Ucrânia levanta-se contra a NATO (OTAN) , os neoliberais e os oligarcas

Quais são as origens da crise na Ucrânia e porque o conflito irrompeu nos últimos meses?

As origens da crise na Ucrânia são triplas. A primeira coisa é que a Ucrânia foi concebida pelos estrategas de Moscovo como um elemento numa complexa economia planificada. Os territórios que formam a Ucrânia foram agrupados, não por quaisquer razões históricas, culturais ou étnicas, mas para organizar um planeamento complexo – queriam ligar as áreas industriais do leste com os portos do sul, como Odessa e a Crimeia, ao ocidente agrícola. Era essa a lógica. Quando essa lógica foi destruída com o fim da União Soviética, este território enquanto unidade integrada começou a desintegrar-se e perdeu a sua razão de ser.

O fim da União Soviética também permitiu que florescessem divisões culturais, o que é a segunda causa da crise. As diferenças na língua, por exemplo, tornaram-se muito mais importantes do que anteriormente. Mas as políticas nacionalistas para impor uma única língua ucraniana foram absurdas porque há muito mais ucranianos a falar russo do que ucraniano – cerca de um terço são de etnia russa e outro terço identifica-se como ucranianos de língua russa.

Há muita gente que fala as duas línguas, mas o russo está muito mais difundido do que o ucraniano, e até estava em ascensão no período pós-independência. Isto porque o mercado mundial favorece a língua dominante, a língua dos negócios, do comércio e da produção. O sistema de mercado reforçou as contradições existentes no interior da sociedade e criou as condições prévias para mais conflitos culturais. Mas os media liberais apresentam esses conflitos como puramente culturais embora, na verdade, as razões subjacentes estejam relacionadas com a economia e as instituições.

O terceiro aspeto da crise tem a ver com a economia ucraniana. No período pós-soviético, a Ucrânia tornou-se numa oligarquia, tal como a Rússia, mas com menos recursos. A quantidade de recursos que a Rússia possuía permitiu a Putin criar um sistema de compromisso permanente e auto-reprodutor. O governo de Putin baseia-se numa permanente construção de consenso entre as elites. Depois de haver o consenso das elites, faz-se uma tentativa para garantir que esse consenso é aceite pelo resto da população através de medidas de bem-estar, etc.

A ideia é concentrar-se no consumo – como compensação para a falta de atividade política – e fica toda a gente mais ou menos feliz. Mas a oligarquia ucraniana nunca teve recursos financeiros e materiais suficientes para facilitar esse compromisso.

Contrariamente ao petróleo russo, o aço ucraniano é muito mais vulnerável no mercado mundial. Isso tem levado a um conflito permanente entre diversos clãs oligárquicos pelo controlo dos recursos públicos existentes, que foi a base da alegada democracia ucraniana. Nesse sentido, a Ucrânia é uma república oligárquica típica, recusando o acesso à política das pessoas vulgares mas, ao mesmo tempo, gerando um pluralismo real para a oligarquia. Este sistema teve as suas crises mas, depois de cada crise, conseguiu-se instituir um ou outro compromisso e isso nunca foi fatal para a estabilidade política. Ou seja, até à crise económica global de 2008.

Esta crise não só desgastou a capacidade da elite ucraniana em conseguir um compromisso, mas também deu entrada a novos atores, como a UE, os EUA e a NATO. Dado o nível da crise no Ocidente, o fator importante para estabilizar o sistema passou a ser a sua expansão. A UE está com grandes problemas, especialmente no sul. A capacidade dessas sociedades em reproduzir-se está tão corrompida pelas políticas neoliberais que dificilmente se poderá dizer como manter essas sociedades em funcionamento sem se afastarem do neoliberalismo. [NT] Mas é precisamente isso o que as elites neoliberais não vão permitir. A única hipótese de fugir ou de resolver estas contradições é alargar o sistema e introduzir mais recursos no mesmo.

Que interesses é que a UE e os EUA têm na Ucrânia?

Em recessões globais anteriores, os EUA foram a locomotiva que puxou os outros países para fora da crise. Mas agora a economia americana está tão débil que, em vez de puxar os outros países para fora da crise, a recuperação americana baseia-se em mergulhar os outros países na crise ainda mais. O outro lado da equação americana é a expansão da capacidade militar, em especial, da expansão da NATO.

