Aborto e violência contra a mulher

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Por Rômulo Caires e Ana Karen Souza via O MOMENTO – PCB da Bahia, escrito em 25/09/2020

A temática do aborto, tão cara a uma sociedade em recrudescimento conservador, voltou a acender amplos debates na sociedade brasileira a partir do trágico evento ocorrido em Pernambuco no último mês. Um grupo de pessoas, içadas por “denúncias” e publicização da ministra Damares e por Sara Girimoni partiu em direção ao Hospital de Pernambuco, na qual uma menina de 10 anos se encaminhava para a realização de um aborto legal. A gravidez havia ocorrido após mais um dos seguidos estupros realizados por tios e outros familiares desde os seis anos de idade. Apesar do grito dos fundamentalistas, a criança teve acesso ao procedimento. Porém, fica mais uma vez demonstrado como direitos duramente conquistados estão cada vez mais ameaçados. A portaria lançada pelo Ministério da Saúde em 28 de agosto comprova o momento regressivo, dificultando ainda mais o acesso ao procedimento legal do aborto em casos de estupro.

No Brasil o aborto é legal em três situações: em casos de estupro, anencefalia e nas situações que a gravidez gera riscos à vida da mulher. Nos últimos anos houve várias tentativas da “bancada evangélica” em fazer retroceder tal legislação a partir de projetos apresentados na câmara de deputados, o mais conhecido deles foi o Estatuto do Nascituro, que conferia direitos legais ao feto desde o momento embrionário. Isso significaria que mesmo em gestações que poderiam levar a mulher à morte, sem viabilidade da gravidez, a mesma deveria ser mantida. Daí se impõe uma pergunta essencial: qual vida importa? Em países que legalizaram amplamente o aborto, como o Uruguai e a França, e que também investiram em outras estratégias tais como educação sexual e ampliação de acesso a serviços de saúde, observou-se significativa redução no número de abortos. Enquanto no Brasil, dados do DataSUS apontam que no primeiro semestre de 2020, o número de mulheres atendidas pelo SUS em casos de abortos malsucedidos – provocado ou espontâneos- foi 79 vezes maior do que o de interrupções da gravidez previstas em lei. Foram realizadas mais de 80 mil curetagens, procedimento muito mais frequente em abortos provocados do que em abortos espontâneos. Além disso, quase 68% dos procedimentos pós-aborto se concentraram nas regiões Norte e Nordeste.

Os dados podem indicar o quanto as barreiras de acesso ao aborto legal podem não só aumentar a incidência dos abortos provocados e aumentar os custos hospitalares em procedimentos pós-aborto clandestinos, como também indica que em locais com piores condições socioeconômicas há maior quantidade de tentativas de aborto. Quando o assunto é interrupção legal da gestação em casos de estupro, a situação é ainda mais grave. Os dados evidenciados pelo Anuário de Segurança Pública de 2019 mostram que ocorreram mais de 66 mil registros de estupros no ano anterior, sendo que 81,2% das vítimas eram mulheres e 53,8% tinham até 13 anos. Comparando com o número de interrupções legais registrados, nota-se uma grande discrepância entre tais dados, apontando para uma possível barreira de acesso das mulheres ao aborto previsto em lei. Tais evidências sugerem também um processo de normalização da violência sexual. A violência sexual é um fenômeno universal, que atinge pessoas de diferentes sexos, gêneros, idades, classes sociais e cor. Porém, as mulheres, principalmente as mulheres negras, população LGBT e crianças são as mais atingidas. Também são essas mesmas pessoas que costumam ter negado o acesso a serviços de saúde e demais formas de amparo do Estado, evidenciando-se a consolidação do descaso com a vida desses seres.

Cabe notar também que vivemos em uma sociedade no qual as questões sexuais são um tabu e, ao não serem dialogadas com as crianças, deixam-nas ainda mais suscetíveis às agressões. O projeto Escola sem Partido, encabeçado por arautos da extrema-direita, foi um exemplo significativo das tentativas de transformação da sexualidade em tabu. O projeto tinha como centralidade o combate a todas as iniciativas que visavam ampliar o debate sobre a diversidade de questões relacionadas às práticas afetivas e sexuais, o questionamento das formas hegemônicas de constituição da família, orientações sexuais e identidade de gênero. A construção da normatividade sexual na sociedade burguesa tem muita relação com esse estado de coisas. Tal norma é baseada na aceitação de uma dupla moral sexual: por um lado, os homens são estimulados e protegidos em suas aventuras e desventuras sexuais; por outro lado, as mulheres são amplamente direcionadas a papéis ligados à passividade e pureza, sendo bloqueado o acesso aos saberes sobre o seu próprio corpo, além de serem tratadas enquanto mero objeto de gozo dos homens.

Tal estruturação ideológica lega às mulheres a tendência de se tornarem propriedade privada dos homens, impedindo o alcance das diversas dimensões de realização social, muitas vezes destinadas à mera reprodução do núcleo familiar burguês enquanto esposas e mães. Dessa forma, também se eterniza um modelo único de constituição de laços afetivos, que cada vez menos corresponde à realidade concreta brasileira, essa última muito distante da “família margarina” proposta como horizonte normativo.

Realizar o aborto remete à possibilidade da mulher escolher se irá ou não manter uma gestação, bem como escolher se manterá ou não uma família nos moldes burgueses, em que precisam limpar a casa, cuidar das crianças e do marido – além de trabalhar fora. As tarefas domésticas poderiam ser realizadas pelo Estado a partir de creches, lavanderias e restaurantes públicos. Criminalizar o aborto é a outra face da negação total de serviços que poderiam ser coletivizados e tornados serviços comunitários, mas que em nossa sociedade são reproduzidos pelas mulheres no seio da família, em múltiplas jornadas de trabalho.

Nesse sentido fica evidente que as barreiras impostas ao debate racional sobre a questão do aborto indicam muito mais a necessidade estrutural de subjugação das mulheres, especialmente das mulheres trabalhadoras, do que uma preocupação com a proteção da vida. É fundamental olhar a questão sob o ângulo da saúde pública, ampliando os debates sobre o acesso e disponibilidade de procedimentos seguros, como também se impõe a necessária crítica à estrutura ideológica que retroalimenta a sociabilidade do capital, que retira das mulheres a sua capacidade de agência, assim como retira direitos básicos. É ainda atual a frase do pensador francês Fourier, para quem o grau de civilização de uma sociedade se mede pelo grau de liberdade das mulheres.

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