NAS MONTANHAS DA COLÔMBIA

Nos últimos anos, venho cumprindo tarefa partidária no sentido de restabelecer e estreitar as relações do PCB com organizações e partidos revolucionários, com destaque para a América Latina. Este trabalho político tem como objetivo principal o reforço do internacionalismo proletário, na luta anti-imperialista e pelo socialismo.

A América Latina é palco de uma intensa luta de classes, antagonizando forças populares dispostas a aprofundar mudanças sociais e as oligarquias associadas ao imperialismo, sobretudo o norte-americano.

Ao XIV Congresso Nacional do PCB, realizado em outubro do ano passado, compareceu a grande maioria dos Partidos Comunistas da região. Além de viagens recentes de camaradas da direção do PCB e da UJC (União da Juventude Comunista) a Argentina, Chile e Uruguai e outros países, pessoalmente estive na Bolívia, Cuba, Colômbia, Equador, Honduras, Paraguai, Peru e Venezuela. Nestas viagens, tive contatos com camaradas de Costa Rica, El Salvador, Haiti, Nicarágua, Panamá, Porto Rico e República Dominicana.

imagemCrédito: PCB

Numa dessas viagens, fui convidado a conhecer presencialmente a mais antiga e importante organização insurgente do continente: as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo (FARC-EP), que há 46 anos luta nas montanhas pela libertação nacional e pelo socialismo na Colômbia. A organização foi criada em função de uma necessidade objetiva de os camponeses colombianos defenderem seus pedaços de terra, suas casas e suas famílias da violência do Estado e de milícias a serviço do latifúndio.

Tive que tomar solitariamente a decisão de aceitar o convite e viajar no dia seguinte para as montanhas andinas, já que era o único membro do PCB naquela viagem e, por razões óbvias, não poderia consultar meus camaradas da direção do Partido no Brasil. Portanto, resolvi passar alguns dias num acampamento das FARC na Colômbia por iniciativa própria, sob minha exclusiva responsabilidade, e não por decisão partidária. Mas estava convicto de que minha atitude era compatível com a linha política do Partido.

Valeram a pena as duras viagens, de ida e volta, por regiões e países dos quais não me recordo, até porque toda aquela região é habitada pelo mesmo povo, dividido artificialmente em vários países, pelos interesses do capital. Passei por belas paisagens, conheci uma fauna e uma flora exuberantes, alternando meios de transporte os mais variados, como automóveis, canoas e mulas, além de saudáveis mas cansativas caminhadas.

Ficarão para sempre em minha memória os diálogos que mantive com os jovens guerrilheiros e guerrilheiras que conheci e as fotografias que não pude tirar do trabalho dos camponeses, das creches, escolas e postos de saúde criados e mantidos pelo “Estado” guerrilheiro em seu território, do cotidiano do acampamento.

Foram momentos que me marcaram, reforçando valores como a disciplina partidária, o trabalho coletivo, a camaradagem. O aprendizado nas reuniões diárias do coletivo, ao anoitecer, para repercutir documentos políticos e notícias atualizadas, da Colômbia e do mundo todo, ouvidas nos rádios que fazem parte do enxoval dos militantes. As bibliotecas volantes, onde não faltam clássicos do marxismo e da literatura.

Impossível esquecer a entrevista que fiz em “portunhol” para todo o contingente guerrilheiro, através da Rádio Rebelde.

Como não guardar com carinho o único objeto físico que pude trazer da viagem, um caracol que ganhei do jovem guerrilheiro que me serviu de guia e apoio durante a estadia, no dia em que nos despedimos sem que pudéssemos conter as lágrimas que misturavam sentimentos de fraternidade e paternidade.

Muito mais do que a curiosidade, o espírito de aventura e a simpatia pelas FARC, falou mais alto em minha decisão o dever revolucionário de contribuir, de alguma forma, para os esforços para uma solução política da complexa questão colombiana. Muito antes da viagem e da instalação de mais sete bases militares norte-americanas na Colômbia, eu já tinha consciência de que esse país vinha se transformando numa cabeça de ponte do imperialismo na América Latina, onde cumpre o papel que Israel exerce no Oriente Médio.

Num artigo que publiquei há alguns anos (“Impedir a guerra imperialista na América Latina”), já dizia textualmente:

”… para dar solidariedade aos povos venezuelano, boliviano, equatoriano; para lutar para que possam avançar as mudanças e a luta de classes na América Latina, mesmo em processos mais mediados e contraditórios; para evitar que haja guerra e retrocesso em nosso continente; para tudo isso, há um pré-requisito: derrotar o verdadeiro eixo do mal, os braços do imperialismo norte-americano em nosso continente: o governo fascista e o Estado terrorista da Colômbia!”

Já tinha claro, quando resolvi aceitar o convite, que não interessa à oligarquia colombiana, tampouco ao imperialismo, reconhecer o caráter político da guerrilha e, muito menos – para não lhe dar protagonismo – estabelecer com ela um processo de diálogo que possa pôr fim ao conflito armado na Colômbia, que dificilmente será solucionado pela via militar.