As potências ocidentais começaram a ficar mais interessadas na Ucrânia enquanto local de acesso a recursos baratos, incluindo uma força de trabalho barata, disciplinada e relativamente instruída, que pode ser utilizada no Ocidente e, em especial, na UE, para desgastar os estados providência no Ocidente. Mais 10 mil desempregados ucranianos, que podem ser transferidos para o ocidente, como trabalhadores flexíveis, são úteis ao capital ocidental.

A Ucrânia pode desempenhar o mesmo papel na UE que a Ásia Central desempenha na economia russa – fornecendo montes de trabalhadores sem garantias, sem direitos laborais, sem cidadania, sem proteção e que estão totalmente dependentes dos patrões. Os ucranianos estão numa posição em que podem ser transformados neste exército permanente de trabalho migrante.

Se lerem o Acordo de Associação da UE com a Ucrânia, o seu objetivo central é fechar a maior parte da indústria ucraniana. O acordo diz que a UE fornecerá algum apoio financeiro para resolver os problemas financeiros do estado, mas para isso é preciso fechar a maior parte das indústrias.

Em comparação com anteriores acordos de comércio livre, este é definitivamente o pior Acordo de Associação jamais preparado pela UE. Claro que um outro aspeto é que a Ucrânia tem que ser integrada nas estruturas políticas e militares ocidentais, tem que se tornar num verdadeiro membro da NATO. Sejamos claros.

O governo ucraniano gostaria de vir a ser um membro oficial da NATO, mas tornar-se num membro oficial significa alterar a constituição ucraniana. Entretanto, a NATO está relutante em aceitar a Ucrânia como membro formal mas, por outro lado, está ansiosa por envolver a Ucrânia em todas as guerras e alianças estratégicas possíveis.

Por exemplo, vejam a Crimeia. Mesmo no tempo de Yanukovych, já havia discussões sobre correr com os russos e deixar entrar os americanos. A NATO já tinha anunciado a intenção de construir a sua sede em Sebastopol, substituindo ali a frota russa do Mar Negro. Mas, no último momento, alguns setores da elite ucraniana ficaram preocupados, porque perceberam que iam perder a sua indústria. Foi uma apressada viragem de 180 graus – em Setembro de 2013 – quando Yanukovych decidiu não assinar o Acordo de Associação.

O que é que incendiou os protestos na Praça Maidan em Novembro passado?

'.Na Ucrânia ocidental, as pessoas estavam a ficar desempregadas em massa e marginalizadas, enquanto na Ucrânia oriental a indústria continuava a funcionar. Foi precisamente sobre os recursos de leste que se travou a luta. O ocidente não produzia muito e só consumia recursos, mas só a um nível muito baixo, porque preferiam não investir recursos em benefícios sociais.

O centro, que é Kiev, estava a explorar o leste e desenvolvia uma economia muito parasitária, tentando evoluir para uma verdadeira capital europeia, enquanto fazia pobres investimentos no ocidente do país e o mantinha mais ou menos sob controlo. Percebe-se portanto porque é que Kiev está em conflito com o resto da Ucrânia. Em grande parte, é esta economia parasitária de Kiev que está a gerar o apoio ao novo governo atual, e é Kiev que precisa de manter o país unido, para poder continuar a explorar o leste.

Os oligarcas que possuem empresas na Ucrânia de leste vivem nos seus luxuosos palácios de Kiev, com exércitos de criados, incluindo lacaios ideológicos. Enquanto no leste temos uma população operária que vive com salários muito baixos, que se sentem muito frustrados e irritados e que são de língua russa, o que significa que fizeram com que eles se sintam humilhados em termos económicos, sociais e culturais. A Ucrânia de leste é a parte mais produtiva do país, produzindo cerca de 80 por cento do PIB, mas recebem menos do que qualquer outra região.

Esta situação pôde continuar enquanto Yanukovych e a sua gente, que também era do leste, conseguiu manter o controlo da população, através de redes paternalistas e clientelistas. A situação geral foi-se deteriorando mas, pelo menos, sempre se ia dando qualquer coisa aos patrões dos sindicatos e, por vezes, até aos trabalhadores, mesmo que não passassem de promessas. As pessoas do leste continuaram a ter esperança de que, enquanto Yanukovych estivesse no poder, não seriam totalmente esquecidas. Mas, quando a extrema-direita alinhou com as elites neoliberais de Kiev, as coisas ficaram fora de controlo.

