Um camarada

Nós temos o hábito, compreensível, de celebrar grandes personalidades revolucionárias. Afinal são pessoas que se destacaram por suas realizações, por seu pensamento, por sua trajetória heróica. São aquilo que Heller um dia denominou de indivíduos genéricos, que em sua singularidade apresentam um traço da genericidade; nos quais nos reconhecemos e através deles entre nós nos identificamos, nós os simples mortais. Neles projetamos, afirmou Freud, nosso ideal de ego e passamos a incorporar em nós traços daqueles que se destacam, que assumem papel de líderes.

Assim, em atitude de veneração olhamos para nossos grandes camaradas, Fidel e sua liderança incontestável da Revolução Cubana, ao lado de Che e seu incrível carisma, Lênin e sua firmeza estratégica e flexibilidade tática, Mao e sua capacidade de traduzir para a realidade chinesa os caminhos próprios da revolução, como Allende procurou no Chile, como Almicar Cabral, Augostinho Neto e Samôra Machel em nossa terra distante da África de onde viemos todos.

Outros por seu pensamento que descortina caminhos, constrói valores, desconstrói certezas e desvenda aparências, como Mariátegui, como Lukács, Gramsci e, antes e acima de todos, os gigantes alemães: Marx e Engels. Como os poetas que roubam nossa alma para devolve-las molhadas com suas palavras.

Parece que temos a necessidade de projetar em certos indivíduos representativos, nossos desejos, anseios, e por certas características, ver neles o que nos faz ser como somos. Muitas vezes, por ocupar este papel, apagamos as particularidades destes personagens e suas trajetórias, os idealizamos, os colocamos para fora da humanidade, cultuamos suas personalidades, exteriorizamos aquilo que é nosso na objetivação do líder, e, por vezes, ela se distancia e se volta contra nós como uma força estranha, se aliena.

Como em Che, transformado em guerrilheiro heróico e mistificado, como nosso Mariguella em seu sacrifício, como, talvez, o maior personagem histórico da revolução brasileira, o camarada Luiz Carlos Prestes. Quando era um estudante de história, nos primeiros anos da faculdade e já tendo que dar aulas para sobreviver, peguei alguns livros sobre a história do Brasil para preparar aulas que iam desde o Brasil colônia até o presente, ao mesmo tempo em que estudava a história do movimento operário no Brasil. Naquele painel que se descortina diante de meus olhos, a figura de Prestes saltava como algo de excepcional. Perpassava todas as etapas do Brasil republicano, submergia no mar agitado da história, para reaparecer adiante com a classe trabalhadora que tateava os caminhos de sua constituição revolucionária.

Sua vida, seus acertos e equívocos, sua epopéia na Coluna, a resistência clandestina, seu amor, sua prisão, sua tragédia, sua vida, seu desterro, sua sobrevivência, sua volta ao Brasil, pareciam para mim, naquele momento, tão inacreditável como se o mar diante de meus olhos se transformassem nas páginas da Ilíada e delas saíssem batalhões helênicos em guerra, ou outras das quais saltavam sereias e serpentes marinhas, ou Moby Dick elevando-se das águas escuras enquanto o capitão Haab tenta alvejá-la com seu arpão. Assim me parecia Prestes quando o vi envolto em uma multidão que o cercava junto ao Teatro Ruth Escobar chegando para uma palestra em seu retorno do exílio. Quando o conheci pessoalmente, por um momento, ele me parecia pequeno, magro. Almoçamos em seu apartamento no Rio, arroz feijão, bife, salada. Mas, quando começa a falar, nos transportava para dentro da história e ali emergia o gigante, sua cores iam desaparecendo, tornava-se aos poucos em branco e preto, sépia, amarelo velho, com sua barba e seu uniforme de tenente. Depois, tomamos café.

