AS CAÇADAS DE PEDRINHO À CAÇA DA LIBERDADE INTELECTUAL – CONTRA O OBSCURANTISMO PSEUDO-LIBERTADOR!
Não me estranha ler nas páginas dos jornais manifestações de xenofobia e racismo. Elas estão por toda parte, em todo o mundo. Ciganos na França e na Itália, árabes, romenos e polacos em toda a Europa, latinoamericanos e negros nos EUA, índios no Brasil central, negros e nordestinos no Brasil meridional, etc. Um velho fenômeno muito discutido, mas pouco apreendido em suas raízes fundantes. O ponto nevrálgico e “universal” dessa discriminação é que todas essas populações discriminadas tem como origem países ou regiões miseráveis. São os “Condenados da Terra”, como diria Frantz Fanon, sem perspectivas, abandonados à própria sorte, estigmas vivos, membros permanentes da inclusão exclusora da ordem e da lógica do capitalismo.
Muitos intelectuais e ativistas de movimentos contra o racismo e a discriminação apontam como elemento central do problema duas questões correlatas: a cultura e a ideologia no que, em princípio, mas só em princípio, estamos de acordo. A dominação política (aqui em sentido ideo-cultural) sempre foi acompanhada por justificativas de superioridade, seja “racial”, seja “cultural”. Toda forma social hegemônica buscou legitimação afirmando-se como superior diante dos outros povos. Até seus deuses eram maiores e mais poderosos que o dos outros! Rá do Egito era superior à deusa Saushka (equivalente à deusa Ishtar mesopotâmica) dos Hititas. Joevá, o deus vingador dos judeus (e depois dos cristãos), superior ao panteon egípcio e romano, que fazia cair muralhas ao som das trombetas dos anjos. No capitalismo, as manifestações ideo-culturais ocidentais são apresentadas como “superiores” às outras, e assim por diante. Aliás, foi esse cientificismo positivista, típico da ideologia da sociedade capitalista, que justificou a assim chamada “teoria racial” dos finais do século XIX e do século XX.
Desde o ensaio de Gobineau, Essai sur l’inégalité des races humaines, de 1855, e dos escritos raciais do inglês Huston Chamberlain, com seu livro Os fundamentos do Século XIX (Die Grundlagen des Neunzehnten Jahrhunderts) de 1899, até o polêmico e racista livro de Herrstein e Murray, The Bell Curve (A Curva de Bell ), de 1994, todas as tentativas de “justificar” a desigualdade entre os seres humanos partiram de “bases” fundadas em aspectos raciais. A descoberta do DNA e a comprovação de que não há variações na composição genético-estrutural dos seres humanos, quer dizer, não existem raças humanas mas sim as manifestações fenotípicas”, ou seja, meramente morfológicas, de aparência, não desestimulou os adeptos das “teorias das raças”, como atesta o livro de Murray e Herrstein. Ali, obscuramente tenta-se comprovar que o isolamento de parte da espécie humana proporcionou, segundo os autores, o desenvolvimento qualitativamente diferenciado da “raça branca”.
Numa entrevista à Folha de São Paulo (05/11/2007), um dos autores do livro, o cientista político Charles Murray assinala: “Pois a ciência está nos dizendo claramente nos últimos anos que, ainda que o ser humano tenha a mesma imensa maioria de genes, aquele número comparativamente pequeno que difere pode produzir diferenças muito grandes entre grupos. Quanto à probabilidade de ter certas doenças, por exemplo, como a Doença de Tay-Sachs nos judeus ou a anemia falciforme nos negros. Certamente afeta a aparência física e não há razão para pensar que não tenha havido pressões evolucionárias diferentes em relação à habilidade intelectual. Não sabemos ainda se é verdade, mas certamente não há nenhuma razão para pensar que não é verdade” (cit.). Mais adiante, Murray, justificando outro teórico racista estadunidense, o prêmio Nobel de fisiologia e medicina, James Watson – para quem os negros são inferiores aos brancos – , afirma que o erro de Watson foi declarar aos jornalistas que “quem tem que lidar com empregados negros sabe a diferença”.(cit.)