Os protestos foram provocados pela atitude repentina de Yanukovych de não assinar o Acordo de Associação, mas passaram muito para além disso. Juntaram-se multidões na Praça Maidan em Novembro de 2013. Não estavam muito preocupados com ideologias, foi política pura. Os grupos oligárquicos queriam sobrepor-se uns aos outros. O importante para perceber o golpe de estado que ocorreu em Fevereiro passado, é que a economia da Ucrânia ocidental ficou arruinado por causa das políticas do mercado livre. A produção industrial que ali foi montada a fim de se encaixar no sistema planeado pan-ucraniano foi destruída depois de 1990 e a maior parte das pessoas ficou no desemprego. Há toda uma geração de jovens que nunca trabalhou e nunca conseguiu arranjar trabalho. Quando muito, arranjavam trabalhos precários. Portanto, tornaram-se alvos muito fáceis para a extrema-direita, que começou a dar-lhes algum sentido à vida, organizando-os e pagando-os para formarem grupos nazis.

Cerca de 10 a 15 mil jovens desempregados do ocidente foram levados para Kiev e pagos para ali viverem, durante meses, a fim de protestar na Praça Maidan. O que é preciso perceber é que, para aquela gente, era o único trabalho que jamais haviam tido em toda a vida. Muitos deles não queriam ir-se embora e alguns deles ainda ali vivem, porque não têm para onde ir. Por fim, agarraram em armas. A violência, inicialmente, não fazia parte do plano dos neoliberais. Há muitas razões para pensar que ela aconteceu espontaneamente.

As potências ocidentais fizeram tudo para apoiar este golpe de estado, sem ter uma estratégia clara do que fazer a seguir. Na altura em que Yanukovych percebeu que o Ocidente queria que ele saísse, fugiu. Foi neste vazio do poder que se instalou o grupo rival.

Mas os EUA também haviam apoiado Yanukovych anteriormente. Foi exatamente por isso que Yanukovych ficou tão fraco. Estava à espera de ter um apoio ocidental sustentado e, de repente, percebeu que o Ocidente tinha deixado de o apoiar e começara a apoiar os seus adversários; ficou com os nervos num feixe, por isso fugiu para a Rússia. Quando Yanukovych fugiu, os seus clientes políticos foram ao ar, o que teve um efeito tremendo na classe operária ucraniana. Porque, depois de este sistema ter desabado, milhões de pessoas ficaram sem controlo; não apenas milhares de mercenários, mas milhões de trabalhadores. É uma coisa muito diferente. Houve comícios em toda a Ucrânia de leste.

Curiosamente, um dos slogans da Praça Maidan era “o sudeste tem que se erguer”, i.e., o sudeste tem que se erguer e apoiar a rebelião contra Yanukovych. Claro que o fizeram! Quando isso aconteceu, Kiev enviou tanques, aviões e artilharia contra eles. Inicialmente, foi um levantamento pacífico por todo o lado, com manifestações, comícios, formação de conselhos, e com representantes locais a votar contra a confiança no governo de Kiev.

O problema também foi que, nessa altura, o novo governo de Poroshenko – formado pelos que ganharam o golpe de estado – também foi mal calculado, porque subestimaram a capacidade de o leste se revoltar. A primeira coisa que fizeram foi votar para cancelar a legislação que garantia os direitos da língua às pessoas de língua não ucraniana. Não é a mesma coisa do que proibir a língua russa ou outra qualquer, porque anteriormente havia garantias legais que foram assim abolidas. Aplica-se não apenas aos russos, mas aos húngaros, polacos, romenos – a qualquer língua não ucraniana.

A ironia é que ninguém no governo ucraniano fala ucraniano, a não ser talvez o líder do partido fascista. Muitos nacionalistas ucranianos mal conseguem proferir meia dúzia de palavras em ucraniano. As pessoas riam-se com os folhetos do Setor da Direita, que é uma coligação de grupos da extrema-direita, porque esses folhetos apelavam para que o ucraniano fosse a única língua no país, mas tinham tantos erros e uma gramática tão pobre que eram os de língua russa que corrigiam esses folhetos. Esta aprovação provocou protestos enormes.

Qual foi a natureza do levantamento na Ucrânia de leste? Quem são os opolchénios?

