O PODER, O CARÁTER, A VIA DA REVOLUÇÃO E A UNIDADE DA ESQUERDA.

Atenção: este texto foi escrito nos primeiros anos da década de 1980

O ABC do marxismo-leninismo ensina que o problema fundamental da revolução é o problema do poder; o afastamento na prática desta verdade é, em nosso julgamento, um dos fatores principais que, se não fosse corrigido a tempo, poderia ter-nos deixado fora da linha de frente da revolução salvadorenha.

Na América Latina, tiveram lugar duas grandes revoluções verdadeiras, a de Cuba e a da Nicarágua e, em nenhum dos dois casos, os Partidos Comunistas estiveram à frente. No caso da Nicarágua, a experiência com o partido irmão foi desastrosa, excetuando-se a parte dele que desde 1978 se incorporou à luta armada.

Estamos convencidos de que a ausência prática de uma clara conduta da luta pelo poder é o fator principal que explica estes resultados. Esta mesma questão tem estado na base, cremos nós, das equivocadas caracterizações de certos processos sociais e políticos reformistas na América Latina como “revoluções”. Na prática esta caracterização não se confirmou, mas serviu para determinar um papel de simples força de apoio para os partidos irmãos dos respectivos países.

Outra expressão deste mesmo problema é o papel exagerado e, em alguns casos, a absolutização do papel que se fixa para o Programa Econômico-Social para determinar o caráter da revolução, o curso da luta por sua vitória e da defesa e consolidação da mesma. No Chile, durante o governo de Allende, por exemplo, tanto os participantes da Unidade Popular, como as forças assim chamadas ultra-esquerdistas, davam uma importância central e decisiva ao Programa Econômico-Social. Para os outros, tudo consistia em radicalizar esse programa, rebaixar seus limites. Entretanto, ninguém elaborou nem aplicou uma orientação correta para resolver realmente o problema do poder, nem para defender o governo de Allende.

Refiro-me ao caso chileno porque creio que é quase de laboratório: é curioso que quando apareceram objetivamente os processos e correntes que configuravam a possibilidade de resolver revolucionariamente o problema do poder, nem uns nem outros o captaram. Tenho em conta a configuração dentro do exército chileno de uma corrente que compreendia bastante claramente a necessidade de solucionar o problema do poder. A dimensão e transcendência desse fato pode ser apreciado nas anotações do Gal. Prat em seu diário durante 1973 (1). É também curioso como a reação entendeu com precisão esse assunto. Tudo o que a reação fez no Chile durante o governo de Allende, estava dirigido para esmagar a possibilidade de perder o poder e quando se configurou esta corrente no exército, seu esforço concentrado esteve dirigido para desfazer-se de Prat e seus companheiros.

Como atuaram as forças revolucionárias frente a esse fenômeno? Ninguém definitivamente defendeu Prat e a parte do exército que ele encabeçava. Uns o sacrificaram em interesse de manobras políticas acreditando honradamente que estas trariam a saída da crise; e, os outros, consideraram que a presença de Prat no governo era “a presença da burguesia”, que o pacto com Prat era “a traição à revolução” e decidiram constituir-se na “oposição operária camponesa”.

Quando a corrente de Prat era forte e predominante, quando derrotou o “Tancazo” (junho/1973), as massas intuíram a importância daquele momento para resolver revolucionariamente o problema do poder; se lançaram à rua, como todos sabemos, exigindo golpear profundamente a reação, fechar o parlamento, depurar o exército, mas a direção daquele processo não tomou resolutamente em suas mãos estas bandeiras. Não estou defendendo a idéia de que tudo se resolveria no Chile organizando a luta em torno de Prat; creio sim, que o aparecimento da corrente encabeçada por ele e a onda de massas que seguiu à sua vitória sobre Tancazo foi o mais próximo que houve durante o governo da Unidade Popular para a solução do problema do poder para a revolução. Essa possibilidade apareceu objetivamente e se constituiu assim numa prova para medir a clareza das forças revolucionárias para a tese do marxismo-leninismo de que “o problema do poder é o problema fundamental de toda revolução”.

A história da revolução mundial tem referendado esta verdade, várias vezes. Não é um programa econômico-social o central, o decisivo. Os ritmos na aplicação do programa social, a realidade das mudanças econômico-sociais estão na dependência das condições nacionais e internacionais em que se realiza cada revolução.

Os revolucionários têm a possibilidade de escolher o ritmo melhor, inclusive de fazer pausas e até retrocessos se for necessário, com a condição de que conquistem o poder e o retenham firmemente em suas mãos. A revolução de Outubro e a NEP (nova política econômica) (2) são exemplos da necessária desaceleração das mudanças econômico-sociais. Em Cuba, o programa econômico-social do Movimento 26 de julho de fato era só o discurso de Fidel “A história me absolverá”, desconhecido para as grandes massas majoritárias do povo antes do triunfo da revolução. Na experiência da revolução cubana foi necessário acelerar, sem embargo, a radicalização das transformações econômico-sociais para defendê-la frente às asfixiantes medidas contra-revolucionárias empreendidas pelo imperialismo ianque. A atual experiência da Nicarágua, onde o ritmo e a profundidade das transformações econômico-sociais teve de graduar-se, é outra constatação prática da tese da qual já falamos e se poderia citar exemplos da Europa oriental e África.

