Família… família!

imagemMauro Luis Iasi

“um mundo à prova de beijos”
Lawrence Ferlinghetti

Os senhores Deputados Federais da República Teocrática Cristã do Brasil, definiram recentemente que uma família se forma pela união de um homem e uma mulher, ou, por um dos dois e seus filhos na ausência do outro. Uma vez que a família é a base da sociedade, como gostam sempre de lembrar os conservadores de toda estirpe, a famosa célula mater, temem nossos deputados que uma alteração na definição da célula acabe por corromper todo o frágil equilíbrio social tão empenhadamente construído pelo discurso ideológico.

Em 1916, quando da edição do Código Civil da República, a definição de família zelava não apenas por definir a união do homem e da mulher, como para o bom funcionamento das coisas, colocava o comando e a decisão no homem como “cabeça do casal”. Foram necessários oitenta e seis anos para que esta definição se alterasse em parte. Com a reforma do Código Civil aprovada em 2002, a definição se altera para a união entre um homem e uma mulher em “igualdade de direitos e deveres”.

Algo interessante acontece no mundo jurídico. Às vezes um direito não é negado pela suposição óbvia de seu absurdo. Na Constituição de 1824 teriam direito de voto todos os cidadãos (ainda que escalonado pela riqueza no chamado voto censitário), sem qualquer proibição ao voto das mulheres. No entanto, isso pelo fato de que seria “óbvio” que a condição de cidadão se restringia aos homens, portanto, não aos escravos, considerados coisas, nem aos povos indígenas, considerados parte do reino natural. No caso das mulheres, o que fica implícito é que seriam seres dependentes, e portanto sem autonomia própria, participando apenas através da vontade do pai ou do esposo.

A restrição se faz necessária somente na medida em que se levanta uma ação em sentido contrário ao que se estabelece na lei ou no espaço que ela deixa de normatizar. Desta forma, é a luta das mulheres que fará com que, já na Constituição de 1891, se explicite a interdição da mulher no espaço político. O mesmo podemos dizer sobre as leis segracionistas nos EUA ou na áfrica do Sul, que se levantam para criar barreiras contra a luta dos negros por igualdade jurídica.

Aqui se apresenta uma regra geral: o direito sempre acompanha com atraso a vida. Ao contrário do que quer crer a autoreferenciada ideologia jurídica, o direito não nasce nas esferas jurídicas e políticas, isto é, no reino do Estado. Ele germina na sociedade como algo, via de regra, contra o direito que está estabelecido num determinado ordenamento jurídico ou nas lacunas daquilo que fugiu a juridicialização da vida.

No caso da instituição família isto é evidente. No movimento vivo da sociedade há uma multiplicidade muito grande de formas de família, seja como resultante do devir histórico, seja da dinâmica própria das relações sociais numa determinada sociedade. Apenas para que tenhamos um exemplo: aquilo que costumamos chamar de família e que a ideologia conservadora quer acreditar que é eterno, é de fato fruto de um desenvolvimento histórico muito recente.

Na justificativa encaminhada junto com a proposta de estabelecimento de um Estatuto da Família vê-se claramente este fenômeno. O autor, o senhor deputado Anderson Ferreira, afirma, ao falar do que estaria ameaçando a família em nossos dias, que:

“São diversas essas questões. Desde a grave epidemia das drogas, que dilacera os laços e a harmonia do ambiente familiar, à violência doméstica, à gravidez na adolescência, até mesmo à desconstrução do conceito de família, aspecto que aflige as famílias e repercute na dinâmica psicossocial do indivíduo”.

No copo do texto do Projeto Lei (6583/2013) já aparece a idéia de fortalecimento da família e ajuda do Estado “sempre que a unidade da entidade familiar estiver sob ameaça”. Esta ameaça é renitentemente identificada com fatores que afetariam a “harmonia” familiar, como as drogas, a violência domestica e a gravidez na adolescência. No entanto, o que nos chama a atenção é a ameaça pela “desconstrução do conceito de família”. Vejam que a lei quer mais que “proteger uma instituição” , quer garantir e proteger um “conceito” contra as “mudanças que tem alterado sua estrutura no decorrer do tempo” (PL 6583/2013).

É um PL que procura defender um conceito contra as mudanças históricas! E como ele pretende realizar tal feito? Creio que ficam claros dois caminhos. Um propriamente no campo claro da ideologia e que se expressa no artigo 10 do PL, no qual lemos:

“Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter em sua base nacional comum, como componente curricular obrigatório, a disciplina ‘Educação para família’, a ser especificada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, de acordo com as características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela”.

É de se supor que a tal “base comum nacional” seja a reafirmação do conceito a ser defendido contra aquilo que o ameaça e que as ditas características regionais ou locais, culturais ou quaisquer outras, seriam particularidades deste conceito universal.

Mas há uma outra frente de batalha. Mal disfarçado sob o manto enganoso da defesa de “políticas públicas” para proteção da família contra aquilo que a ameaça, a defesa do “conceito de família” opera como uma evidente restrição, senão vejamos. A família ameaçada deve ter acesso a políticas que visariam garantir condições mínimas de sobrevivência, acesso à saúde e educação, o acesso a serviços psicológicos e de assistência, entre outros. O que fica evidente é que uma vez definido o “conceito” de família, todas as formas que não sejam passiveis de se enquadrar em tal conceito não teriam acesso a tais direitos. Assim, não se trata propriamente de defesa de um conceito, mas da defesa de uma forma de família contra outras formas de família que seriam punidas pelo não acesso a direitos e serviços.