Primeiro, houve um levantamento armado, que foi reprimido militarmente, em Abril. Havia um acampamento em Odessa, organizado pelos que exigiam uma Ucrânia federal, mas o acampamento foi atacado pela extrema-direita. As pessoas foram forçadas a fugir para os edifícios dos sindicatos junto ao acampamento, mas o edifício foi incendiado. As pessoas tentaram fugir mas os que conseguiram foram mortos na rua. A estimativa oficial dos mortos foi de 46, mas a estimativa não oficial foi de cem ou mais. Os que escaparam foram detidos e metidos na prisão, enquanto os que fizeram a matança foram considerados uns heróis.

Depois disso, Donetsk e Lugansk criaram uma força de autodefesa, ocupando edifícios e depósitos de armas. O local está cheio de armas desde os tempos soviéticos porque é um dos centros de produção e fabrico militar.

Os combatentes são operários, camponeses, mineiros e agora há um número cada vez maior de intelectuais a juntar-se-lhes, na sua maioria vindos da Rússia e de outras partes da Ucrânia. Inicialmente, lutavam por uma autonomia maior, mas as duas repúblicas populares, Donetsk e Lugansk, declararam a independência em Abril passado .

A princípio estavam dispostos a negociar a aceitação de qualquer tipo de acordo federal com a Ucrânia. Mas, depois, as tropas ucranianas bombardearam e lançaram o caos nesses territórios. Na última vez que nos encontrámos com representantes de Donetsk e Lugansk, eles disseram que “depois do que a Ucrânia nos fez, é óbvio que não nos consideram como seus concidadãos. Eles não encaram estes territórios como seus. E nós não queremos continuar neste país, a não ser – a não ser – que este governo seja dissolvido”.

Portanto, houve dois pontos de viragem. O primeiro foi a 2 de Maio, quando as pessoas foram forçadas a pegar em armas. Em certo sentido, isso foi um êxito para o novo governo em Kiev, porque localizaram a rebelião. Inicialmente era uma rebelião pacífica, não armada, de toda a Ucrânia de leste e, por fim, conseguiram concentrar a rebelião em duas regiões. O segundo ponto de viragem foram as eleições organizadas (ou seja, compradas) por um dos oligarcas, Poroshenko, de alcunha o “rei do chocolate” porque possui uma grande indústria de confeitaria. Poroshenko também nomeou vários outros oligarcas para determinadas províncias. Cada oligarca ficou com a província onde possui mais ativos.

Isto é um caso extremo de domínio oligárquico, como num país feudal. Poroshenko ganhou a maioria nas eleições porque aqueles que se opuseram ao golpe foram impedidos de se candidatar. Também gastou o triplo do dinheiro de todos os outros em conjunto e, segundo consta, também subornou as comissões eleitorais. Por fim, parecia ser o mais moderado dos candidatos que puderam concorrer.

Poroshenko tem estado no poder desde junho, data depois da qual tem havido um ataque militar maciço ao leste, comparável a uma operação da II Guerra Mundial, com centenas de tanques, aviação, bombardeamentos, artilharia maciça, etc. Não é uma guerra de guerrilha, é uma guerra a sério. Mas asopolchenie – milícias é a tradução correta – criaram uma força de combate formidável. Claro que há muitos voluntários russos e alguns deles têm uma grande experiência militar.

O governo russo, obviamente, permite que munições e alimentos atravessem a fronteira, e também deixa passar os voluntários. Há organizações militares russas a cooperar abertamente com as opolchenie e há tropas russas que entraram em Donetsk e Lugansk e estão posicionadas ao longo da fronteira para controlar os dois lados, mas não estão a tomar parte no combate ativo. Por outro lado, não é verdade que o governo russo esteja a dirigir essas operações das opolchenie.

Há um conflito permanente entre as elites russas, em especial depois da primeira vaga de sanções contra a Ucrânia. Secções da elite russa começaram a entrar em pânico e também detestam estas repúblicas populares porque são muito ameaçadoras para o estado russo, provocando debates sobre nacionalizações, derrube da oligarquia, etc.

A indústria russa também está a fornecer sobressalentes para as forças armadas ucranianas e Poroshenko teve que reconhecer que, sem o fluxo regular de sobressalentes e técnicos da Rússia, não teria sido possível que o exército ucraniano continuasse a combater.

Qual é a natureza das repúblicas populares de Donetsk e Lugansk e quais são as relações da Rússia com elas?

Pouco depois de Donetsk, e a seguir Lugansk, se terem declarado repúblicas, surgiu uma grande discussão sobre o seu futuro. Por um lado, elas surgiram dado o apoio maciço dos operários mas, por outro lado, não podem sobreviver sem a cooperação de Moscovo e do governo russo. As elites russas estão a usar todas as oportunidades para influenciar, manipular e subverter essas forças.

