Os golpes na Macedônia e a Grande Albânia
ABRIL ABRIL – José Goulão O presidente da Antiga República Iugoslava da Macedônia (FYROM), Gjorge Ivanov, não promulgou a primeira lei do Parlamento de Skopje que lhe foi apresentada com o timbre de «República da Macedônia do Norte». Apesar disso, a lei foi publicada no Boletim Oficial, com a assinatura do Presidente da Câmara dos Deputados, o que viola a Constituição. Consumou-se assim, de modo «plenamente democrático», mais uma etapa do golpe patrocinado pela OTAN e a União Europeia neste território balcânico.
A «exportação da democracia» para os Bálcãs continua passo a passo, agora sob a direção de políticos e diplomatas dos Estados Unidos, da OTAN e da União Europeia. As etapas sucedem-se em forma de golpes político-eleitorais – um pouco à imagem do processo na América Latina – depois de a guerra que destruiu a Iugoslávia ter deixado um «caos criador», como no Iraque ou na Líbia. A selvageria colonial redundou em soluções «negociadas» que só podem funcionar sob tutela dos ocupantes militares da aliança expansionista e das entidades «soft power» norte-americanas, que manipulam os processos político-eleitorais conforme as conveniências de Washington. A Bósnia-Herzegovina e o Kosovo são os casos mais conhecidos e midiatizados – segundo as normas da censura atlântica – mas não passam de partes de um todo que é o controle do conjunto da região balcânica pela OTAN e a União Europeia; um processo que pretende extirpar quaisquer suspeitas de «influência russa», ainda que sejam de índoles culturais, linguísticas e religiosas e estejam enraizadas há séculos em vastas comunidades da região. É uma forma de limpeza étnica, menos dolorosa fisicamente, mas que não deixa de ser criminosa.
A Macedônia é a mais exemplar transformação em curso, sobretudo porque os episódios revelam como esta forma de «democracia» não poupa meios para atingir seus fins.
Do Tratado de Prespa ao golpe parlamentar
A recusa do presidente macedônio em promulgar as leis da «República da Macedônia do Norte» não é um capricho ou uma teimosia. É um legítimo ato constitucional para recordar que há muitos meses o funcionamento do Estado se tornou incompatível não apenas com a Lei Fundamental em vigor, mas também com os mais elementares princípios da decência e da transparência.
A fase em curso começou com o Tratado de Prespa, em 12 de junho de 2018, arquitetado pelo diplomata norte-americano Geoffrey R. Pyatt, considerado um dos principais operadores do golpe na Praça Maidan(1), em Kiev, que colocou a Ucrânia sob o domínio de um aparato político-militar nazista. Pyatt contou com a conivência submissa do primeiro-ministro grego, Alexis Tsipras, e do chefe do governo macedônio, o «socialista» neoliberal Zoran Zaev.
Zaev protagonizara o golpe fracassado de 2015 em Skopje, organizado pela CIA segundo o modelo dos acontecimentos de dois anos antes em Kiev (2). Acabou por ascender ao cargo de chefe do governo através de eleições muito bem financiadas.
O Tratado de Prespa, patrocinado pela OTAN e pela União Europeia, formalmente sob a égide da ONU, supôs encerrar o contencioso entre a Grécia a Macedônia ex-iugoslava, passando este território a designar-se «República da Macedônia do Norte», permanecendo a província grega adjacente com a mesma designação – Macedônia.
A sua ratificação pela parte da FYROM exigia a aprovação em referendo, que ocorreu em 30 de setembro do ano passado, na presença sombria do então secretário de Estado norte-americano, James Mattis. A oposição, em que o ramo mais poderoso é o movimento nacionalista VMRO, do presidente Gjorge Ivanov, apelou ao boicote da consulta e, de fato, dois terços dos eleitores ficaram alheios ao ato, invalidando-o. A afluência às urnas foi de 37%, portanto, muito aquém dos exigidos 50%.
Um Parlamento kafkiano
A OTAN e a União Europeia não aceitaram a derrota e, sob o comando direto do embaixador norte-americano em Skopje, Jess Baily (3), a decisão de ratificação transitou para o Parlamento, onde a oposição tem uma maioria de nove deputados, o que permitiria bloquear o tratado.
Iniciou-se então uma operação de compra de deputados, com intervenção direta de colaboradores próximos ao embaixador norte-americano. Movimentaram-se verbas da ordem dos 250 mil dólares por cada parlamentar do VMRO que desobedecesse à disciplina partidária, acrescidos da possibilidade de emigrarem para os Estados Unidos se precisassem de cuidar da própria segurança.
As votações decisivas fizeram-se na presença do primeiro-ministro Zaev e do próprio embaixador norte-americano, instalados no gabinete do presidente do Parlamento, Talat Xhaferi, o mesmo que agora decidiu «promulgar» leis vetadas pelo chefe de Estado. Fez-se a ratificação por maioria simples de um voto – e não por dois terços, como determina a Constituição – e assim ficou o golpe quase completo.
A posição do presidente Gjorge Ivanov, cujo mandato está prestes a expirar, era o derradeiro obstáculo, se bem que o seu VMRO pouco tenha feito para bloquear efetivamente a decisão, por exemplo substituindo previamente os deputados que tinham recebido os incentivos «democráticos» da Embaixada dos Estados Unidos.
A assinatura, embora inconstitucional, do presidente do Parlamento, pode ter contornado a resistência presidencial, já se si pouco perturbadora do processo, de fato meramente simbólica. Finalmente os juízes da verdadeira democracia instalados em Bruxelas e Washington podem dar a missão como cumprida: nasceu a «Macedônia do Norte».
