadelo de um governo de extrema direita liderado por um facínora fascista possam se mover na direção de uma correlação de forças que devolva essa corja para os esgotos de onde nunca deveriam ter saído.

Mais uma vez a máquina de morte do bolsonarismo fez outra vítima. Agora foi o companheiro Marcelo Arruda, militante do PT de Foz do Iguaçu, assassinado em sua festa de aniversário. Mais uma vez a máquina fascista tenta encobrir o crime com o discurso de que se trata de uma guerra contra a esquerda e o perigo do comunismo, contra as forças do mal, os inimigos da nação e da família.

O ódio fascista cega o mais evidente. O defensor da família ataca a tiros uma festa de aniversário, com crianças e familiares. O ódio cego enxerga uma ameaça à nação na decoração de uma festa de aniversário que remete a um candidato e um partido que escolheu um caminho institucional e pacífico de disputa política. As forças do mal cantavam parabéns a você e o cidadão de bem entrou atirando.

O miliciano que ocupa a presidência emite uma nota em que afirma que quem defende a eliminação física dos opositores deve ir para a esquerda, pois essa é quem defende a violência. O mesmo fascista que afirmou inúmeras vezes que iria eliminar a “esquerdalha”, defende a tortura e homenageia torturadores, que faz gestos de armas e execuções em atos públicos, que tira fotos com armas na cintura ou portando fuzis e que prega abertamente, sob os olhares complacentes das instituições da República, um golpe de Estado.

Como tentativa de encobrir o ato bárbaro e criminoso, as hordas bolsonaristas passam a ofensiva reencenando a farsa que procura atribuir às forças de esquerda e centro-esquerda a iniciativa da guerra e da violência, transformando-os em cidadãos do bem em legítima defesa da ordem contra bárbaros sanguinários. Nesta direção, desenterram frases fora de contexto, como as de José Dirceu, do MTST, do MST, da CUT, quando da reação ao golpe de 2016. Entre elas, voltou à baila uma de suas preferidas: o final de uma fala minha em um encontro sindical, em 2015, na qual termino citando um poema de Bertold Brecht direcionado aos apoiadores do nazismo que, depois de evidenciada a barbárie da guerra, diziam-se boas pessoas, aos quais o poeta alemão oferece, então, uma boa bala, uma boa pá e uma boa cova.

Naquele momento, as forças de direita iam às ruas, penduravam bonecos de Lula e Dilma enforcados nos viadutos, usavam camisetas com a cabeça arrancada do ex-presidente e senhoras da melhor sociedade afirmavam que a ditadura errou quando não matou Dilma quando teve a chance. Era o aquecimento para o golpe que viria um ano depois. A presidente declara que está aberta ao diálogo com as forças de extrema direita, no mesmo momento que não recepcionava os apelos das forças de esquerda que a apoiavam e exigiam mudanças na política econômica e na direção de seu governo. Minha longa fala de análise de conjuntura proferida no encontro da central sindical CONLUTAS, representando o PCB, refletia sobre essa contradição e alertava que não havia negociação possível com a extrema direita, que tinha por objetivo sua derrubada, destacando o perigo do fascismo encontrar apoio entre as camadas de trabalhadores, como nos ensinou a triste experiência histórica.

Fui então processado, por Bolsonaro e outras organizações de direita, ameaçado de morte, eu e minha família, em uma campanha claramente orquestrada pela manipulação de máquinas de disparo em massa de mensagens das redes sociais, que depois se tornariam instrumento de campanha, mais uma vez sob o olhar impotente das instituições. Absolvido em todas frentes jurídicas, restou a propaganda que renitentemente volta como prova cabal das supostas intenções criminosas da esquerda malvada e cruel, despertando o ódio dos bolsonaristas, renovando a enxurrada de ameaças.

Reiterando que não há diálogo possível com o fascismo, vamos então refletir sobre o período que se seguiu. A esquerda continua refém de uma estratégia institucional, e o cenário da luta de classes estaciona há décadas na disputa eleitoral. Não houve um atentado (não se pode considerar a farsa da facada como tal, apesar das tentativas nesta direção), um chamamento, ou uma bravata sequer que pudesse materializar o perigo comunista de uma revolução violenta. Por outro lado, em nenhum momento a extrema direita e o bolsonarismo deixaram de exortar cotidianamente o ódio e a violência, com palavras e atos. Em março de 2018, Marielle Franco seria assassinada junto com Anderson Gomes por uma organização criminosa, o Escritório do Crime, com ligações evidentes com milicianos e policiais militares que frequentavam o condomínio do fascista na presidência e as rodas bolsonaristas. Mestre Moa foi esfaqueado por um defensor de Bolsonaro, pessoas foram atacadas e espancadas na rua por estarem vestindo vermelho.

