O governo francês corresponsável pelo massacre de “Charlie Hebdo”

A França está em convulsão, afetada pela confusão e invadida pelos medos (que quase sempre desembocam em comportamentos xenófobos), porque desta vez a guerra que tanto provocaram e alentaram seus governantes não é acompanhada somente pelas televisões. Agora as balas de um lado e do outro ressoam nas ruas de Paris e seus arredores, e como não poderia ser de outra maneira, existem mortos. Alguns, como os colaboradores do periódico “Charlie Hebdo”, massacrados em seu local de trabalho. Outros, fuzilados pela polícia francesa, que em seu afã de “encontrar culpados”, militariza com mais de 80 mil efetivos a capital e cidades adjacentes.

Esta é a imagem que mostra ao mundo, neste particular início de ano, um país que, diferente dos Estados Unidos, sempre buscou dissimular sua fixação em violência, e dentro dele, as “façanhas” de anos de terrorismo estatal.

A França, a da guilhotina na qual perderam a vida tantos inocentes (infelizmente pobres a maioria deles, que não tiveram o mínimo direito à defesa). A França, a de quatrocentos testes atômicos em outros tantos lugares do planeta, contaminando e destruindo o ecossistema. A França, a das guerras imperiais e colonialistas na Argélia, em Chad, na África e no Oriente Médio. Basta recordar o poder militar francês, capaz de jogar no lixo aquelas frases ilustres de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, arrasando populações inteiras com seus exércitos, bombardeando territórios muito distantes de seus locais habituais de residência, torturando de maneira selvagem os revolucionários haitianos e argelinos, encarcerando centenas de militantes bascos, bretões ou corsos (todos eles envolvidos em rebeldias independentistas) ou exportando a doutrina militar de extermínio para diversos pontos do planeta, como Argentina, por exemplo, em que os militares gorilas locais leram e releram manuais elaborados por seus colegas vizinhos da Torre Eiffel.

Neste caso, a maioria da imprensa corporativa mundial com indisfarçável morbidez, não escapa às leis gerais. Um grupo de comando simpatizante do Al Qaeda ou do ISI (quem se importa), irrompe na redação de um semanário humorístico e assassina grande parte da redação, alguns dos integrantes eram conhecidíssimos por suas caricaturas e desenhos carregados de um humor irreverente, que às vezes causam graça e outras, decididamente, não. Trata-se, desde já, de um crime brutal, porém não menos importante que o de centenas de jornalistas assassinados gota a gota em Honduras, no México ou na Guatemala.

Agora, um parágrafo à parte é merecido por este tipo de “jornal humorístico” que, como no caso de “Charlie H.”, há vários anos, aborda temas – de maneira burlesca – contra o profeta Mohammed e, assim, contra todo o Islã. Por isso, as ameaças choviam a granel, porém seus diretores jamais pensaram que iam ser vítimas de uma “quinta-feira negra”.

O que ocorre é que nos tempos atuais, o humor não outorga luz verde e existem temas que não podem ser abordados em tom de brincadeira. Sobretudo, se ofendem a escolha religiosa de milhões de pessoas no mundo. Por um lado, porque as religiões são geralmente manipuladas pelos poderosos ou são parte importante do sistema de opressão, em outras ocasiões, como já ocorreu com os movimentos cristãos latino-americanos denominados “do Terceiro Mundo”, ou com distintas experiências do Islã, podem ser utilizadas como uma ferramenta de tomada de consciência e da luta anticolonial.

Agora, o grupo extremista que atacou os escritórios de “Charlie H.” não era desconhecido pela inteligência francesa, já que vários deles, em ocasiões totalmente distintas às atuais, saíram do país para formar as “milícias da liberdade” que tentaram, sem êxito, derrotar o presidente sírio Bashar Al Assad. Outros, irmãos, primos ou vizinhos destes que agora foram fuzilados pela polícia francesa, combateram ao lado da OTAN, na Líbia e no Iraque. Equipados com armamento de primeira tecnologia, auxiliados economicamente pelo dinheiro depositado em bancos europeus ou do Oriente Médio por xeiques, emires ou reis, porém também por muitos empresários europeus. Os mesmos que hoje arrancam os cabelos e clamam aos céus pela “liberdade de expressão”, são os que usam a palavra para violá-la e perseguir aqueles que a praticam.