No interior das repúblicas, também há tendências contraditórias. A exigência geral é para o bem-estar, a instituição duma república popular social – não uma república socialista, mas social – o que significa que um estado social deve ser incorporado nas estruturas institucionais do sistema. Há muitas exigências de nacionalizações e, por exemplo, foram suspensas as “reformas” na saúde com vista à sua comercialização (privatização).

São estas as reivindicações dos combatentes no terreno. Simultaneamente, as repúblicas são instáveis e ineficazes e a sua legitimidade também é questionada (pelo poder oligárquico a nível mundial, no seio das elites russas e no Ocidente, claro). Portanto, há um conflito político permanente dentro dessas repúblicas.

Embora haja exigências progressivas, por um lado, por parte das bases, também há elementos burgueses no seio dos líderes republicanos e uma pressão permanente de Moscovo para não se avançar numa direção mais progressista, usando a sua capacidade de controlar a fronteira e de fornecer ou não mantimentos e munições para chantagear as repúblicas. Por exemplo, tentaram a todo o custo, infelizmente com algum sucesso, bloquear os programas de nacionalizações que foram anunciados nos dois países. Se avançassem, Moscovo cortar-lhes-ia os abastecimentos. Portanto, há uma luta permanente. Mas também há uma luta permanente, e é um movimento crescente, para apoiar essas mesmas exigências. Portanto, é uma luta que vai continuar dos dois lados da fronteira.

O problema para os que estão a tentar controlar Donetsk e Lugansk a partir de Moscovo é que a opolchenie está a ficar mais radicalizada e é alimentada por voluntários que são muito radicais e da ala esquerda, na sua maioria. Claro que são nacionalistas, mas mesmo os que são nacionalistas, apoiam basicamente as exigências sociais.

Portanto, em sentido político, Moscovo está a travar uma batalha difícil. Mas ainda têm instrumentos muito importantes. Se fecharem a fronteira, as repúblicas serão derrotadas. Por isso é que até agora tem havido uma situação de empate. Mesmo as medidas progressistas que foram declaradas não foram implementadas. Em parte por causa do estado de guerra, porque é preciso concentrarem-se na parte militar; mas o facto de a opolchenie se estar a radicalizar é muito importante.

Uma das figuras mais populares na opolchenie foi Igor Strelkov, que não era nada de esquerda – na verdade, ele afirma ser monárquico, adora o império russo e é um romântico em relação aos czares russos, etc – mas, enquanto comandante da opolchenie em Donetsk, arregimentou todo o tipo de radicais da esquerda. Também conseguiu afastar da opolchenie muitos nacionalistas e gente de direita – mas, por razões técnicas: disse que eram maus combatentes, não obedeciam a ordens, não respeitavam o comando da república popular, etc.

A certa altura, começou a tornar-se visível que Strelkov estava a ficar muito mais popular na Rússia do que Putin. A popularidade de Strelkov ia aumentando à medida que a popularidade de Putin diminuía, porque este não tomava uma posição firme contra o Ocidente.

O conflito tornou-se evidente no início de julho, quando Strelkov retirou de Sloviansk, quando as suas tropas foram cercadas pelas tropas ucranianas e se esperava que ele fosse morto. Ele saiu de Sloviansk, organizou a defesa de Donetsk e dominou uma conspiração para entregar Donetsk às tropas ucranianas, uma conspiração que foi ali organizada por figuras pró-Kremlin.

Tornou-se óbvio assim que eles iam entregar Donetsk, provavelmente de acordo com Poroshenko, em troca da garantia de que a Crimeia ficaria a são e salvo nas mãos da Rússia. Esta conspiração foi derrotada e toda essa gente pró-Kremlin foi corrida de Donetsk. Não prenderam ninguém, só lhes pediram delicadamente que saíssem da cidade e, em resultado, Strelkov passou a ser inimigo do Kremlin. Por fim, conseguiram ver-se livres dele, cortando-lhe os abastecimentos e, quando ele ficou sem munições e sem mantimentos, foi forçado a ir a Moscovo. Nessa altura, parece que ficou detido e depois apresentou a sua carta de demissão. Se a assinou ou foi forçado a assiná-la, ninguém sabe mas depois desapareceu e ninguém conhece o seu paradeiro.