Uma vez eleito, o miliciano não parou nem sequer um minuto de incentivar o ódio, o preconceito, a intransigência e a violência, agora como política de governo. Incentivou e apoiou madeireiros e mineradores ilegais a atacarem povos indígenas, desmontou os órgãos de fiscalização ambiental e a FUNAI, abrindo espaço para o crime organizado na Amazônia, que culminou no assassinato direto de lideranças indígenas, destruição de aldeias inteiras e, recentemente, no brutal assassinato de Bruno e Dom. Pregou e organizou atos defendendo a ruptura institucional e tentou, em setembro de 2021, um movimento claro neste sentido.

Seus militantes fascistas se orgulhavam em dizer sobre seus treinamentos na Ucrânia com organizações nazistas, exibiam fotos com armas nas redes sociais e destilavam ódio diariamente nesses espaços, assim como em parte dos meios de comunicação comprometidos com a barbárie. Os filhos do miliciano, eles também fascistas, envolvidos em esquemas criminosos evidentes, empenham-se em homenagear bandidos – fardados ou não – com honrarias e, quando necessário, com a queima de arquivo, como provavelmente ocorreu com o miliciano e policial militar envolvido no assassinato de Marielle, fuzilado na Bahia.

Nas redes sociais, além do exército de robôs, pessoas se sentiam liberadas para entrar em publicações com “argumentos” do tipo: “vou dar um tiro na sua cara”, “vou matar toda a sua família”, “vai conhecer o pau-de-arara”, entre outros. Atividades acadêmicas, culturais, reuniões, escolas e até hospitais foram invadidos por hordas de provocadores bolsonaristas, juízes se acharam no direito de impor humilhações a meninas estupradas, machos descontrolados se sentem livres para agredir a socos uma procuradora-geral e se espalha como praga uma cultura do estupro, em vários casos de cidadãos de bem e apoiadores daquele miliciano hoje na presidência, que por várias oportunidades ameaçou de estupro colegas de Parlamento, crime pelo qual foi condenado.

Agora acossado por conta de um governo catastrófico em todos os sentidos, com uma marca indelével de violência – em 2020, 182 indígenas foram assassinados; o número de assassinatos no campo cresceu mais de 17%; o Brasil é o 4º país em assassinatos de ambientalistas; a polícia militar matou 6416 pessoas, sendo 79% negras, ao que se deve somar as milhares de vítimas do negacionismo durante a pandemia – e com uma clara possibilidade de perder as eleições, o facínora volta a ameaçar com um golpe. Seu ministro da defesa prepara ação para questionar o resultado das urnas e conclama seus seguidores afirmando que “vocês sabem o que fazer”. Um imbecil que compreendeu a mensagem invadiu a tiros uma festa de aniversário e assassinou Marcelo Arruda.

Sei perfeitamente que há um núcleo fascista de extrema direita e com provável ligação com o crime organizado, que há um contingente de corruptos, pessoas de mau caráter e criminosos que aproveitam o manto de permissividade cruel que emana do poder central da República, assim como na massa de seguidores fanáticos existem pessoas que não são más, que são manipuladas, seja pela propaganda, seja pelo trabalho de pseudo-religiosos inescrupulosos. No entanto, as boas pessoas que legitimam e acobertam o crime são também seus cúmplices e suas mãos estão manchadas com o sangue da violência e dos assassinatos.

Não exijo e nem quero seu arrependimento, que definhem sob o peso de sua culpa. A única redenção possível não é individual, mas coletiva, na medida em que as massas que sustentaram o pesadelo de um governo de extrema direita liderado por um facínora fascista possam se mover na direção de uma correlação de forças que devolva essa corja para os esgotos de onde nunca deveriam ter saído.

Quem precisa de redenção não são os fiéis apoiadores da barbárie, mas o país.

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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente. Na TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.

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