Reflexões sobre o 12 de outubro

O maior genocídio da história

Hoje, calcula-se que 90% da população americana desapareceu nesse choque de civilizações, 70 milhões de mortos.”

Reflexões sobre o 12 de outubro

Faz um par de anos que um amigo do qual me honro, Esteban Mira Caballos, publicou um excelente livro intitulado Conquista e destruição das Índias, no qual tentava averiguar a veracidade de Bartolomeu de las Casas em sua narrativa sobre a invasão espanhola e portuguesa da América, a Brevíssima relação da destruição das Índias. Esteban é historiador da Universidade de Sevilla, especializado no tema América, e seu livro levantou faíscas entre professores e catedráticos da universidade, seus companheiros de estudos de ideologia conservadora. Mas foi elogiado por Josep Fontana, catedrático da Universidade de Barcelona e um dos historiadores mais prestigiosos de nosso país.

A integridade intelectual de Esteban está fora de suspeita; para preservar sua liberdade de pensamento, prefere ser professor do Ensino Fundamental II e escrever o que acredita ser verdadeiro, sem depender de ninguém. Graças a esse talento independente podemos desfrutar de suas contribuições inovadoras sobre a história da Espanha.

Nesse estudo demonstrava que a descrição de Las Casas do genocídio americano não tem um ápice de exagero. Cometeram barbáries incríveis, crimes incontáveis, assassinatos, estupros e torturas por muito tempo, um reinado do terror para submeter a população indígena do Novo Continente recém descoberto. Las Casas fala de milhões de mortos, povos inteiros, pacíficos e hospitaleiros foram passados à faca no continente. Arquipélagos do Caribe devastados ficaram desertos de seres humanos depois da invasão espanhola, guerras desiguais nas quais uns povos desnudos e com flechas rudimentares enfrentavam homens armados com armas de aço e fogo; também nos fala dos assassinatos de crianças e mulheres grávidas, das milhares de pessoas queimadas na fogueira ou empaladas em estacas; dos castigos corporais e do trabalho excessivo, etc. Esteban Mira pesquisou nos diferentes Arquivos das Índias, que contêm os documentos da conquista, para provar que tudo o que conta Las Casas é verídico, não pertence à fabulação do teólogo dominicano, mas aos fatos históricos.

Hoje, calcula-se que 90% da população americana desapareceu nesse choque de civilizações, 70 milhões de mortos. É verdade que as epidemias causaram uma boa parte da mortalidade, mas também é certo que a submissão dos povoadores originários do continente americano à escravidão, mediante a prática da encomenda, debilitou espiritualmente e fisicamente os aborígenes com castigos e penalidades, impondo o trabalho até a exaustão. Também é certo que houve uma legislação protetora dos índios, mas sem efeito nem aplicação, foi só no papel para livrar a cara da monarquia espanhola. A conquista de um território tão vasto como o continente americano foi um prolongado ato terrorista.

Um argumento que foi dito para justificar esse horror é que qualquer um faria o mesmo, inclusive as próprias vítimas. Não se pode ignorar o grau de incapacidade moral nem a falta de penetração psíquica que contém essa falácia. Em primeiro lugar, equipara as vítimas aos criminosos, todos são a mesma coisa; se a vítima pudesse se converteria em verdugo. Mas o fato é que essas vítimas padeceram os crimes contra a humanidade, não foram eles que cometeram; e os verdugos atentaram contra os direitos humanos sem merecer o mínimo paliativo. Não é possível comparar um ao outro. E em sua maior parte, a população americana, ainda submetida aos impérios asteca, inca e maia, vivia em paz antes da conquista. Las Casas descreve os índios como povos pacíficos e tranquilos, assaltados por crimes sem escrúpulos.

Em segundo lugar, a falsidade desse argumento não reside somente em sua desqualificação da espécie humana em geral, mas indica uma perigosa identificação com os verdugos. É preciso dizer em alto e bom som: os espanhóis foram piores que outros povos, e possivelmente continuam sendo. Qualquer um que se identifique com o espanhol, com o Estado e com a Igreja da Espanha é suspeito de intenções genocidas.