Estamos diante de uma espécie de empate, em que nem as guerrilhas (FARC e também a ELN, que segue lutando) têm muitas possibilidades para expandir o território sob seu controle (quase um terço do país), nem as forças militares e paramilitares conseguem derrotá-las.

À oligarquia colombiana interessa a manutenção do conflito, para se locupletar dos bilhões de dólares dos programas militares bancados pelos EUA e atribuir cinicamente aos insurgentes a mais rendosa atividade do grupo que detém o poder no país: exatamente o narcotráfico.

Aos EUA, não interessa a solução do conflito, para poder justificar a “guerra contra o narcoterrorismo”, que lhe permite manipular a opinião pública para reinstalar a Quarta Frota, criar mais sete bases militares na Colômbia, dar um golpe em Honduras, botar milhares de soldados no Haiti e agora na Costa Rica e firmar acordos militares com vários países na região, lamentavelmente inclusive com o Brasil, assinado recentemente.

O objetivo do imperialismo é reforçar sua presença militar para tentar desestabilizar e derrubar governos progressistas, em especial o da Venezuela, apertar o cerco a Cuba, evitar o fortalecimento da ALBA (Alternativa Bolivariana para as Américas), frear o processo de mudanças na Bolívia e outros países, tudo isso de olho grande nas extraordinárias riquezas naturais do continente, como petróleo e gás, água e minerais.

Nos anos 90, houve na América Latina um processo negociado de desmilitarização de grupos guerrilheiros. Na América Central, todos esses entendimentos resultaram em acordos, com a transformação das guerrilhas em organizações políticas legais. Duas delas, aliás, estão hoje no governo de seus países: a FMLN (El Salvador) e a FSLN (Nicarágua). Na Colômbia, entretanto, este processo terminou com o cruel assassinato de mais de 4.000 membros da União Patriótica, partido político então legal, que incorporava parte dos militantes das FARC que desceram das montanhas, do Partido Comunista Colombiano e de outras organizações de esquerda.

Portanto, as FARC não podem promover uma rendição unilateral, incondicional, uma paz de cemitérios, jogando fora um patrimônio de décadas de luta e submetendo seus militantes a um genocídio. O que pretendem é um diálogo que torne possível uma paz democrática, que ponha fim não só ao conflito, mas ao terrorismo de Estado, à expulsão de camponeses de suas terras, às milícias paramilitares, ao assassinato e à prisão de milhares de militantes e que assegure liberdades democráticas e verdadeiras mudanças econômicas e sociais.

Mas o início de um diálogo de paz na Colômbia – que interessa a todas as forças e personalidades democráticas, pacifistas e anti-imperialistas e não apenas aos comunistas – só será possível através de uma ampla campanha internacional pela paz com justiça social e econômica na Colômbia, cujo êxito tem como pré-requisito o reconhecimento das FARC e do ELN como são em verdade: organizações políticas beligerantes.

Foi para contribuir para essa necessária e urgente campanha – conhecendo e divulgando um pouco mais a história, a realidade, os pontos de vista e as perspectivas das FARC – que resolvi conviver alguns dias com os guerrilheiros e conversar, sem preocupação com o relógio e o celular, com alguns de seus comandantes, em especial Iván Marquez e Jésus Santrich, que me visitaram no acampamento em que me hospedei.

Não voltei ao Brasil para fazer proselitismo sobre uma forma de luta que considero incompatível com a atualidade brasileira, mas que respeito como legítimo direito dos povos na luta contra a opressão. Voltei determinado a contribuir para a abertura de um diálogo político na Colômbia.

O PCB e outras organizações e personalidades entendem a importância desse diálogo para o avanço dos processos de mudança na América Latina, que depende da neutralização da agressividade do imperialismo em nosso continente, cujo centro de gravidade é o terrorismo de Estado colombiano.

A Colômbia é o segundo destino mundial de ajuda financeira para fins militares e de material bélico dos EUA, após Israel; tem as Forças Armadas mais numerosas, armadas e treinadas da América do Sul. Um dos objetivos principais do imperialismo, diante da crise sistêmica do capitalismo, é fomentar guerras localizadas, sobretudo contra países fora de sua esfera de dominação e, preferencialmente, possuidores de riquezas naturais.

O Estado narcoterrorista colombiano é o instrumento para provocar conflitos militares na região, como foi o caso da invasão do espaço aéreo equatoriano para o ataque ao acampamento do comandante Raul Reyes, o Secretário de Relações Internacionais das FARC, que tinha como tarefa exatamente promover trocas humanitárias de prisioneiros e abrir espaço para uma solução negociada do conflito militar.

