O aniversário do nascimento de Lênin

Mas como a ideologia dominante (mesmo à “esquerda”) gosta de opor Gandhi, campeão da não-violência, a Lenine, dedicado ao culto da violência, chamo a atenção do leitor para duas pequenas páginas do meu livro [1] que demonstram algo radicalmente diferente. Por ocasião do primeiro conflito mundial, Gandhi orgulha-se de ser o “recrutador chefe” ao serviço do exército britânico e celebra as virtudes da vida militar. Qual é, em contrapartida, a atitude assumida pelo grande revolucionário russo?

Com o desencadeamento da guerra, ainda que partindo de posições bastante diferentes, Lenine presta homenagem aos círculos do “pacifismo inglês” e em particular a E. D. Morel, um “burguês excepcionalmente honesto e corajoso”, membro da Associação contra a conscrição e autor de um ensaio que desmascara a ideologia “democrática” da guerra brandida pelo governo britânico. Neste momento, o dirigente bolchevique encontra-se bem mais próximo do pacifismo do que Gandhi, situado em posições anti-téticas.

Constrangido a verificar que, apesar das propostas de pacifismo combativo expressas na véspera da guerra, mesmo o movimento socialista acabou em grande parte por se acomodar à carnificina e à união sagrada patriótica destinada a legitimá-la, Lenine nota com desgosto a “imensa confusão”, a “imensa crise provocada pela guerra mundial no socialismo europeu” e exprime uma “profunda amargura” pela “bacanal de chauvinismo” que grassa doravante. Sim, “a confusão foi grande” junto àqueles que viam na Segunda Internacional um vislumbre de esperança contra o ódio chauvinista e o furor belicista. Neste sentido, “a coisa mais entristecedora da crise actual é a vitória do nacionalismo burguês”, é a atitude de adesão ou de submissão ao banho de sangue; sim, “mais que os horrores da guerra”, ainda mais mesmo do que a “carnificina”, aquilo que é dolorosamente ressentido são “os horrores da traição perpetrada pelos chefes do socialismo contemporâneo” que, engolindo seus compromissos anteriores, contribuem activamente para a legitimação da violência guerreira, para o retorno à barbárie cultural geral e para o envenenamento dos espíritos. “O imperialismo jogou os destinos da civilização europeia” e pôde fazer isso servindo-se da cumplicidade daqueles que estavam destinados a fazer valor as razões da paz e da coabitação entre os povos.

Para confirmar a sua análise, Lenine cita in extenso a declaração difundida por círculos cristãos de Zurique, os quais exprimem a sua consternação face a uma vaga chauvinista e belicista que não encontra obstáculos: “Mesmo a grande internacional operária […] extermina-se reciprocamente nos campos de batalha”. Cinco anos antes, em 1909, em oposição à “bancarrota” do “ideal do imperialismo” belicista, Kautsky havia celebrado “a imensa superioridade moral” do proletariado (e do movimento socialista), o qual “odeia a guerra com todas as suas forças” e “fará tudo para impedir que as paixões militaristas ganhem terreno”. Este precioso capital de “superioridade moral” verifica-se agora que está completamente dissipado. Se, pelo menos na sua primeira fase, a guerra e a participação na guerra configuram-se, no quadro de uma ideologia à qual mesmo o primeiro Gandhi não é estranho, como uma espécie de plenitudo temporum no plano moral (pela motivação espiritual e a fusão comunitárias que implicam), aos olhos de Lenine a explosão do conflito fratricida (que também lacera a própria classe operária) aparece em contraste como alguma coisa semelhante à “época da culpabilidade reconhecida”: utilizo aqui a expressão que Lukacs retoma de Fichte em 1916, ao passo que ele é dilacerado por um profundo trabalho destinado a concluir, na vaga de protestos contra a imensa carnificina, com a sua adesão à Revolução de Outubro. Evidentemente, o revolucionário russo é demasiado laico para recorrer a uma linguagem teológica. E, contudo, a substância não muda: para além da indignação política, a explosão da guerra provoca nele uma consternação moral.

A esperança, moral antes mesmo de política, parece renascer graças uma fenómeno que poderia talvez avariar a máquina infernal da violência: é a “confraternização entre soldados de nações beligerantes, até nas trincheiras”. Esta novidade aprofundou contudo a divisão do movimento socialista, que já se manifestar com a explosão da guerra. Em contraposição ao “ex-socialista” Plekhanov, o qual assimila a confraternização à “traição”, Lenine escreve: “Está bem que os soldados maldigam a guerra. Está bem que exijam a paz”. No “programa da continuação da carnificina” formulado pelo governo provisório russo, do qual também fazem parte “ex-socialistas”, Lenine responde: “A confraternização numa frente pode tornar-se confraternização em todas as frentes. O armistício de facto numa frente pode e deve tornar-se armistício em todas as frentes”.

É verdade, a confraternização constitui para os bolcheviques um momento essencial da estratégia visando o abate do sistema social responsável pelo massacre e portanto a transformação da guerra em revolução. Mas esta passagem é tornada inevitável pelas “ordens draconianas” com as quais os dois campos opostos enfrentam a confraternização. E é uma passagem que, desde o princípio do gigantesco conflito, é imaginada e de certa forma invocada também pelos círculos cristãos suíços que Lenine opõe positivamente aos socialistas convertidos às razões do chauvinismo e da guerra. O revolucionário russo chama a atenção em particular para isto:

“Se a miséria se torna demasiado grande, se o desespero toma a dianteira, se o irmão reconhece seu irmão sob o uniforme inimigo, talvez factos ainda totalmente inesperados se produzam, talvez as armas retornem contra aqueles que incitam a guerra, talvez os povos, aos quais foi imposto o ódio, subitamente os esqueçam, unindo-se”.

Não parece que Gandhi se tenha ocupado do fenómeno da confraternização, o qual de qualquer forma está em contraste com o seu empenho em recrutar soldados e carne de canhão para o governo de Londres.

25/Abril/2010

[1] La non-violenza. Une storia fuori dal mito , Laterza, 2010.

O original encontra-se em domenicolosurdo.blogspot.com . A versão em francês encontra-se em http://www.legrandsoir.info/Anniversaire-de-la-naissance-de-Lenine.html

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/losurdo/losurdo_25abr10.html