‘São gentis porque são ricos’
Subjetividade de classe e realismo em Parasita e Bacurau
Fêh Sung*
A vilanização das classes dominantes em filmes e na grande mídia de entretenimento deixou de ser algo chocante faz bastante tempo. Das patricinhas manipuladoras ao capitalista do mal que vai destruir o meio ambiente cego por dinheiro, não faltam exemplos de produtos culturais de massa que associam riqueza e maldade. Um dos aspectos perigosos dessa associação é dinheiro = maldade e dinheiro = poder, logo, poder = maldade. Mas gostaria de chamar atenção para outro aspecto.
A subjetividade burguesa tem um fascínio em representar a vida como sociedade das aparências, “o teatro da vida”, as coisas nunca são o que aparentam, se apresentam sempre como seu oposto.
Parte fundamental da personagem da patricinha do mal é que, à primeira vista, ela parece ser uma boa menina, que por detrás da sua aparência perfeita e angelical existe uma pessoa capaz de fazer e pensar maldades de forma fria e calculada. Qualquer filme ou série adolescente aqui serve de exemplo. Assim como o grande empresário que à primeira vista parece estar agindo pela melhor das intenções, mas ao longo da história sua máscara cai, seus verdadeiros interesses malignos são expostos.
Para pegar um exemplo concreto é só imaginar o Lex Luthor, arqui-inimigo do Super Homem, cujo personagem é baseado na aparência de ele ser um bilionário filantropo, cientista inovador pelo avanço da humanidade, figura pública carismática, mas secretamente é um corrupto, megalomaníaco com planos malignos de dominação mundial.
Na subjetividade capitalista reina a mais completa desconfiança de todos contra todos e nenhuma boa intenção sincera que envolva a obtenção de poder pode ser verdadeira. “Qual o interesse por trás?”, “o que ele está ganhando com isso?” , são as perguntas que faz quem, para sobreviver , deve sempre buscar primeiramente o benefício próprio.
O importante de notar aqui é que, apesar da crítica aos ricos e capitalistas, estamos dentro da subjetividade da própria burguesia. A visão do mundo como um espetáculo de aparências falsas é autorreflexo da própria sociedade capitalista e o apontar de dedos dessa situação não deixa de ser apenas: “as coisas são realmente dessa forma, que pena”.
“O teatro da vida”, onde cada um só está interpretando um papel para impressionar, não se trata de uma lei universal para todas as sociedades. A crítica fundada nessa perspectiva, portanto, não é uma crítica de fora, mas uma autocrítica, um recalque, uma vergonha pessoal burguesa, como que admitisse seu lado feio.
Seria fácil imaginar uma versão burguesa de Parasita: o porão da casa esconderia o segredo sujo da rica família aparentemente perfeita que mora ali. Onde o filme se diferencia é justamente de se basear no oposto: a família não só não tem nenhum segredo maligno, como é totalmente ignorante acerca do que ocorre sob seus próprios pés.
O casal burguês de Parasita é interessantíssimo nesse aspecto: não foi necessário apresentar que a empresa do patriarca da família é uma megacorporação do mal para perdermos a simpatia por ele. Em nenhum momento eles agem de forma maliciosa ou demonstram qualquer tipo de prazer em sua posição de dominação.
“São gentis porque são ricos”, essa fala genial explicita a subjetividade de classe do filme. Os capitalistas de Parasita não causam sofrimento porque estão envolvidos em algum plano de dominação global, mas simplesmente porque existem. Seu modo de vida sincero, movido pelas melhores das intenções, completamente adequado a sua condição, é mostrado como um completo absurdo.
A esposa não é a rica madame fofoqueira e arrogante dos bairros nobres que aparece nos filmes de Hollywood. Toda cadeia de ações do filme só existe porque ela age sempre na melhor das intenções buscando o bem-estar de sua família e seus filhos. Ainda assim, no decorrer do filme, só de observar sua vida achamos justamente sua gentileza mais sincera algo um tanto de podre.
A existência daquela família naquela casa em si aparece como um ultraje, não importa sua inocência. O filme perderia toda sua força crítica se por exemplo a enchente no bairro pobre tivesse uma relação de causa e efeito com as ações da empresa do pai da família, pois poderia o espectador respirar aliviado: “ali o culpado!”. Esse gostinho nunca nos é dado, pois o problema não é o caráter deste ou aquele indivíduo, mas a estrutura social em sua normalidade que é posta como perversa.
A graça consiste justamente em a história não nos dar nenhum nexo entre a miséria de uns e a fortuna de outros e quanto mais se esforça nisso mais essa conexão é feita.
Os comentários sobre o cheiro dos empregados são mais próximos de observações de quem olha animais no zoológico – “que curioso e bizarro são esses seres estranhos” – do que feitos por pura maldade e malícia. Bastante diferente, por exemplo, do racismo consciente em Bacurau.