Uma vez que o conceito é apenas o real elevado à condição de conceito, a forma de família defendida pelo PL expressa uma forma particular entre as múltiplas formas que a instituição família assume diante das “mudanças que têm alterado sua estrutura no decorrer do tempo”. E são muitas, desde núcleos familiares reduzidos a um ou outro membro do casal (que o PL só supõe possível pela ausência do outro e não como uma forma originária e por escolha), passando por uma diversidade de formas e combinação possível de pessoas que se somam ao chamado núcleo familiar – tais como avós e avôs, tios, irmãos, ou mesmo não parentes consanguíneos –, até as formas diversas de formação de casais homoafetivos.

A família mononuclear burguesa é apenas o fruto de um longo desenvolvimento que assistiu a formas muito variadas de organização das relações afetivas, papeis sexuais ou de gênero, hierarquia de idade, relações de poder, e outras variantes. Prova disso podemos encontrar em estudos clássicos como os de Engels, Freud, Reich, assim como em Margaret Mead, Mark Pôster, Agnes Heller, Alexandra Kollontai, e tanto outros estudiosos. Esta diversidade não pode ser atribuída apenas ao desenvolvimento histórico pregresso, ou seja, formas ancestrais que levaram à forma atual, mas como indicadores da dinâmica social num determinado tempo histórico.

Quando se altera o papel da mulher nas relações sociais, seja por sua maior inserção no mercado de trabalho, seja por mudanças culturais e de comportamento, seu papel no interior das relações familiares tende também a se altear produzindo formas distintas daquelas que são consideradas padrão numa determinada época. A emergência da adolescência, como nos fala Norbert Elias, altera o papel dos jovens e a relação de poder no interior do núcleo familiar. Mesmo o desenvolvimento de formas de produção e reprodução social incidem economicamente e culturalmente sobre a família alterando sua forma e funções, como por exemplo, o desenvolvimento de uma rede pública de educação, a assistência à saúde, ou redes de alimentação fora do espaço doméstico, a consolidação das mercadorias que substituem os valores de uso antes próprios da reprodução da vida interna ao espaço da família (fazer as roupas, produzir a base da alimentação, por exemplo), a comunicação dos modernos meios e a indústria cultural, entre muitos outros fatores que poderíamos indicar.

Tudo isso altera a forma e mesmo a estrutura familiar. Não é que ameacem o “conceito”, é que o conceito se torna estreito para dar conta da dinâmica do real e, assim, precisa ser alterado. É o que acontece com as relações afetivas e no campo da sexualidade. Além do fato evidente de que a sexualidade humana é muito mais diversificada do que imagina a visão preconceituosa reinante, a conformação da vida, com todas as variantes citadas, acaba por produzir relações afetivas e mesmo de parentesco (no sentido amplo do termo) que extrapolam os padrões definidos.

Na verdade é esta “ameaça” que de fato assusta tanto nossos conservadores e por isso a defesa do “conceito” se materializa na definição de família no artigo segundo do citado PL: “Para os fins desta Lei, define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher”. Ressalta-se que segundo o que se defende este núcleo se forma pelo casamento ou outra forma prevista na lei (união estável, por exemplo), reapresentando pela porta dos fundos do ordenamento jurídico a velha distinção, própria do código de 1916, da união legitima e ilegítima.

Estes digníssimos representantes têm uma enorme dificuldade em lidar com sua sexualidade. E a racionalização que deriva de uma repressão (cultural, social, religiosa, ou qualquer outra) volta na forma de um sintoma: o preconceito. Aquilo para o que estão perdendo terreno na vida real, precisa ser defendido pelo Estado na forma de um ordenamento jurídico reacionário.

Só posso reafirmar as palavras de Marx e Engels lançadas ao vento há tanto tempo: queremos sim abolir a família burguesa, a exploração das crianças pelos pais, a organização sistemática da opressão sobre as mulheres, queremos arrancar educação da influência perversa das classes dominantes, superar a hipócrita e dissimulada prostituição, pela franco e aberto exercício de formas de sexualidade. (Ver: Manifesto Comunista, pp. 55-56)

Não está sob nosso poder evitar que os setores reacionários imponham sua visão de mundo como fundamento de um determinado ordenamento jurídico. Podemos, como temos feito, denunciando e resistindo, inclusive na forma de exercer de fato novas relações, caibam ou não no figurino das leis estabelecidas, construindo o novo nas entranhas na velha ordem que agoniza.

Para expressar esta resistência vou pedir licença para Lawrence Ferlinghetti, tomando emprestado sua poética libertária para tentar, não tanto dialogar com certos segmentos que desprezam o diálogo, mas para abraçar aqueles que sonham e lutam contra esta ordem que tenta domar a vida sob o açoite de determinações jurídicas. Aí vai:

O Castelo de Kafka ergue-se sobre o mundo
como uma última bastilha
do Mistério da Existência

[…]

Lá em cima
reina um clima perfeito
As almas dançam nuas
Em grupos

[…]

No entanto na parte de trás do castelo
como na entrada para o picadeiro de um circo
há uma fenda profunda profunda, nas muralhas
através da qual até os elefantes
podem entrar dançando

Lawrence Ferlinghetti


Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

[Na imagem, jovens protestam contra estatuto que define família como a união entre homem e mulher, aprovado na Câmara dos Deputados no dia 24.09.2015. Foto: Gilmar Felix]

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