A crise do progressismo na América Latina
A onda progressista que teve curso na América Latina na virada do século XX para o XXI se apoiou no desgaste do neoliberalismo e na ascensão de grandes movimentos de massas que, em alguns casos, como na Bolívia em 2005, na Argentina em 2001-2002, no Equador em 2006 e na Venezuela em 1998, forçaram a queda de governos de direita, mas não puderam impor revoluções sociais. Quando chegaram ao governo, os preços internacionais favoráveis das matérias primas, somados a políticas de expansão dos mercados internos, permitiram que as forças identificadas com demandas populares garantissem a governabilidade, mas as transformações operadas não foram capazes de se confrontar a fundo com as estruturas de dominação existentes.
O conjunto dos movimentos surgidos em finais dos anos 1990, que tinham como principal ponto de reivindicação a luta contra as políticas neoliberais, ao se transformarem em governo, em que pesem os importantes avanços obtidos, não conseguiram superar a matriz econômica a eles legada. Tampouco foi possível promover mudanças radicais no sistema de representação política, apesar de inúmeras iniciativas voltadas à consulta da população para aprovação de determinadas medidas. Isso não só possibilitou a recomposição das forças de direita, como também a manutenção, em nível estatal, de práticas inerentes à forma burguesa de governar, como as ações politiqueiras e fisiológicas, o mandonismo e a corrupção.
Nos casos da Bolívia e da Venezuela, os discursos revolucionários acompanharam práticas reformistas repletas de contradições. Ao mesmo tempo em que se anunciavam grandes transformações, as iniciativas se deparavam com realidades adversas e também expressavam o temor profundo de superar os obstáculos colocados pelo capitalismo. O caso venezuelano, por exemplo, permite-nos ver a alta dependência do país com um modelo rentista de acumulação, baseado, sobretudo, na venda de commodities, em especial o petróleo, o que, em momento de crise internacional do capitalismo, resulta dramático para a grande massa dos trabalhadores, que veem suas condições de vida cada vez mais deterioradas.
Na Bolívia, Evo Morales chegou ao governo na esteira das grandes manifestações sociais que enfrentaram os interesses poderosos de grupos multinacionais e passaram a contestar o velho sistema racista colonial. Porém, a mistura híbrida de reivindicações anti-imperialistas, pós-capitalistas e indigenistas com a persistência do modelo mineral-extrativista de deterioração ambiental e de exploração das comunidades rurais terminou por diluir o discurso do “socialismo comunitário”. Ficou, assim, aberto o espaço para a recomposição das classes dominantes e do conservadorismo.
No Brasil, os governos petistas nem de longe promoveram mudanças políticas e sociais semelhantes às ocorridas nos países vizinhos. Pelo contrário, mantiveram intactas as premissas do projeto neoliberal que FHC acordou com o FMI no final dos anos 1990, bem como deu continuidade às políticas privatizantes, ao desmonte dos serviços públicos e ataques a direitos constituídos da classe trabalhadora. Tudo com a roupagem do “neodesenvolvimentismo”, do “desenvolvimento sustentável” ou “novo projeto nacional de desenvolvimento”. Hoje a imensa maioria da população sente na carne e no bolso que o projeto de “crescimento econômico com inclusão social e distribuição de renda” era uma ilusão passageira. Se foi possível governar por alguns anos administrando o capitalismo na perspectiva da conciliação de classes, com o esgotamento das condições econômicas favoráveis, tudo o que era sólido começou a se desmanchar no ar.
Apesar de os governos petistas terem aplicado servilmente as exigências da classe dominante, a gravidade da crise econômica – acoplada à crise política decorrente das denúncias de corrupção – passou a exigir, do ponto de vista dos interesses do capital, medidas mais profundas e rápidas, diante do que a continuidade do governo petista se torna incômoda e desnecessária para o “mercado”.
Na conjuntura atual, as direitas latino-americanas vão ocupando posições anteriormente perdidas e consolidam aquelas preservadas pela incapacidade de os governos progressistas promoverem mudanças estruturais. Grupos financeiros, industriais e do agronegócio comandam a oposição de direita aos governos ditos progressistas, contando com o apoio de uma mídia agressiva e mobilizações de rua de caráter reacionário, onde as camadas médias ocupam um lugar central. Os governos progressistas supunham que a bonança econômica facilitaria a captura política desses setores sociais, mas enquanto ascendiam economicamente, estes grupos olhavam ainda com mais desprezo os trabalhadores e setores proletários.
A onda conservadora na América Latina acompanha um fenômeno mundial, em que a crise sistêmica global do capitalismo faz recair sobre as costas da classe trabalhadora não só mais e profundos ataques aos direitos sociais, como também às conquistas democráticas, com a crescente criminalização dos movimentos populares, aumento da repressão e da violência contra os trabalhadores. Juntamente às constantes ameaças das potências imperialistas aos povos em todo o mundo, revelam-se tendências neofascistas ascendentes no Ocidente, da Ucrânia até os Estados Unidos, passando pela Alemanha, França, Hungria, etc., expressão cultural do neoliberalismo decadente e niilista, onde o racismo e os preconceitos de toda ordem aparecem como soluções para a crise, através de processos de exclusão social.
Parece aproximar-se do fim o modelo de governança baseado na ilusão progressista de humanização do sistema capitalista e de realização de reformas cosméticas nos marcos institucionais existentes. Comprova-se, com certeza, mais explicitamente no caso brasileiro, que a política de conciliação de classes leva a derrotas contundentes para a classe trabalhadora. É necessário apontar que a saída para os impasses políticos colocados está no fortalecimento e na plena autonomia do movimento popular e operário, que deve buscar criar espaços de decisão política que extrapolem os limites da ordem institucional burguesa, em que os trabalhadores, a partir de seus locais de trabalho e moradia possam tomar em suas mãos o real poder e decidir sobre as questões de sua vida.
Íntegra da 11a edição de O Poder Popular: http://pcb.org.br/portal2/11019