Foi há cerca de um mês. Surgiram muitas lendas, incluindo um vídeo falso que o mostra em Ferguson . Isto dá-nos uma ideia de quão intensa é a luta em torno destas repúblicas e de como a luta ainda está no início.

Como devemos analisar o futuro das repúblicas em relação ao resto da Ucrânia? A luta das repúblicas ainda é pela autonomia?

Vai haver uma real necessidade de formar líderes políticos representativos. O povo que está a lutar considera muito mais a Nova Rússia do que estas duas repúblicas. Porque a Nova Rússia também é Kharkov, Odessa e todo o sudeste.

Mas, quando Putin apela a um cessar-fogo, a questão é se a opolchenie vai deixar de lutar. Especialmente porque estão a ganhar. Conseguiram ganhar contra um exército que provavelmente tem 60 vezes mais tanques, etc, em parte por causa das suas táticas de guerrilha. Mas também porque a moral das tropas ucranianas é muito baixa, desertam e não querem ir para a guerra. Por vezes desertam com armas e tudo e passam-se para a opolchenie, enquanto outros apenas fogem. Já desertaram milhares. Centenas passaram-se para o lado da opolchenie e agora estão a formar batalhões de desertores ucranianos. Querem formar um regimento. Portanto, há gente suficiente para formar um regimento e provavelmente ainda mais.

Por outro lado, a forma como os generais ucranianos se comportam é terrível porque estão a enviar gente como carne para canhão. As baixas são incríveis, semelhantes às baixas durante a II Guerra Mundial. A opolchenie é sobretudo formada por voluntários e por gente que teve formação militar, muitos dos quais lutaram na Chechénia ou no Afeganistão. São combatentes que são mais ou menos competentes para o combate. Enquanto do lado da Ucrânia estão a enviar recrutas que ainda não tiveram um treino adequado. Portanto, as baixas são muito altas e isso também deita abaixo o moral das tropas ucranianas e origina muito descontentamento.

Agora os generais ucranianos por trás das linhas da frente têm que usar coletes à prova de bala para não serem alvejados pelos seus próprios soldados. Penso que é por isso que o movimento se vai espalhar ao resto da Ucrânia.

A luta já não é pela autonomia, porque agora estão a exigir a independência. Acho que se a Nova Rússia passasse a ser um novo país na Europa, seria uma coisa boa. O terreno em comum que têm com o resto da Ucrânia é que querem ver-se livres do governo de Kiev.

Uma vez derrotado o governo de Poroshenko, eles vão negociar. E terão que decidir se querem uma federação ou um país independente – ou talvez a Ucrânia se desintegre em vários países. Neste caso, talvez o ocidente se divida e talvez a Hungria apanhe uma região qualquer. Mas o terreno comum entre os povos do sudeste e os movimentos é que, primeiro, precisam de se livrar do governo de Kiev e, depois, têm que arranjar forma de negociar pacificamente e numa base democrática.

Se conseguirem livrar-se do atual governo, então a possibilidade de a Ucrânia se manter unida é maior. Poroshenko vai tentar manter-se, mas está a perder terreno e a extrema-direita está cada vez mais contra ele. O exército da Nova Rússia está a ganhar, o seu exército é cada vez menos leal e ele está dependente apenas dos serviços secretos e dos serviços de segurança. Mas dificilmente nos podemos manter no poder apenas com os serviços de segurança a apoiar-nos. Portanto, a base do poder dele está a diminuir muito rapidamente. O seu trunfo é que ele tem o apoio dos EUA e da UE. Mas isso não será suficiente se ele não tiver qualquer tipo de apoio interno.

Quais foram os avanços militares da opolchenie nas últimas semanas? É um ponto de viragem?

Penso que é um ponto de viragem. As tropas ucranianas têm estado em fuga aberta e a opolchenie avança em toda a linha da frente. Há muitas tropas ucranianas cercadas. A posição da opolchenie tem sido desarmar os combatentes ucranianos e depois deixá-los ir embora. Não mantêm muitos prisioneiros em parte porque não têm comida suficiente. Mas também pensam que é uma boa propaganda para eles. Por vezes mantêm-nos durante algumas semanas, e depois pedem aos pais para irem buscar os recrutas. Quando os pais chegam, voltam para casa com os filhos. Portanto, temos todas essas imagens de tropas ucranianas a ir-se embora, desarmadas. Ou partem para a Rússia mas, claro, a Rússia manda-os de volta para a Ucrânia. Mas o que também acontece é que, depois de passar algum tempo com a opolchenie, muitos deles preferem ali ficar e lutar do outro lado.