A tal “prova” científica defendida pelos “três amigos” (Murray, Herrstein e Watson) é a capacidade intelectual diferenciada entre negros e brancos. Para tal, realizaram testes de quoeficiente intelectual (QI) aplicados em negros e brancos, e entre “tipos” diferenciados de brancos” (variante racial/de espécie?) como os judeus. Independente de ser essa uma abordagem meramente ideológica, ainda se quiséssemos buscar algum mérito científico nessas conclusões, perderíamos muito tempo para nada. Em primeiro lugar, é sabido que testes de QI tem por base um “tipo” de formação cultural e intelectual centrado numa universalidade cultural relativa, porque centrada nos países ocidentais ou de forte influência ocidentalizante. Dispersa e fragmentada em países periféricos e onde predominam etnias distanciadas do mundo ocidental. Em segundo lugar, e que se entrelaça com o primeiro argumento, há o fator social e de classe, porque o acesso à cultura é sempre dificultado aos segmentos proletarizados das sociedades contemporâneas. Isto é, esse tipo de teste pressupõe uma pessoa que possua formação integralmente articulada com os valores da sociabilidade capitalista em sua totalidade. Finalmente, essa avaliação ignora o fundamental da construção da sociabilidade humana, sua PRAXIS SOCIAL! É em sua praxis (o trabalho enquanto praxis humana) que o homem, como ser social, se objetiva e se diferencia de si e dos outros homens (como seres sociais ontológicos). Dai, as diferenças estão centradas em suas formas societais, nas formas de organização da vida. Os diferentes níveis de compreensão do mundo e de construção civilizatória criam as condições e os “graus” de sofisticação científica e tecnológica entre as formas de sociabilidade. Nunca o determinismo biológico!
Seguramente um indígena ou um negro não familiarizado com o universalismo burguês seria reprovado num teste como esse. Além do mais, as argumentações dos “três amigos” são recheadas de senso comum preconceituoso e isso elevado à condição de “ciência”, ou melhor dizendo, de pseudo-ciência, torna-se arma perigosa para preconceitos e intolerâncias de todos os matizes. Para amenizar suas concepções racistas, e dentro de um racismo às avessas, Murray afirma que chegou à conclusão que os judeus possuem um quoeficiente intelectual acima da média humana, principalmente os asquenazes (judeus da Europa oriental). Esse tipo de afirmação plena de ideologismos, ignora processos históricos, a luta pela e contra a dominação e o “supremacismo” dos países dominantes, principalmente na fase imperialista do capitalismo. Se notarmos a última argumentação sobre os judeus asquenazes (que geraram intelectuais de grande expressão, como Freud, Einstein e Mahler, entre outros) veremos que ela está baseada numa pretensa “mutação genética”, porque estes judeus miscigenaram-se com os brancos europeus!
Nada diferente do que propunha nosso mestiço racista de Saquarema Oliveira Viana, que já em seu Populações Meridionais do Brasil, de 1920, propunha a miscigenação para “aprimorar” e forjar uma “raça” brasileira e com isso, eliminar os aspectos “degenerados” presentes no negro e nos índios! Com informações de uma ciência genética incipiente, esse autor pregava uma sutil “limpeza” racial através da preponderância genética branca, isto é, a teoria eugênica do embranquecimento do brasileiro. O historiador Thomas Skidmore, em seu livro Preto no Branco, lembra da boa impressão que tal teoria causou em Theodore Roosevelt, futuro presidente estadunidense, em artigo publicado no jornal Correio da Manhã onde afirmava que o projeto era a eliminação total do negro, branqueando-o gradativamente através da miscigenação.
Ora, essa visão permeou todo o imaginário intelectual brasileiro, pelo menos até a segunda metade do século XX e vem permeando ainda hoje, mesmo que de forma mais “sofisticada” e dissimulada. Não é nenhuma novidade que nas forças armadas e até em muitos cursos de direito e de biologia, essas expressões ideológicas ainda são visitadas. intelectuais como Nina Rodrigues, que apesar de ter uma proposta de política “afirmativa” para o negro brasileiro, irmanava-se a Sylvio Romero na visão cientificista da “inferioridade” do negro. Podemos dizer que política e ideologicamente o primeiro confronto real contra a teoria do branqueamento, então visão hegemônica na sociedade brasileira, foi realizada na prática pelo PCB (Partido Comunista Brasileiro), ao lançar como candidato à presidência da república, o negro e operário marmorista, Minervino de Oliveira, através do Bloco Operário e Camponês (BOC), em 1930.
