Moçambique e os efeitos da devastação capitalista no clima mundial
Neste ano já tivemos enchentes devastadoras associadas a eventos extremos aqui mesmo no Brasil (com impacto bastante severo em nossas megacidades, Rio e São Paulo), nos EUA (com enormes danos e prejuízos em Minnesota e Nebraska).
Mas, como em tantas outras ocasiões, eventos similares produzem impactos maiores – e um número bem maior de mortes – quanto mais pobres e vulneráveis forem os países e as comunidades sobre os quais eles se abaterem.
Como antes nas Filipinas, em Serra Leoa, etc., a tragédia, que finalmente parece chamar a atenção do mundo, veio na forma do Ciclone Tropical Idai, que se formou a partir de uma depressão tropical no Canal de Moçambique, entre o sudeste do continente africano e Madagascar. Três países pobres (Malawi, Zimbabwe e particularmente Moçambique) foram duramente castigados, com o número impressionante de 1,7 milhão de pessoas afetadas e, no momento em que escrevo, mais de 700 mortes confirmadas.
Aqui me sinto obrigado a fazer uma confissão sobre como têm-me incomodado os memes, tweets, textinhos e eventuais textões que batem na tecla “não tem ‘ajuda humanitária’ em Moçambique porque lá não tem petróleo”. Não é que eu discorde de maneira absoluta da ideia. Pelo contrário, entendo o sentido. É feito um contraponto ao cinismo dos governos ultradireitistas de EUA e Brasil no caso da Venezuela, em que a tese da “ajuda humanitária” certamente escondia outra agenda. Só que a repetição do meme expõe os limites de como muitas pessoas estão encarando a tragédia.
A primeira questão é que o petróleo é trazido à baila de forma totalmente deslocada. Moçambique foi vítima sim, do petróleo. Não daquele que em tese poderia haver em seu subsolo (mas que pelo visto realmente não há), mas daquele que fora tirado do subsolo de outro lugar, queimado e despejado na atmosfera como CO2. De uma vez por todas, é necessário que caia a ficha: o aquecimento global, ao elevar a temperatura dos oceanos tropicais e aumentar a capacidade da atmosfera em armazenar vapor d’água, está produzindo e produzirá cada vez mais tempestades extremamente severas e mortíferas.
Nesse contexto, o abandono da África à sua própria sorte, gritante no caso de Moçambique, Malawi e Zimbabwe, é uma amostra terrível da profunda desigualdade por trás das mudanças climáticas. Os habitantes do Zimbabwe emitem em média 0,8 toneladas de CO2-equivalente por ano. As emissões de Moçambique e Malawi são ainda menores: 0,3 e 0,1 tons/pessoa/ano. Sem indústria ou agricultura intensiva, esses países não tem responsabilidade alguma sobre o caos climático. Para se ter uma ideia, a média global per capita das emissões está em torno de 5 tons/pessoa/ano de CO2-equivalente, ou seja, 17 vezes maior que as emissões de Moçambique. E o que vem de países ricos é algo muito maior ainda!
Tirando os maiores produtores de petróleo, que por isso aparecem no topo do ranking das emissões, fica evidente que o modo de vida dos países ricos é insustentável. As emissões por habitante dos EUA chegam a 16,5 tons/pessoa/ano. Austrália e Canadá, 15,4 e 15,1, respectivamente. Em outras palavras, o “estadunidense médio” tem um impacto climático equivalente a 55 “moçambicanos médios”. O “canadense médio” conta como 151 habitantes de Malawi em termos da pegada de carbono. Carro privado, grande, de alta cilindrada, movido a combustível fóssil e trocado constantemente; consumo excessivo de bens diversos, de roupas a eletrônicos; dieta com muita carne, principalmente de ruminantes; viagens aéreas… isso não se sustenta.
De acordo com o último relatório especial do IPCC, o SR15, seria extremamente benéfico limitarmos o aquecimento global a 1,5°C. O suposto limite de 2°C nada tem de seguro e além dele cada décimo de grau amplifica a catástrofe. Mas para tal, seria necessário reduzir as emissões globais pela metade até 2030. Em outras palavras, o limite de emissão per capita seria 2,5 tons/pessoa/ano em CO2-equivalente (isto é, considerando outros gases, como o metano, de acordo com seu potencial de aquecimento global).
Façam as contas comigo. Numa lógica de equidade climática, isso significa que as emissões per capita dos EUA têm de ser reduzidas por um fator de 7 vezes. As dos habitantes de Moçambique poderiam até crescer por um fator de 8! Em uma década, esse crescimento permitiria a pessoas de países muito pobres da África acesso a energia, água potável, saneamento, hospitais, escolas, universidades e infraestrutura de monitoramento, prevenção e assistência em caso de eventos extremos (num mundo condenado, pelo aquecimento global, a um clima de extremos, todos precisaremos, e muito). Isso poderia ser feito a tempo inclusive antes de precisarmos encarar um desafio ainda maior, o de zerar completamente as emissões até 2050.
Mas essas iniciativas necessárias para elevar o padrão de vida dos países mais pobres precisam ser bancadas por quem se beneficiou da queima de combustíveis fósseis para acumular riqueza. Por isso, não é caridade, nem mesmo “ajuda” que os países pobres expostos ao caos climático precisam. É de compensação, de indenização. “Ajuda” é algo meio facultativo, uma decisão moral, um “ato de bondade”. O que precisamos é de mais do que isso: é obrigar quem é responsável pelo aquecimento global a arcar com os danos que ele provoca.
O problema é que o dinheiro que poderia ser usado para compensar e indenizar aqueles que não têm responsabilidade sobre a mudança do clima tem fluído ao contrário do que deveria. Desde que o Acordo de Paris foi aprovado, 33 bancos investiram 7 trilhões de reais na indústria de combustíveis fósseis. Uma fração desse dinheiro teria ajudado a descarbonizar a economia e, ao mesmo tempo, indenizar preventivamente os países com baixas emissões mas, pelo contrário, o sistema segue financiando o caos climático, a devastação e a morte. Tão destrutivo e assassino quanto a indústria de combustíveis fósseis é o capital financeiro que a alimenta!
Daí, minha objeção ao raciocínio por trás da “ausência de ajuda humanitária em virtude da ausência de petróleo” é mesmo a falta de perspectiva da questão de fundo. Moçambique é vítima do caos climático, do petróleo (que alguns lamentavelmente ainda sonham ser usado para produzir riqueza de forma justa), do carvão e do gás. É vítima da profunda desigualdade associada às mudanças climáticas. E o que precisamos não é de “ajuda humanitária”, mas do pagamento da dívida climática, que precisa ser cobrada, pelos pobres, dos países ricos e, principalmente, das corporações fósseis e dos bancos que as financiam.
*Alexandre Costa é cientista do clima e professor da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
https://www.brasildefato.com.br/2019/03/24/artigo-or-o-nome-disso-e-divida-climatica-nao-ajuda-humanitaria/