Estamos a assistir a centenas de tropas a recuar, desarmadas e é uma derrota moral esmagadora – seria uma total derrota moral para qualquer exército.

As fronteiras entre as repúblicas e a Rússia estão nas mãos dos revoltosos, o que significa que haverá um fluxo de material – alimentos e munições para as repúblicas – e também se torna muito mais difícil o controlo do governo russo porque, enquanto controlarem toda a fronteira, haverá sempre incursões. O alvo seguinte foi Mariupol, que é um grande porto e que já está cercado, mas a opolchenie não quer tomar a cidade, porque infligiria uma pesada destruição e baixas entre a população civil, o que a opolchenie está a tentar evitar.

Em abril passado, havia um apoio maciço a Donetsk em Mariupol, mas agora está a aumentar o ceticismo entre as pessoas por causa da liderança caótica em Donetsk. Apesar disso, os revoltosos estão a tentar convencer as tropas ucranianas a sair da cidade. Depois de assegurar Mariupol – ou mesmo antes disso – avançarão para Berdyansk, outra importante cidade, que já fica fora da área das repúblicas Donetsk e Lugansk. Tanto quanto sei do serviço de notícias Coronel Cassad , a tendência é que eles pensem que Moscovo, mais cedo ou mais tarde, os forçará a parar.

A 6 de setembro já havia um acordo de cessar-fogo imposto à opolchenie por Moscovo. Mas não é minimamente garantido que vá durar. Os revoltosos estão a tentar avançar o mais possível para desgastar o regime de Poroshenko e impedir as hipóteses de Moscovo e de Kiev de fazer um acordo nas suas costas.

Quais são as perspetivas para o movimento conseguir uma mudança social? E quem lidera este movimento?

O que está a acontecer na Nova Rússia é um movimento revolucionário, embora ainda não seja uma revolução em termos de mudança social. Mas é preciso ganhar a guerra. Se a guerra for ganha, ainda é preciso ganhar na frente política. Mas isso é só uma possibilidade. Nunca desde há muitos anos – talvez desde a revolução espanhola – assistimos a milhares, ou mesmo centenas de milhares, de operários mobilizados.

Há milhares de operários em armas. E, claro, os oligarcas de Moscovo estão com medo que isso se espalhe à Rússia. Há muita gente a falar de socialismo. Outros falam duma versão comprometida duma república social, o que significa um estado social, prioridades sociais e uma certa socialização de propriedade, incluindo fábricas, minas e caminhos-de-ferro. A atual liderança da república de Donetsk estava relutante em implementar as mudanças que eles mesmos declararam necessárias. Por exemplo, em vez de nacionalizar a propriedade dos oligarcas, colocaram cartazes em Donetsk dizendo que a república combaterá os oligarcas.

É normal que haja uma liderança burguesa dum movimento que, na sua composição e ímpeto, embora não seja necessariamente proletária, é plebeia, é um movimento popular. Estas lideranças burguesas fazem o possível para minimizar o potencial para mudanças sociais, e limitar a expansão do movimento. Mas pode acontecer que estas lideranças acabem por ser substituídas, como aconteceu na Revolução Francesa e na Revolução Russa que começaram com líderes muito moderados. O importante para a esquerda é criar a força política e o enquadramento político para levar por diante a próxima fase da revolução.

Isto não é a teoria estalinista das fases; o que significa é que é preciso radicalizar a revolução e avançar. Embora haja uma presença muito forte de forças progressistas, não significa que toda a gente seja de esquerda – há todo o tipo de elementos conservadores dentro do movimento. Por exemplo, tivemos aquele projeto com ativistas políticos em Belgorod durante quase três meses e descobrimos que, em geral, essas pessoas são muito progressistas em termos sociais, defendem o estado social, os direitos sociais, o poder popular, etc. mas, ao mesmo tempo, são muito conservadoras culturalmente. Dão valor aos valores da família, são positivos em relação ao cristianismo como sistema nuclear de valores – embora nem sempre pratiquem a religião – e a maior parte deles são homofóbicos, etc.

