TRANSFOBIA E TRAVESTICÍDIO: ALÉM DA SUPERFÍCIE

imagemNessa última semana, a violência contra travestis, mulheres transexuais e homens trans voltou a debate por conta da divulgação de um vídeo com o relato de agressão sofrida pela Viviany Beleboni, modelo travesti que ficou conhecida pela performance artística na Parada do Orgulho LGBT de 2015, em que desfilou crucificada no trio da ONG ABCD’S. Esse não foi o único caso de violência transfóbica que ganhou visibilidade em 2015: há poucos meses, foi à mídia o assassinato de Laura Vermont, travesti de 18 anos que foi linchada por cinco homens a caminho de casa e recebeu tiros da polícia que foi chamada para socorrê-la; mais cedo esse ano, teve repercussão internacional o caso da Verônica Bolina, travesti negra vítima de tortura policial que teve fotos suas, seminua e sob custódia policial, divulgadas na internet.

Esses casos, que chocam pela brutalidade e pelo explícito desrespeito à dignidade humana, são apenas fotografias da realidade de extrema precarização da vida de uma parcela marginalizada da classe trabalhadora. A ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais estima que a nossa expectativa de vida esteja em torno de 35 anos; no relatório Trans Murder Monitoring 2015, a TGEU (Transgender Europe) estima que 73%, no mundo todo, morrem antes de completar 40 anos e aponta o Brasil como o país com o maior número absoluto de assassinato de travestis e transexuais. Além das violações à integridade física, os casos de Laura e Verônica também ilustram a violência institucional e a negligência, o desamparo e mesmo a colaboração ativa dos aparatos do Estado frente à vulnerabilidade social de travestis, mulheres transexuais e homens trans.

A baixa expectativa de vida, no entanto, não se deve exclusivamente ao alto índice de violência, mas também à precariedade do acesso aos serviços regulares de saúde e à inexpressividade do atendime0nto a demandas específicas que sustenta, por exemplo, o nocivo uso de terapias hormonais por automedicação e tentativa e erro, a aplicação recorrente de silicone industrial por travestis e mulheres transexuais e os sérios problemas de saúde que os homens trans enfrentam pelo uso prolongado de faixas e coletes supressores dos seios.

Também vão à conta a realidade precária de alimentação, segurança e moradia decorrentes da dificuldade de acesso a condições minimamente salubres de trabalho: a ANTRA estima que aproximadamente 90% das travestis e mulheres transexuais no Brasil sejam trabalhadoras do sexo, atividade não regulamentada, que não dispõe de garantias trabalhistas e de grande vulnerabilidade social. A parcela que consegue fugir a essa regra se encontra concentrada majoritariamente em outros polos de precarização acentuada, como telemarketing, salões de beleza e comércio varejista “autônomo” (Avon, Natura, Jequiti etc). Essa realidade, sintoma de uma organização social que nos reserva lugares muito bem delimitados de superexploração e precariedade nas relações com o trabalho, também faz com que sejamos parte expressiva das populações em situação de rua, residente de albergues e de ocupações e se concentre majoritariamente nas regiões periféricas, que dispõem de também precários serviços de transporte, segurança, saúde e saneamento.

Frente a esse cenário, cada novo caso de violência que ganha visibilidade deveria nos lembrar do quão urgente é que combatamos as reduções da nossa luta a meras questões identitárias, para que possamos fortalecer uma abordagem que compreenda cada um desses casos como expressões de um mecanismo muito mais amplo e sistêmico de exclusão instrumentalizada e marginalização, cujo fim é a própria manutenção do sistema de exploração humana que sustenta todos os tipos de desigualdade social.

Compreender as formas particulares de opressão que esse sistema impõe a população de travestis, mulheres transexuais e homens trans permite não apenas um aprofundamento qualitativo na compreensão das relações capitalistas de gênero e suas conexões com a organização do trabalho, como também nos dá as ferramentas necessárias para traçar estratégias e táticas realmente eficazes de combate a essa opressão. Desvela, por exemplo, que as violências, agressões e assassinatos que nos assolam não são resolvíveis por meros dispositivos de punição ao agressor dos crimes já cometidos, assim como não se perpetuam apenas por uma “falta de empatia” decorrente de elementos culturais, mas são expressões de um conjunto mais complexo de vulnerabilidades que precisam ser pensadas articuladas e em conjunto. Esse olhar sistêmico nos dá um panorama mais estrutural de diretrizes de luta e explicita as reais necessidades que sustentam as reivindicações do movimento, como:

  • Garantia do direito à integridade física e à vida;
  • acesso pleno, gratuito e de qualidade a serviços de saúde, com atendimento às necessidades específicas dessa população;
  • acesso a condições regulares de trabalho, com possibilidade de melhores salário e garantia de direitos trabalhistas já conquistados pela classe – além do acesso à própria organização trabalhista;
  • garantia de acesso e permanência à educação básica, profissionalizante e superior e por fim, de forma mais ampla,
  • acesso pleno, seguro e inclusivo à cidade e à vida pública.

Dessa forma, caminhamos para além da redução de danos e ganhamos a possibilidade de pensar essa particularidade de opressão nos seus elementos mais estruturais, abrindo canais reais de articulação com outras particularidades de luta e construindo condições subjetivas para que possamos nos reconhecer como parte integrante e indispensável da classe trabalhadora, assim como da luta pela superação da ordem social que nos mantém oprimidas.

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