Outros intelectuais da época, também pagaram seus tributos ao velho preconceito, gerado nas senzalas das casas grandes, mesmo que tenham colocado questões relevantes sobre a problemática “racial” brasileira, como Nina Rodrigues. Gilberto Freire publica seu Casa Grande e Senzala, no mesmo ano em que Monteiro Lobato publica Caçadas de Pedrinho, em 1933. Três anos depois, Sérgio Buarque de Holanda publica seu Raízes do Brasil. Tanto em Gilberto Freyre como em Sérgio Buarque, estão presente fortes traços da visão patrimonialista e escravista, como resultado não só da sociabilidade escravista e agro-exportadora, como também de seu núcleo ideológico legitimador. Para Freyre, o escravismo brasileiro foi “brando” permitindo a “interação positiva” entre escravo e senhor. Para Buarque de Holanda, a sociabilidade da escravidão gera o brasileiro como “homem cordial”! Em 1928 é publicado Macunaíma, de Mário de Andrade, romance que também apresenta problemas,quando avaliamos sua caracterização do brasileiro como o índio aculturado e sem caráter (nacional) e o da miscigenação racial e cultural do Brasil, considerada como negativa, representada pelo imigrante italiano.
Se foi assim com esses intelectuais, se foram produtos ideológicos de uma forma de sociabilidade, não poderia ser diferente com Monteiro Lobato. Em 1918, sai a primeira edição de Urupês, onde está seu o anti-herói Jeca Tatú, matuto caipira, caboclo preguiçoso que encarna o que há de pior no país. Ai não é o negro mas o caboclo, mestiço de branco com índio, que é o alvo da crítica, pelo menos até a década de 1920, quando pesquisas científicas demonstram que a malfadada preguiça do caboclo Jeca Tatú era resultado de doenças várias, presentes no Vale do Paraíba. Imediatamente Lobato escreve um prefácio para seu livro pedindo desculpas a seu personagem, dizendo não saber o motivo real de sua indolência. Seu personagem será utilizado por campanhas sanitaristas de combate as pragas endêmicas em todo o país. Tanto em Urupês como em Caçadas de Pedrinho (1933), estão presentes as contradições de uma intelligentzia hegemônica moldada por uma sociedade que pagava seus tributos a séculos de escravidão e de autocracia oligárquica. Os estereótipos sobre a população não branca, negros, mestiços e índios grassavam em nossa sociedade. Havia também os estereótipos dos imigrantes que chegavam. O italiano comilão, briguento e agitador, o polaco bêbado, o espanhol miserável de sapatos rotos, as lituanas “vagabundas e prostitutas” e tantos outros.
Mas se temos estereótipos preconceituosos nas obras de Lobato, e certamente encontraremos muitos deles, ali também estão balanços críticos de um voraz processo de modernização “pelo alto”, típico do capitalismo brasileiro. Em Urupês, e Negrinha estão as denúncias de uma sociedade de burgueses parasitários e de um Estado burocrático, de abusos contra a infância, do preconceito racial. Lobato em suas obras “adultas”, desvela um Brasil que é violento contra as mulheres e contra os imigrantes. Temos em Lobato um homem de seu tempo, com as contradições de seu tempo, com as limitações de um intelectual preocupado com o nacional, mas que nunca chegou a ser intelectual nacional-popular, como diria Gramsci. A ruptura e a construção de uma intelectualidade de caráter nacional-popular, afinada com o projeto dos trabalhadores começará a ser organizada a partir de intelectuais orgânicos do movimento operário e popular, como Astrojildo Pereira, Octávio Brandão, Nelson Werneck-Sodré e Caio Prado Jr.
O que depreendemos dessas breves considerações é que obras de importantes intelectuais nos ajudaram compreender o Brasil e a construir elementos analíticos para lutar contra o preconceito, a exploração dos mais fracos e contra o obscurantismo. Tentar censurar Lobato, ou qualquer produção intelectual, estejamos de acordo ou não com ela é cair no obscurantismo. É travar a luta da emancipação humana com “argumentos” de força, os mesmos da inquisição ou do nazi-fascismo. Não se combate a ideologia do racismo com racismo “qualificado”. Não se liberta aprisionando. A liberdade e a crítica devem ser nossas armas fundamentais, se quisermos construir uma sociabilidade superior a esta capitalista.
*Antonio Carlos Mazzeo é membro do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro – PCB.