Nas peripécias de Prestes, nas tortuosas trilhas da clandestinidade e depois, uma pessoa podia ser vista, algumas vezes, por perto. Não creio que haja uma foto que o prove, um depoimento em um livro, em algum documento perdido em algum arquivo escrito em sangue nos porões de nossos algozes. Mas estava ali, foi, por um tempo, seu segurança. Chamava Valdomiro e nem sei se daqueles cuja vanguarda de seu nome é um W ou um V, mas gosto de acreditar que seja com V, pois seu Valdomiro não era chegado a estas coisas de sofisticada estrangeirice de dois vs em um só.

Não era uma pessoa comum, isso não. Era um comunista e há  algo de excepcional em ser comunista. Um ser estranho porque não  é mais só um indivíduo, é um ser composto, coletivo, destes que já assustava à Aristóteles, às classes dominantes de todos os tempos e continua preocupando as autoridades constituídas.

Entrou no PCB jovem e acompanhou o partido toda a sua vida. Não ficava em casa esperando ser chamado, ia procurar os camaradas onde estes estavam e oferecia solícito sua ajuda. Lembro-me de outro companheiro espanhol, seu Benito, que passou um dia no diretório do PT e entrou porque viu bandeiras vermelhas e trabalhadores se reunindo. Incrível, exilado da república revolucionária de Espanha, era como se houvesse hibernado por décadas até que o vento da luta o despertou e ele procurou seus iguais

No momento em que o já falecido PPS tentou acabar com o PCB e alguns camaradas se reuniram em baixo de uma árvore como sede provisória, Valdomiro devia estar por ali. Nos duros tempos de reconstrução, numa sala pequena na Rua do Carmo em São Paulo, ele cuidava da sede, não como se o partido fosse sua casa, ao contrário, sua casa era o partido. Colocava uma cadeira à porta e recebia à todos com sua atenciosa conversa e consideração. O que não o impedia de bravejar contra qualquer atitude que lhe parecia ofensiva contra um camarada, o partido ou mesmo uma cadeira de nosso patrimônio.

Sem família por perto, costumava passar o natal, esta festa pagã, na casa de meus sogros que cultivam o hábito de receber a humanidade em sua casa como se fosse sua. Sentava-se ali, conversava pausadamente. Não houve uma única vez sequer, que chegando ao partido ele não me cumprimentasse perguntando por meu sogro e minha família. Não ficava ali por um serviço, um trabalho, ainda que desta atividade, por um bom tempo, tenha garantido seu teto e seu alimento. Desempenhava sua atividade como uma tarefa partidária, tão séria como se fosse definida em resolução da Internacional Comunista ou por Lênin em pessoa.

Como compreender estas pessoas? Disse meu mestre poeta, Silvio Rodriguez, que “os homens sem história são a história, grão a grão se formam as grandes praias”. Quando Marx e Engels subvertiam toda a história ao afirmar que o verdadeiro pressuposto da existência é que os seres humanos precisam, antes de tudo, comer, morar, vestir-se e outras coisas e que, portanto, o primeiro ato histórico é a produção dos meios para garantir a produção da existência, estavam dizendo algo parecido. Aqueles batalhões de pessoas anônimas, sem rosto e sem especial destaque, são quem de fato constrói a história que depois será analisada pelos famosos filósofos que preocupados como o Homem com maísculas, quase nunca levam em conta os homens e mulheres que prosaicamente produzem o que eles tentam compreender.

Nestes dias recebi a notícia que meu camarada Valdomiro faleceu. Internado em um hospital, ainda perguntou por nós. Não sei explicar a força como sua morte me atinge. Provavelmente esta data não será lembrada, sua figura incrível não será marcada por legado significativo, pelo que tenha pensado ou escrito, o mundo não saíra dos eixos, nem encontrará seu caminho. No entanto, arrisco dizer, que seu Valdomiro foi um indivíduo genérico, pelo simples fato de que nele manifestou-se a humanidade, um modo de ser próprio de homens e mulheres de um possível futuro emancipado. Um pequeno grão nesta imensa praia por fazer. Pequeno, mas insubstituível, como todos nós.

Camarada Valdomiro: Presente! Adeus camarada.

Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, presidente da ADUFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.