É necessário esclarecer profundamente a dialética do problema do poder e o Programa Econômico-Social. Tem-se que voltar ao delineamento leninista novamente; toda questão traçada por Lênin em suas Teses de Abril, de 1917, apontava a tomada do poder pelo proletariado revolucionário e seu partido, para esclarecer e unir em torno destes as forças das grandes massas camponesas e populares em geral para realizar a tarefa.

As “Teses de Abril” continuam sendo o modelo de como compreender o problema do poder e como determinar a conduta do partido na situação revolucionária.

Responder à pergunta de por que o movimento comunista da América Latina e outras regiões do Terceiro Mundo deixou de ter no centro de sua atuação a luta pelo poder, é um assunto complexo; nós não temos uma resposta satisfatória; seguramente há várias. Vou referir-me a uma: parece-me que a solução do problema do caráter e da via da revolução está vinculada a este assunto.

O CARÁTER E A VIA DA REVOLUÇÃO

Em Cuba ficou demonstrada uma regularidade da revolução na América Latina: a revolução que aqui amadurece é a revolução socialista. Ficou também demonstrado em Cuba que não se pode ir ao socialismo, que não se pode realizar revolução socialista senão com bandeiras democráticas anti-imperialistas, que não se pode realizar até o fundo a revolução democrática anti-imperialista nem se pode defender suas conquistas sem se atingir o socialismo.

Dito de outra maneira: não se pode atingir o socialismo senão pela via da revolução democrática anti-imperialista, mas tampouco se pode consumar a revolução democrática anti-imperialista sem atingir o socialismo. De maneira que entre ambas há uma ligação essencial indissolúvel, são facetas de uma única revolução e não duas revoluções. Se olhamos de agora para o futuro, o que se apresenta é a revolução democrática anti-imperialista e que não se apresenta com uma revolução à parte, senão como a realização das tarefas próprias da primeira fase da revolução socialista.

Sendo assim, compreende-se melhor que não pode haver revolução sem resolver a fundo o problema do poder e que não é necessário esperar que as grandes massas tenham uma consciência socialista para conceber a tomada revolucionária do poder. Em Cuba, não havia consciência socialista generalizada antes da vitória de 1° de janeiro de 1959. Parece-me que, se o problema do caráter da revolução é enfocado desta maneira, a atividade dos partidos revolucionários não pode deixar de ter em seu centro o problema do poder.

Não sei de onde surgiu este esquema, mas nosso partido, e me parece que muitos outros partidos comunistas da América Latina, temos trabalhado durante decênios com a idéia de duas revoluções e víamos a experiência cubana com uma “peculiaridade excepcional”. Reagimos tantas e tantas vezes contra a colocação esquerdista da luta pela implantação direta, sem estágios, do socialismo e chegamos a nos convencer de que a revolução democrática não é necessariamente uma tarefa a ser organizada e promovida principalmente por nós. Que poderíamos nos limitar e nos conformarmos em ser força de apoio e assegurar a amplitude do leque das forças democráticas participantes.

Assim, a revolução democrática antiimperialista se nos apresentava como uma “via de aproximação”, que pode alcançar-se deixando na dianteira da ação setores “progressistas”, “anti-imperialistas”, das camadas médias (da intelectualidade, dos militares, etc.) e até da burguesia. As experiências peruana, panamenha e portuguesa (brevemente também a experiência do Gal Juan Torres na Bolívia), pareceram confirmar esta tese ainda que elas mesmas terminaram negando-a. Claro que em nenhum documento partidário se disse expressamente tal coisa, mas a conduta prática de nosso partido e de outros partidos irmãos foi essa. O que surge de tal conduta não é nem pode ser o partido da revolução mas sim o partido das reformas. O Partido Comunista Salvadorenho, para assumir seu papel revolucionário, teve que abandonar este esquema equivocado.

Nós estamos convencidos de que o movimento comunista latino-americano há que fazer uma grande luta ideológica para nos livrarmos desse peso reformista.

Não há dúvida que estou longe de pensar que esta é uma análise integral e suficientemente profunda. São simplesmente reflexões e preocupações, deduções de nossa própria experiência e sugestões para aqueles que trabalham na esfera cientifica, estudando o processo revolucionário mundial; são sugestões para voltar a este ponto, com freqüência, ainda que pareça um assunto elementar.

A questão da luta pelo poder está ligada a demasiadas coisas. Primeiramente com o problema da via da revolução e do caráter desta. Na América Latina a revolução socialista, há que arrebatar o poder à burguesia, há que destruir o aparelho burocrático militar da burguesia; isto nas condições atuais – e o será assim por muitíssimo tempo – não pode realizar-se pela via pacífica.

