Na contramão da ordem burguesa: samba, malandragem e resistência

imagemNa virada do século XIX para o século XX, a cidade do Rio de Janeiro, capital da República recém proclamada, viveu a conjuntura de transição para a ordem capitalista, cujas relações se dinamizaram com o fim da escravidão. As classes dominantes e seus representantes políticos no Estado e no parlamento buscavam elaborar uma nova ética do trabalho na conjuntura pós-abolição. Na ótica destes senhores, a propriedade privada e a segurança dos cidadãos estariam ameaçadas pelas hordas de libertos que supostamente vagavam pelas estradas a roubar e vagabundear. Era preciso transformar o liberto em trabalhador “civilizado”, para o que muito serviu o conceito de vadiagem, produzido com base no mito da preguiça inata do “trabalhador nacional”.

O período foi marcado por forte repressão aos capoeiras e pela destruição dos cortiços na capital da República. Pouco tempo depois, as obras do Prefeito Pereira Passos e de seu auxiliar Paulo de Frontin, durante o governo de Rodrigues Alves (1902-1906), no ritmo da campanha “O Rio civiliza-se”, pretendiam transformar o Rio de Janeiro numa cidade europeia, com grandes praças e avenidas, mas varrendo para longe a pobreza e a negritude.

Expulsa do centro da cidade, a população pobre e negra foi procurar moradia na periferia e nos morros. Na contrapartida do projeto civilizador burguês, as classes populares, formadas nas comunidades negras de ex-escravos e homens e mulheres pobres, produziram uma cultura própria, resultante das experiências vividas no mundo do trabalho e nos lares, assim como nos botequins e nas ruas. Como expressão máxima dessa cultura popular, surgiu o samba, inicialmente de um jeito comportado, próprio de compositores respeitáveis, dando lugar, mais adiante, a uma geração ligada à boemia, ao improviso e à malandragem.

Na esteira do “Bota-abaixo” de Pereira Passos, nasceram bairros como o Estácio de Sá, que se tornou o berço do samba urbano carioca. Centro da grande “malandragem” do princípio do século, vizinho da Praça Onze e do Mangue (zona do meretrício), foi passagem de todos os grandes sambistas que surgiam no Rio – da Mangueira à Portela, passando pelos compositores e cantores do rádio que, na “década de ouro do samba”, lá iam garimpar a base de seu repertório.

Os sambistas surgidos nos anos 1920 eram ligados aos redutos da boemia e, em suas letras, destacavam as situações de “orgia”, “malandragem” ou “vadiagem”. Um bom exemplo de composição afinada com os valores boêmios é A Malandragem, samba de estreia de Bide, integrante da primeira geração de músicos do Estácio. A letra do samba (gravado por Francisco Alves em 1927) consiste na fala irônica de um malandro anunciando que está prestes a abandonar a vida de orgia e virar “almofadinha”. Outros exemplos contendo esta temática podem ser encontrados em sambas de Ismael Silva, Noel Rosa, Wilson Batista, Geraldo Pereira, etc.

Ao longo de sua rica história, o samba enfrentou a perseguição da polícia ao ser associado à vadiagem, superou a tentativa de domesticação feita pelo regime de Vargas, que o queria dócil, a serviço da imagem positiva do trabalho sob o progresso capitalista. Sofreu a censura imposta pela ditadura empresarial-militar de 1964 a 1985 e resiste o quanto pode às investidas da indústria cultural imperialista, que busca desfigurá-lo. Segue firme como a grande força da cultura popular e do povo negro. Como canta Nei Lopes: “O samba vem de muito longe/De antes da Praça Onze/De emoções ancestrais/Candeia por sinal já dizia/Que ele é filosofia/Não é moda fugaz”.

(O PODER POPULAR Nº 8)