Uma vida efêmera
Uma entidade que, porém, pode não representar o fim da linha para os colonizadores dos Bálcãs uma vez que, segundo movimentações que vêm ganhando expressão na região, possivelmente a «Macedônia do Norte» terá vida efêmera.
Para nos inteirarmos disso basta enunciar acontecimentos que ocorrem simultaneamente ao processo golpista macedônio e nos quais este se integra, no âmbito da recomposição de toda a região à medida dos interesses coloniais atlânticos.
Contra o direito internacional, mas sempre com o aval dos fiscais da democracia, os terroristas islâmicos que formam o governo do Kosovo dotaram-se de um exército regular e aboliram as fronteiras com a Albânia.
O Kosovo, recorda-se, é uma província da Sérvia que está, de fato, sob tutela internacional exercida pela OTAN e a União Europeia. Na prática, transformou-se numa imensa base militar atlântica. As movimentações em curso podem representar, na realidade, uma secessão do Kosovo em relação à Sérvia e a integração do território na Albânia, passo determinante para a consumação da Grande Albânia, um velho sonho de Tirana e, ao que parece, uma recomposição regional que corresponde às efetivas pretensões de Washington. É um fato que o islamismo político, mais ou menos radical, tem funcionado como um instrumento preferencial do expansionismo norte-americano e o caso dos Bálcãs não é exceção, como se observa na Bósnia e no Kosovo.
Poder-se-á pensar, aqui chegados, que tudo isto parece bem encaminhado nas perspectivas de Washington e Bruxelas; mas a Sérvia é uma potência regional com uma palavra a dizer, tanto em relação ao Kosovo com ao expansionismo albanês. É conhecido – como ficou demonstrado na guerra de destruição da Iugoslávia – o antagonismo entre os polos muçulmano, a Albânia, o cristão ortodoxo, a Sérvia. Com a agravante regional de esta polarização trazer no bojo o sempre terrível problema da «ameaça russa», olhada, em mais este caso, como um estorvo para o total domínio norte-americano.
A «pró-democracia» na Sérvia
A esta luz não é difícil perceber o verdadeiro significado dos protestos «pró-democracia» que continuam a acontecer na Sérvia contra os poderes instalados, que não escondem a sua simpatia pela União Europeia , mas parecem ser também – pelo menos é o que reza a propaganda da oposição – uns temíveis pró-russos.
Nada disso, na verdade. O que está em causa é fazer na Sérvia as mudanças para que o país se alinhe placidamente ao eixo Washington-Bruxelas. Assim sendo, deixará de haver um poder real contra a transferência de soberania do Kosovo de Belgrado para Tirana e a construção da Grande Albânia.
O expansionismo albanês é, por seu turno, a maior ameaça contra a «República da Macedônia do Norte». Os albaneses da Macedônia estão incluídos no cardápio das comunidades vocacionadas para integrar a Grande Albânia. Para Washington, as exceções regionais serão os albaneses do Montenegro – não vale a pena desfazer um país que já funciona como mais uma base da OTAN – e, obviamente, a comunidade albanesa da província grega da Macedônia.
Amputada da significativa minoria albanesa, poucas hipóteses terá a «Macedônia do Norte» de sobreviver como Estado. Isolados, os cristãos ortodoxos macedônios ficarão dependendo do lado mais forte em toda a região balcânica, a bem dizer o lado senhor e único. E para que não haja quaisquer laivos de resistência, ocorrem também em Skopje manobras para que a Igreja Ortodoxa da Macedônia se separe do Patriarcado de Moscou para se alinhar por Constantinopla. A exemplo do que já aconteceu na Ucrânia, por obra e graça do presidente Porochenko e da sua guarda pretoriana nazista.
Uma Grande Albânia membro da OTAN e da União Europeia que seja o paraíso da máfia transnacional albanesa e a verdadeira filial do poder de Washington no Sudoeste Balcânico, convivendo com uma Sérvia depurada de quaisquer «correias de transmissão» com Moscou é, como se percebe, o objetivo final da sucessão de golpes em desenvolvimento para estender a verdadeira e única «democracia» a toda a região.
Para atingir esse objetivo, o expansionismo colonial atlântico não tem escrúpulos. Aliás, seria estranho que o fizesse depois de deixar marcas tão indeléveis como «democráticas» nos seus rastros no Afeganistão, no Iraque, na Síria, na Líbia, no Iêmen – ou como está deixando na América Latina.
1. O leitor poderá conhecer ou recordar, no artigo de John Laughland «US diplomats act like imperial governors riding roughshod over sovereignty of national governments», RT News, 19 de julho de 2018, o comportamento do representante diplomático norte-americano na Ucrânia.
2. Um relato descritivo e conciso da tentativa de golpe, que causou 22 mortos e numerosos feridos, e das implicações norte-americanas, europeias, de Georges Soros e de Zaev, pode ser encontrado no sítio grego Katehon.
3. A intromissão do embaixador americano é referida no sítio alternativo Mina Report, em 8 de novembro de 2018. Interessante, no mesmo artigo, constatar que, cumprida a missão, Jess Baily foi substituído por Kate Marie Byrnes, uma diplomata proveniente de Atenas, onde trabalhava sob a batuta de Geoffrey R. Pyatt, o embaixador norte-americano reconhecido como «operador de Maidan».
Fonte: https://www.abrilabril.pt/internacional/os-golpes-na-macedonia-e-grande-albania