Para efeitos de comparação falemos mais de Bacurau, outro ótimo filme feito a partir de uma perspectiva das classes oprimidas. Em Bacurau claramente estamos numa situação de classe contra classe: os oprimidos estão unidos em causa comum de resistência contra a classe dominante associada.
Apesar das motivações diversas, as intenções e objetivos dos vilões do filme são bem explícitas: matar por prazer. Os assassinatos são passados na televisão como uma forma de entretenimento.
O filme nunca pretende enganar o espectador de que o prefeito Tony Jr. ou os motociclistas são boas pessoas que mais adiante se revelariam do lado dos vilões. No andamento do filme ambos os lados ficam perfeitamente cientes do que está acontecendo, afinal se trata de uma guerra, não há espaço para inocências.
A rica família de Parasita nesse universo seriam os telespectadores do programa de matança, jamais fariam eles mesmos aquilo, enxergam apenas como um programa divertido sendo totalmente ignorantes das reais consequências do que estão assistindo. No melhor dos casos achariam de mau gosto, mudariam de canal e seguiriam suas vidas.
Os conflitos em Parasita não são diretamente de classe contra classe, o conflito maior de classes aparece sempre mediado pelos conflitos entre os interesses imediatos dos trabalhadores. Inclusive nos encontramos com personagens que, apesar do alto nível de humilhação e condições desumanas em que vivem, ainda assim admiram e respeitam a classe dominante.
Oportuno lembrar do personagem do Samuel L. Jackson em Django do Quentin Tarantino, o negro da casa grande racista e aristocrata que fica do lado escravocrata. Parasita nos apresenta um personagem parecido, mas é mais complexo. Em Django a contradição é berrante, o escravizado defendendo seu escravizador direto, já o marido do porão não tem vínculo real com o patriarca da casa.
Novamente a ignorância deixa a situação mais sinistra; não se trata do vilão da Disney que tem em torno de si uma figura patética que se afirma na sua adoração submissa ao chefe, mas é correspondido por algum xingamento. O capitalista de Parasita sequer sonha com a existência do seu admirador, cuja total existência depende dele.
Nada mais apropriado como paralelo das atuais relações de trabalho, onde as subcontratações, terceirizações, pejoutizações e afins fazem o capitalista nem enxergar sua contraposição à massa dos trabalhadores, não é diretamente responsável de nada. Esse mesmo cenário torna possível que os donos da empresa Uber podem chamar um Uber sem o motorista sonhar que ele está dirigindo para seu patrão, é a igualdade formal burguesa realizada. Somem as classes, todos viram colaboradores.
Em Bacurau, por outro lado, não existe nenhuma possibilidade para traidores entre o povo oprimido, a construção do filme impossibilita que qualquer personagem da cidade tenha ilusões sobre o local que ocupa naquele universo. Estamos diante de uma situação extrema, crua, um conflito fantástico de vida e morte no qual a noção de cotidiano é totalmente destruída, tudo é excepcional. As crises morais e conflitos se dão entre os antagonistas, reforçando a solidez da justeza da causa do povo.
Os conflitos iniciais entre os habitantes da cidade no clímax do filme se tornam irrelevantes, em Parasita o oposto acontece: os dramas do cotidiano, a dependência de viver como parasitas tomam uma forma monstruosa. Bacurau é um filme sobre uma situação épica que invade a vida cotidiana, já Parasita é um filme sobre a vida cotidiana que toma proporções épicas e por conta disso ele mais facilmente convence o telespectador na sua crítica, pois parte de elementos comuns do seu dia a dia.
Até mesmo na sua ambientação, Bacurau é muito mais localista, particular, o que facilita aparecer de forma fantástica e fetichizada para um cidadão médio de uma grande cidade. Observação: isso não é uma crítica negativa, é apenas uma constatação. Parasita é altamente universal, como disse seu diretor: “vivemos todos num mesmo país chamado capitalismo”, no qual se somam os elementos regionais. Também em completo oposto a Bacurau, aqui é a cooperação das famílias entre si contra a classe dominante que aparece como impossível. Apesar da situação altamente dramática, todas as leis da normalidade continuam em vigor, não há estado de exceção, mas o conflito de classes tem que ser resolvido mesmo assim.
Ambos os filmes, para mim, estão dentro do ponto de vista da subjetividade do oprimido – em vez das histórias sessão da tarde fundamentadas na culpa burguesa, mas é notável que nas inevitáveis comparações, Parasita conta com vantagem cosmopolita. Parasita é muito mais próximo da nossa realidade vivida, enquanto Bacurau é das nossas fantasias (com o adendo que são fantasias inconfundivelmente brasileiras e isso tem seu valor).
Em contraponto podemos dizer também que Bacurau é a realidade burguesa nua e crua, sem ilusões, a guerra aberta entre classes, enquanto Parasita é ela vestida com suas melhores roupas e ainda assim continua feia.
*Militante da Célula Sindical e Popular do Partido Comunista Brasileiro em Porto Alegre, Rio Grande do Sul.
Diretora de Universidades Públicas da UNE.