O desafio da Revolução Bolivariana

Num contexto histórico muito desfavorável, hostilizada pelos governos de Bush e Obama, a Revolução Bolivariana realizou, sob uma ofensiva permanente da oligarquia crioula, conquistas muito importantes. O que surpreende não é aquilo que não foi possível realizar; mas sim o terem conseguido tanto numa atmosfera de guerra não declarada, no contexto de uma luta de classes que somente terá precedente no Chile de Allende.

Hugo Chávez deixou como legado uma carta de navegação e um painel de instrumentos para que seja mantido o rumo. Restituiu a esperança aos seus compatriotas e aos povos da América Latina.

Poucas vezes na América Latina a morte de um governante carismático terá comovido tão profundamente o seu povo como a de Hugo Chávez.

Amado pelos oprimidos de todo o mundo, combatido e caluniado pelas classes dominantes, o seu funeral, acompanhado por milhões de venezuelanos, confirmou que fez história profunda. Significativamente, nele participaram dezenas de chefes de estado e de governo vindos da América Latina, da Europa, da Ásia e da Africa.

Era um obscuro oficial quando surgiu em 1992 como líder de uma rebelião militar contra o governo de Carlos Andrés Pérez. A tentativa de golpe foi esmagada e cumpriu dois anos de prisão. A sua admiração por Bolivar foi então fonte de um projeto ambicioso: libertar o país da dominação imperialista e levar adiante uma revolução que, pela via institucional, fizesse do povo sujeito da História. O sonho parecia utópico porque a Venezuela era uma semicolónia dos EUA. Mas ocorreu o que os partidos da burguesia tinham por impossível. O jovem oficial mestiço, desprezado pela oligarquia, apresentou-se como candidato por um Movimento por ele criado, o V República, e venceu. O seu discurso, diferente de tudo o que se conhecia, empolgou as massas.

Eleito Presidente da República em Dezembro de1998, tomou consciência de uma realidade: a conquista da Presidência fora uma tarefa muito mais fácil do que aquela que se propunha a empreender: a transição do capitalismo dependente, hegemonizado pelos EUA, para uma Venezuela soberana, rumo a uma Revolução de contornos ainda por definir.

Dois golpes de estado, montados e financiados pelos EUA, confrontaram Chávez com crises inesperadas. O primeiro, em 2002, foi um golpe militar que contou com a participação de altas patentes das Forças Armadas. Salvo pela mobilização popular, o Presidente compreendeu que, afinal, o corpo de oficiais era permeável à ofensiva ideológica do imperialismo e da grande burguesia.

Uma segunda intentona quase paralisou o país e demonstrou que a PDVESA, a gigantesca empresa petrolífera, somente era nacional nominalmente, pois os dirigentes estavam identificados com o capital financeiro internacional.

Em ambos os golpes estiveram envolvidos militares e civis nos quais Chávez tinha confiança.

Sucessivas deserções – as mais chocantes terão sido a de Miquelena, ex ministro do Interior, e a do general Baduel – demonstraram posteriormente que muitos dos antigos companheiros não se sentiam identificados com o projeto revolucionário do Presidente.

Durante largo tempo uma questão sem resposta comprometeu o avanço do processo.

Qual o rumo da Revolução Bolivariana? A definição tardou. No terreno da ideologia era uma revolução democrática e nacional, anti-imperialista.

Chávez apercebeu-se de uma evidência: sem organização revolucionária que lhe assuma os objetivos, não há revolução que possa atingir as metas propostas.

Creio que foi em 2004, dirigindo-se a um Encontro de Intelectuais em Defesa da Humanidade, que deixou pela primeira vez implícita a opção pelo Socialismo.

A criação de um Partido da Revolução tornou-se então uma necessidade: o Partido Socialista Unido da Venezuela.

O PSUV nasceu porém numa atmosfera polémica porque no chavismo cabiam muitas tendências, algumas incompatíveis. Criado de cima para baixo, o número de filiados atingiu rapidamente um total impressionante. O êxito gerou ilusões; muitos aderentes não eram revolucionários.

O Presidente exigiu que todos os partidos que apoiavam a Revolução se dissolvessem, integrando-se no PSUV.

O Partido Comunista da Venezuela, reiterando a sua solidariedade irrestrita com a revolução e o seu líder, recusou. No momento em que muitos intelectuais do PSUV criticavam o marxismo- leninismo, considerando-o obsoleto, o PCV esclareceu que não faria sentido integrar-se num partido no qual influentes quadros atacavam princípios e valores inseparáveis do seu combate como comunistas.