Mas, simultaneamente, isto é uma coisa que pode ser remediada. Que mais se pode esperar duma sociedade que foi inundada de propaganda reacionária e que sobreviveu a uma terrível derrota do socialismo ao estilo soviético? É muito natural que as pessoas tenham todas essas ilusões e contradições e problemas. Temos que trabalhar com eles e contribuir para as suas lutas, porque esses problemas podem ser ultrapassados com a prática.

Recordo o que o subcomandante Marcos disse sobre todos esses esquerdistas que foram para a selva e tentaram educar os índios; descobriram que havia muitas coisas que tinham a aprender com os índios. Não vejo porque é que os intelectuais não devam aprender com os operários e camponeses e com as pessoas da classe média em Donetsk ou Kharkov ou Odessa. Isto é uma luta para durar. Mas não podemos lutar e ganhar a luta se não exprimirmos uma solidariedade básica com a causa. Porque o que alguma esquerda está a fazer é dizer que o movimento não é homogéneo e têm que provar que o movimento é genuinamente progressista.

Porque é que têm que provar o que quer que seja a um punhado de intelectuais em Moscovo ou em Paris? É exatamente o contrário. A esquerda tem que provar aos operários e mineiros e camponeses e ao povo trabalhador que merece a atenção deles.

O que é que a esquerda no Ocidente deve fazer e como podemos desenvolver movimentos de solidariedade?

Temos que montar campanhas de solidariedade mas estas têm que estar ligadas a outras campanhas de solidariedade para alargar a luta. Penso que seria bom se desfraldássemos a bandeira da Nova Rússia juntamente com a bandeira da Palestina, por exemplo. As campanhas de solidariedade não devem estar isoladas umas das outras, têm que estar integradas. Estão a aparecer tarefas não militares, e são necessários médicos, engenheiros, trabalhadores solidários e programas humanitários, como noutros lugares.

As pessoas têm que ir para a região para ver quantos danos têm sido causados pela guerra; e tem que haver ajuda material, formação e educação, etc. Nós na Rússia podemos facilitar isso. Já há voluntários de França e de Espanha, mas penso que não são precisos mais combatentes; pelo contrário, são precisos trabalhadores solidários, pessoas que ajudem na reconstrução, em especial à medida que as tropas governamentais vão recuando e vão sendo libertadas áreas.

Penso que a opolchenie tem que registar mais vitórias e a sociedade russa tem que desenvolver mais movimentos de solidariedade juntamente com as sociedades ocidentais, que também têm que fazer o mesmo. Penso que temos que olhar para estes acontecimentos da mesma forma que olhamos para a Palestina, por exemplo. Há todo o tipo de contradições no seio do movimento, tal como na Palestina – não é um movimento homogéneo. Nem todos os elementos do movimento são progressistas.

O mesmo se passa na Nova Rússia. Não é um movimento homogéneo, progressista, revolucionário. É uma coligação, que envolve diferentes elementos. O movimento começou com pessoas a proteger as estátuas de Lenine, alguns deles desfraldaram bandeiras vermelhas, etc., mas há elementos de nacionalismo russo e também há elementos mais conservadores que querem que a Nova Rússia seja como a Ucrânia antes da crise.

Temos que apoiar a esquerda no seio da Nova Rússia e no seio da opolchenie. Estão a ficar mais fortes mas precisam do nosso apoio e solidariedade. E temos também que importar este movimento revolucionário ucraniano para a Rússia, o que estamos a fazer com algum êxito – porque cada vez há mais gente envolvida no movimento solidário, o que está a tornar-se numa força por si mesma e já está a começar a influenciar a política russa e a opinião pública russa.

Isto significa que temos que instituir a solidariedade para lá das fronteiras e temos que ligar estes movimentos de solidariedade na Rússia com os movimentos antiguerra, anti NATO e anti-imperialista no Ocidente.

28/Setembro/2014

[NT] “Neoliberalismo” é um rótulo usado na Rússia e noutros sítios, incluindo os EUA, para um agressivo capitalismo de mercado livre.

[*] Boris Yulyevich Kagarlitsky: teórico marxista e sociólogo russo. É coordenador do projeto Crise Global Transnational Institute e diretor do Institute of Globalization and Social Movements (IGSO) em Moscovo. Kagarlitsky ganhou o Prémio Deutscher Memorial pelo seu livro The Thinking Reed: Intellectuals and the Soviet State (Verso, 1988).

O original encontra-se em: www.counterfire.org/… . Tradução de Margarida Ferreira.

Esta entrevista encontra-se em http://resistir.info/ .

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