Pois a história se repetiu muitas vezes, começando pela conquista e destruição de Al-Ándalus pelos reinos cristãos da península, seguindo pela conquista da América, continuando com as guerras de religião na Europa, com a gue rra criminosa de Cuba e também, já no século XX, com o genocídio da guerra do Rif contra a República revolucionária fundada por Abd-el-Krim. A culminação dessa história de crimes foi a guerra civil, um novo genocídio contra os povos da Península Ibérica.

A história de que o objetivo da conquista foi a conversão das massas americanas ao cristianismo, a redenção das culturas indígenas que ainda se encontravam no paganismo foi repetida até a exaustão. Falou-se dos feitos heróicos que foram realizados em prol dessa grandiosa façanha pela fé católica. Toda essa épica pode ser desmontada em poucas palavras, quando se conhece a verdade da história: os conquistadores não foram heróis, mas assassinos. E seu objetivo não era a salvação dos índios, mas a busca de ouro e prata para enriquecer e garantir um futuro de prosperidade ao regressarem a sua pátria. Essas riquezas eram roubadas dos indígenas americanos, depois de matá-los. A maior parte dos metais preciosos adquiridos era destinada, via imposto, a engrossar as arcas do Império, esgotadas pelas contínuas contendas entre os Estados europeus. A monarquia espanhola permitiu todas as atrocidades porque necessitava de ouro e prata para financiar suas guerras na Europa contra os hereges, procurando submetê-los à fé católica. Além disso, lembrem-se que os índios tiveram que trabalhar como escravos nas minas, depois do descobrimento em Potosi de uma fabulosa montanha, toda cheia de minerais preciosos que hoje em dia, depois de 500 anos, ainda é explorada.

Boa parte desse ouro foi explorada pelos espanhóis. Não só para financiamento das guerras, mas para a importação de mercadorias. A chegada massiva de metais preciosos às economias dos reinos peninsulares – Andaluzia, Castilha, Valência, Galícia, Catalunha, etc. -, provocou uma inflação de preços que acabou afundando a atividade produtiva, já deteriorada depois da derrota do movimento comunero – de caráter burguês e artesanal -, e a expulsão de mouros e judeus marranos da Península Ibérica. Desse modo, desapareceu uma rica e florescente indústria que havia se desenvolvido nos albores da Idade Moderna na Península Ibérica. Com a economia arruinada, a maior parte das mercadorias que se consumiam na Península Ibérica provinha do exterior. Por isso, a maior parte dos tesouros importados da América acabou nas arcas europeias. Como disse Quevedo: “don Dinheiro nasce nas Índias honrado… vem morrer na Espanha e é em Gênova enterrado”.

O ouro e a prata chegados da América foram utilizados para cunhar moedas na Europa, de modo que o comércio floresceu e, com este, a indústria. É a etapa mercantilista do primeiro desenvolvimento capitalista. Enquanto o Império espanhol dilapidava seus lucros facilmente conquistados com o roubo e com o crime dos povos americanos indefesos diante dos ambiciosos espanhóis, os Estados europeus se empenhavam em entesourar metais preciosos para garantir o comércio e a prosperidade de seus países. Uma prova a mais de que o império e o capitalismo andam sempre juntos. Nisso se equivocou Lênin quando disse que o imperialismo é a fase superior do capitalismo. Pelo contrário, o imperialismo, a rapina de matérias primas para impulsionar o desenvolvimento econômico, é a outra face do capitalismo desde suas origens. O que acontece é que aquele capitalismo incipiente estava nascendo entre as dobras da monarquia absolutista, protegido por ela, mas também em guerra contra ela. Que seja dito em honra aos holandeses e sua guerra de independência contra o Império de Felipe II.

Longe dos anais do Descobrimento, o que amanhã teremos que comemorar não são as façanhas gloriosas dos nossos antepassados, mas os crimes injustificáveis de nossa história. Um dia de meditação e humildade, pedindo o perdão das vítimas e oferecendo a necessária reparação.

Rebelión publicou este artigo com a permissão do autor mediante uma licença de Creative Commons, respeitando sua liberdade para publicá-lo em outras fontes.

Tradução: Valeria Lima

Fonte: Rebelión