Não cabe neste artigo comentar os debates então travados em torno do chamado Socialismo do Século XXI, a ideologia que, em alternativa ao socialismo científico, estava a tomar forma na Venezuela e na América Latina. Limito-me a citar o que escrevi em «odiário.info» no regresso de Caracas: – «A fórmula do Socialismo no século XXI é equívoca e enganadora. Lembra um balão vazio. O núcleo de teórico e programático não existe praticamente. O mal está no ataque aos clássicos do marxismo, desencadeado sobretudo por alguns intelectuais latino americanos. Para eles, o pensamento de Marx, Engels e Lenin, toda a obra teórica sobre o socialismo científico tornou-se uma velharia cuja superação se apresentaria como exigência da História».

POLÍTICA EXTERIOR

Com exceção dos efeitos da complexa relação com a Colômbia e os elogios a governantes liberais europeus, a política exterior de Chávez foi desde o início progressista pela firmeza e coragem que caracterizaram o choque com o imperialismo estado-unidense.

No tocante à América Latina, empenhou-se na solidariedade entre países irmãos. Foi decisiva a sua intervenção no debate que liquidou o projeto recolonizador da ALCA. A Alternativa Bolivariana para as Américas, ALBA, bem como a criação da UNASUL, do Banco do Sul, da Petrocaribe, da CELAC assinalaram avanços anti-imperialistas. Transparente foi a sua atitude internacionalista, a solidariedade permanente com governos como o do Irão que não se submetem à dominação imperial dos EUA.

A TRANSIÇÃO DIFÍCIL

Era inevitável que a decisão de romper gradualmente com o capitalismo seria fonte de grandes problemas.

Mas distorcem a realidade os media que insistem em apresentar um panorama alarmante da economia do país.

Num contexto histórico muito desfavorável, hostilizada pelos governos de Bush e Obama, a Revolução Bolivariana realizou, sob uma ofensiva permanente da oligarquia crioula, conquistas muito importantes. O que surpreende não é aquilo que não foi possível realizar; mas sim o terem conseguido tanto numa atmosfera de guerra não declarada, no contexto de uma luta de classes que somente terá precedente no Chile de Allende.

O analfabetismo, antes elevadíssimo, foi praticamente erradicado. Nas escolas públicas o ensino é gratuito. Num país onde o sector editorial era quase inexistente, o Estado distribuiu gratuitamente desde o início da Revolução dezenas de milhões de livros de autores nacionais e estrangeiros. Novas universidades foram criadas. A assistência médica é hoje gratuita.

Nessa política, as Misiones, programas sociais, desempenham um papel fundamental. A Mision Mercal atende a preços subsidiados 10 milhões de pobres em 1500 lojas do Estado. A Mision Barrio Adentro desenvolve um trabalho insubstituível no campo da saúde. Mais de vinte cinco mil médicos e enfermeiros cubanos levaram Saúde a milhões de trabalhadores que a ela não tinham acesso.

DESAFIOS

Não obstante a ofensiva contra-revolucionária da oposição, agora liderada pelo milionário Henrique Capriles, a situação financeira do país está controlada. As reservas de hidrocarbonetos são das maiores do mundo.

Mas a insistência de alguns ministros e dirigentes do PSUV em apresentar a Venezuela como país em transição acelerada para o socialismo, deturpa a realidade. Com exceção do petróleo, a contribuição do sector privado para o PIB é maioritária. É ele que controla quatro quintos das importações. O Banco Central é quase autónomo. O sistema mediático é hegemonicamente controlado pela oposição.

A transição para o socialismo é, portanto, ainda incipiente num contexto em que o modo de produção, as relações de produção e as estruturas económicas continuam a ser fundamentalmente capitalistas.

CONCLUSÃO

Como definir e situar o revolucionário Hugo Chávez?

Não e fácil a resposta.

Optou pelo Socialismo, imprimindo à Revolução um rumo que poucos esperavam. Não foi um marxista, nem um socialista utópico. Nunca escondeu a força do seu sentimento cristão católico. Se ele apresenta afinidades idiossincráticas na sua trajetória de revolucionário carismático e humanista com grandes personagens da História da América Latina, não creio que seja com Bolivar, o seu génio tutelar. Como líder de massas que fascinou os oprimidos do seu povo e por eles foi amado e compreendido, ele me faz pensar em grandes caudilhos como o uruguaio Artigas e os mexicanos Pancho Villa e Emiliano Zapata.

É imprevisível o amanhã da Venezuela Bolivariana. Mas tomam o desejo por realidade os que anunciam que a Revolução está condenada.

Como afirma o ex-ministro da Industria, Victor Alvarez, Hugo Chávez deixou como legado uma carta de navegação e um painel de instrumentos para que seja mantido o rumo.

Confrontam-se duas opções. Uma desenvolvimentista, inseparável de um modelo rentista. A outra, social, que privilegia o direito ao trabalho, a educação, a habitação, a saúde, a alimentação, a cultura.

Hugo Chávez restituiu a esperança aos seus compatriotas e aos povos da América Latina. Desaparecido fisicamente, já deu entrada no panteão dos heróis do Continente.