Existe um momento (o mesmo ocorreu com as lideranças de Washington) em que o Frankestein construído com tanto esmero e disciplina decide caminhar pelos próprios pés. É possível observar isso com os talibãs afegãos ou com as próprias milícias mercenárias na Líbia. O denominado “Estado Islâmico” não é outra coisa que isso, e quando se chega a esse ponto, a guerra que antes era bem vista pelos ambiciosos do Ocidente, se converte em um pandemônio de horror e medo desesperado em seus próprios territórios. Tudo isso pode ser visto e vivenciado esta semana com os trens e o metrô londrinos interrompidos por uma simples chamada com “aviso de bomba”, ou em Madri, com ameaças que mencionavam o 11/M da Estação Atocha, ou em Paris, com o caso de “Charlie Hebdo”.

O grande problema é que os tempos continuam mudando para pior, já que o poder capitalista em seu afã de estender suas conquistas econômicas permanece apelando para a invasão de territórios que possam oferecer dividendos importantes, e começa a sofrer as consequências de uma guerra assimétrica que muitas vezes escapa das mãos e estoura em pleno rosto. Isto é o que, sem dúvida, provocam personagens sinistros como o ex-presidente Nicolás Sarkozy e o atual mandatário François Hollande. O primeiro foi o principal instigador do assassinato brutal do chefe líbio Muhammar Kadafi, e que em 2009 recebeu em seu escritório um dos jihadistas que agora atacou a redação de “Charlie H.”. O mesmo Sarkozy que, no cúmulo do cinismo, agora clama ao céu dizendo que “os bárbaros estão atacando a França”.

Não fica atrás o atual mandatário François Hollande, aliado fundamental dos Estados Unidos no que se refere à arbitrariedade em apoiar os genocidas de Washigton e figura detestável por sua prédica fascista contra os imigrantes de ascendência muçulmana.

Para eles e não apenas contra os agressores de “Charlie H.” (mercenários cúmplices de sua política imperial) deveriam ser dirigidas todas as acusações pelo ocorrido nestes dias. E, dessa maneira, como esses boxeadores que demonstram ter boa cintura, ambos convertem a hipocrisia criminosa que os vestem desde sempre, em uma carga de gigantesca vitimização. Muito soltos de corpo, convocam a “unidade do povo francês” para “deter o terrorismo”. Além disso, tentam converter o ataque ao “Charlie Hebdo” em uma desculpa para justificar centenas de assassinatos provocados por seus soldados colonialistas em diversos países e, por último, convocam uma marcha de repúdio ao crime dos jornalistas na qual participem a esquerda e a direita representadas por eles mesmos. “Milhões de franceses devem sair às ruas neste domingo”, defende Hollande, quando ele e muitos dos quais o acompanharam esse dia calaram frente aos massacres de palestinos em Gaza, ou aos ataques similares realizados pelos mercenários na Síria, Iraque e Líbano. É fácil reclamar-se agora “vítimas do terrorismo” e converter-se em pombas brancas da “unidade e da tolerância”. São os mesmos que nestas tristes circunstâncias desenvolvem novamente a bandeira do chauvinismo antimuçulmano, negando a essa comunidade o direito à educação, ao atendimento médico ou ao acesso a trabalhos dignos. Enfim, excluindo-os da vida social, com expressões de um racismo que nesse país não é apenas exclusivo da ultradireita de Le Pen.

Por tudo isso, é louvável que o povo francês exija na rua a punição aos culpados do massacre de “Charlie H.”, mas que também se pronuncie a favor da retirada dos militares franceses das forças de extermínio da OTAN e deixe de apoiar o paramilitarismo mercenário, que tantas mortes causa diariamente no Oriente Médio. A impunidade com que vêm atuando os governantes franceses não pode ser premiada nem glorificada com a desculpa de um crime brutal. Menos ainda marchando juntos com aqueles que provocaram este estado de coisas. O que poderíamos pensar caso o presidente mexicano Enrique Peña Nieto convocasse hoje uma manifestação junto aos familiares dos estudantes massacrados em Atyozinapa, para exigir justiça, quando é ele próprio, poder governamental, o culpado por essas mortes?

Fonte: www.aporrea.org/internacionales/a200864.html

Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)

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