No caso da Venezuela – onde o processo de mudanças na região mais avança – as provocações são mais ousadas, constantes e perigosas. A Colômbia, que já infiltrou milhares de paramilitares no território venezuelano, para preparar um golpe contra Chávez, agora acusa a Venezuela de abrigar guerrilheiros das FARC, utilizando-se de manipulações tecnológicas, como as que vem fazendo até hoje com o inacreditável computador pessoal de Raul Reyes, que resistiu incólume a um bombardeio aéreo intenso, em que todo o acampamento foi destruído e morreram 26 pessoas.

Os EUA já se associaram a estas “denúncias” do governo colombiano e já agitam propostas de levar o caso para organismos multilaterais que hegemonizam. As relações diplomáticas entre a Colômbia e a Venezuela estão cada vez mais tensas. É necessária uma urgente ação política para evitar o agravamento do conflito, que só interessa ao imperialismo e à direita, não só colombiana, mas de todos os países da América Latina, que fazem de tudo para ajudar a derrubar o governo venezuelano, através de sua satanização e manipulação.

Aqui no Brasil não é diferente. Toda a mídia burguesa se associa às denúncias do governo colombiano e a direita aproveita o momento eleitoral para criticar o governo brasileiro exatamente em relação a um dos poucos aspectos que os internacionalistas nele valorizamos. Apesar da vacilação, da dubiedade e das contradições – em face do objetivo principal da política externa brasileira de transformar o país numa grande potência mundial -, ao Estado brasileiro não interessa a guerra imperialista, mas sim a expansão do capitalismo brasileiro.

A direita, para instigar a guerra entre a Colômbia e a Venezuela, tenta desqualificar o Brasil como mediador da crise. Para isso, acusa o partido do Presidente da República de relações e atitudes que infelizmente não são verdadeiras, pois poderiam ter ajudado a solucionar o conflito colombiano.

Na Colômbia, é expressivo o movimento conhecido como “Colombianos pela Paz” – que estimula a troca de prisioneiros e tenta criar um ambiente favorável ao diálogo –, liderado pela Senadora Piedad Córdoba, com quem participei, em outra ocasião, de reunião em Bogotá para tratar do tema da paz naquele país, juntamente com outros militantes latino-americanos, dentre os quais Carlos Lozano, do Burô Político do Partido Comunista Colombiano, um dos dirigentes internacionalistas mais dedicados à solução do impasse em seu país.

Mas essa campanha não será exitosa se não contar com a ampla participação de governos, instituições e personalidades democráticas e progressistas de vários países, sobretudo da América Latina.

E, na América Latina, o Brasil – em função de sua importância e sua liderança – é o país que reúne as melhores condições para viabilizar o diálogo colombiano, como fiador político, liderando um conjunto de países e organizações multilaterais da região, de preferência a UNASUL (União das Nações Sul-Americanas), que não conta com a presença indesejável dos Estados Unidos.

É correta a iniciativa da diplomacia brasileira de levar a discussão do novo conflito para o espaço da UNASUL e tentar ajudar a mediá-lo. Mas não se pode ter ilusão de que o novo Presidente colombiano, que tomará posse em alguns dias, recuará nos projetos belicistas do consórcio EUA/Colômbia. Este não é o último gesto raivoso de Uribe, como muitos imaginam. Este é o primeiro gesto de Santos antes da posse, combinado com Uribe, para iniciar seu governo com voz grossa, mas com pouco desgaste. Santos não foi só o candidato de Uribe. Foi seu Ministro da Defesa, responsável pela aplicação do famigerado “Plano Colômbia”. É o uribismo sem Uribe. Não nos esqueçamos da invasão de Israel à Faixa de Gaza, antes da posse de Obama, para preparar a transição para o imperialismo sem Bush.

Por isso, será importante, mas insuficiente, a distensão do atual conflito entre Colômbia e Venezuela. Isto resolve uma parte da questão no curto prazo, mas não resolve a causa do problema. O Brasil deve ir além dessa iniciativa e se empenhar numa solução negociada do conflito interno colombiano. E isto só será possível se sentarem à mesa, com observadores internacionais credenciados pelas partes, os verdadeiros atores em conflito: as organizações políticas insurgentes e, mais do que o governo, o Estado colombiano.

Para ser conseqüente com o objetivo do Estado brasileiro de transformar o nosso país em uma referência no âmbito mundial, seria muito mais eficiente patrocinar um diálogo que pode distensionar o pesado ambiente interno colombiano, que paira sobre a América Latina, do que liderar tropas de ocupação no Haiti.

Além do mais, desmontar o “Cavalo de Tróia” montado pelo imperialismo na Colômbia não serve apenas para evitar uma guerra com a Venezuela ou a derrubada de seu governo. Como disse Fidel Castro, as bases militares ianques na Colômbia são punhais no coração de toda a América Latina, inclusive, não nos iludamos, sobre o Brasil, cujas extraordinárias riquezas naturais – entre elas a biodiversidade da Amazônia, as imensas reservas de água doce e o pré-sal – são os principais objetos da cobiça dos Estados Unidos em todo o continente.

* Ivan Pinheiro é Secretário Geral do PCB

25 de julho de 2010