Pensar o mundo para os despossuídos

imagemO Poder Popular Ceará

Por Antonio Lima Júnior, jornalista, diretor da Associação Cearense de Imprensa e militante do PCB e da Unidade Classista

Na cena inicial do filme O Jovem Karl Marx, de Raoul Peck, lançado em 2017, somos apresentados a uma população de despossuídos roubando lenha em uma propriedade privada para garantir o insumo que garanta o aquecimento das famílias em períodos de frio, situação essa que dizem ser um dos pontapés da busca de Marx em compreender a realidade capitalista e lutar por sua transformação.

Tal situação mostra que a teoria marxista se apresenta como uma resposta aos problemas concretos; mais que isso, como afirma Adolfo Sanchez Vazquez, é uma teoria em amálgama com a prática política, sendo assim uma práxis. A situação dos despossuídos é assim o motor da causa, visto que se apresenta como solução dos problemas destes que não têm nada a perder a não ser seus grilhões.

Pensar o mundo para os despossuídos, assim como pensou Marx em sua juventude e lutou até o fim de seus dias, custando-lhe uma vida de dificuldades imensas, permanece como uma necessidade para aqueles que estão nessa condição. Hoje, com a crise capitalista agravada pela pandemia do coronavírus, os despossuídos estão cada dia mais despossuídos: de direitos historicamente conquistados, das liberdades democráticas e de bens básicos como a moradia.

Se antes Marx se indignava com o fato das pessoas arriscarem as suas vidas para conseguir a lenha capaz de aquecer seus corpos em noites frias, como não se indignar hoje com aqueles que em plena pandemia estão jogados nas ruas ou não tem mais condições de pagar para ter um teto que lhe aqueça e lhe cubra do relento? As estatísticas mostram o aumento das ocupações e a prática nos mostra, a exemplo da Ocupação Carlos Marighella em Fortaleza, que se enquanto morar for um privilégio, ocupar é um direito.

Os despossuídos continuam tendo apenas a sua força de trabalho para vender, trocando-a por migalhas e ignorando a riqueza que é produzida sob o suor dos explorados. Vemos a imagem dos precarizados, em especial os que hoje se arriscam na pandemia na condição de entregadores, sem qualquer direito, sequer a garantia de equipamentos de segurança e higiene por parte das empresas dos aplicativos. Estas se isentam, usando o subterfúgio da inexistência de relações trabalhistas nesse setor. Enquanto isso, a ideologia liberal tenta suavizar a cena grotesca da exploração, colocando seus coachs de araque para falar de determinação e engajamento, enquanto a roda do capital esmaga as vidas dos que estão do lado de cá.

São esses, nós, os despossuídos, que perderam a crença nessa sociedade capitalista. E é preciso refazer o trajeto de Marx, que o diretor Raoul Peck nos mostra com sobriedade, do esforço em compreender e lutar pela proposta de uma outra sociedade, fortalecendo os instrumentos políticos dos trabalhadores, como na disputa da consciência revolucionária da Liga dos Justos, transformando-a em Associação Internacional dos Trabalhadores.

A crença que precisamos lembrar não está envolvida na fé religiosa, assunto importante em tempos de messianismos megalomaníacos que perpassam a história recente, desde os constantes casos de figuras que usam da fé coletiva para garantir seus privilégios pessoais e manter os demais na condição de despossuídos. A crença que devemos reivindicar está no pensamento, na práxis que aponta para uma sociedade onde todos possuem direitos e liberdades. E isso não está no campo do impossível, tampouco relegado ao plano astral.

É para os despossuídos que devemos pregar a revolução, para aqueles que estão descrentes neste mundo e se apegam às diversas formas de fuga. Vivemos hoje numa sociedade que é capaz de acreditar em apocalipse zumbi ou invasão alienígena, mas é incapaz de acreditar no socialismo, que ignora os benefícios das experiências do século passado e se recusa às verdadeiras autocríticas que buscam a superação dos problemas.

Mariátegui, ao falar sobre a fé que move a força do proletariado no caminho da revolução, revela um sincretismo interessante entre religião, misticismo e socialismo. Entende que a humanidade moderna precisa de um mito, para o espanto da pós-modernidade que nada mais crê. Mas essa crença, recordo, está no pensamento enquanto elemento da práxis.

Numa sociedade em que a dor e a ausência são elementos que ensinam e que nos indignam, é preciso dar a resposta. Fazer como os personagens despossuídos em O Dragão da Maldade Contra O Santo Guerreiro, de Glauber Rocha (1969), que após tanto sofrerem se rebelam, para o espanto dos ricos e poderosos, assim como o espanto daqueles acostumados a assistir somente aos filmes em que tudo é belo e distorcido do mundo real, assim acham feio qualquer ficção que se aproxime do real. Imaginem se eles vissem o real! É preciso pensar o mundo para os despossuídos do real.