Na América Latina, esta tese já foi comprovada pela experiência de duas revoluções armadas triunfantes e pela derrota de dois intentos de consumar a via pacífica, nos dois países mais democráticos do continente: Chile e Uruguai. Em ambos os casos, exércitos “institucionalistas”, “profissionalistas” e as não tradicionais, tropas gorilas, tão difundidas em nosso continente, puseram a pique o barco e a navegação da revolução pacífica. Costa Rica, a “Suíça da América” – que “não tem exército” – encontra-se sacudida hoje por uma vertiginosa carreira repressiva, de organização e ação de bandos fascistas armados sobre o cenário de uma desenfreada crise econômica. Ninguém adere agora na Costa Rica à hipótese de uma evolução pacífica da revolução. A idéia da via pacífica para a revolução na América Latina está ligada ao reformismo, no meu entender.

Na sociedade latino-americana há muitas forças progressistas. Poderia se pensar que unindo estes setores progressistas pode-se influir sobre o que costuma chamar-se hoje “centros e aparelhos do Poder” e, pouco a pouco, ir modificando a essência do Estado, “tomar o poder por partes”. Se aceitamos que a revolução democrática anti-imperialista é parte inseparável da revolução socialista, não se pode realizar a revolução tomando pacificamente o poder por partes, será indispensável sob uma ou outra forma, desmantelar a máquina estatal dos capitalistas e seus amos imperialistas, erigir um novo poder e um novo estado. Em tais condições, resulta evidente que a via pacífica não é a via da revolução.

Manejar este problema da via da revolução na América Latina a partir de que é indiscutivelmente verdadeira (com força de dogma) a afirmação de que há possibilidades iguais, eqüitativas, pela via armada e via pacífica é, em nossa opinião um erro muito grande, inclusive se esta tese se formula como uma afirmação “em principio”. É igualmente um grave erro manejar a questão da via da revolução com um assunto puramente “tático”, sujeito a imprevisíveis variações”. Ambos esquemas são uma colocação eufemística da posição reformista, não revolucionária, que aliena o papel de vanguarda do partido comunista.

Logo, a via armada da revolução não exclui a luta pela realização das reformas econômico-sociais. Esta luta joga um importante papel na educação política das massas e as alianças; ademais as mudanças “profundas” do programa democrático antiimperialista são em essência reformas, já que por si só não podem abolir o capitalismo e, pelo contrário, podem reforçá-lo; o que imprime um caráter revolucionário a esse programa é a luta revolucionária pelo poder e a tomada revolucionária do poder.

Na experiência do Partido Comunista Salvadorenho, os errôneos enfoques e em certos aspectos fundamentais, menos que erros, debilidades teórico-ideológicas relacionadas com os problemas do poder, o caráter e a via da revolução, junto com a influência das concepções de nossos aliados democráticos no curso da luta eleitoral de onze anos, na qual participamos os comunistas, engendraram em nossas fileiras esquemas e ilusões reformistas. Desfazer-se delas requereu autocrítica franca e profunda, junto com medidas audazes e difíceis.

A participação do PCS na luta eleitoral foi acertada. A luta eleitoral se havia convertido objetivamente na arena principal da luta política nacional desde 1964, sobre a base da industrialização e do grande auge econômico (1963-1968) que então se lograva no marco dos convênios do Mercado Comum centro-americano e depois da reforma legal que permitiu a representação proporcional na Assembléia Legislativa. Não participar na luta eleitoral significava de fato colocar-se bastante à margem da luta política e ademais abandonar as massas ao controle ideológico da burguesia.

É certo que desde 1970 as organizações revolucionárias armadas, surgidas nesse ano, repudiaram a luta eleitoral e se abstiveram de participar delas. Mas também é certo, como o reconhece hoje a maioria dessas organizações irmãs, que o crescimento e desenvolvimento da luta armada recebeu bastante contribuição e participação dos comunistas nas freqüentes contendas eleitorais (três eleições presidenciais e seis eleições parlamentares e municipais entre 1966 e 1977).

Com efeito, a participação do PCS na luta eleitoral de onze anos, ainda que não com seu próprio nome por causa de sua ilegalidade, facilitou às massas trabalhadoras e populares em geral, fazer uma intensa aprendizagem política, conquistou a maioria para a causa democrática anti-imperialista, alertou em tempo ao povo e a todas as forças democráticas contra o perigo do fascismo, ajudou a precipitar a crise da ditadura militar como sistema político de dominação.

Não é em vão, escreveu Lênin em seu folheto “sobre o Estado” publicado em 1929: “…só o capitalismo, graças à luta urbana, permitiu à classe oprimida dos proletários adquirir consciência de si mesma e criar o movimento operário universal, os milhões de operários organizados em partidos no mundo inteiro, os partidos socialistas que dirigem conscientemente a luta das massas. Sem parlamentar, sem eleições, este desenvolvimento da classe operária, teria sido impossível”.

A vida demonstrou em El Salvador, que a participação eleitoral dos comunistas deu uma grande contribuição política ao movimento de luta pela revolução e que, olhando neste momento todo aquele período, pode-se afirmar que o atual movimento revolucionário, seu programa, sua linha, é uma síntese da luta armada e de massas das organizações irmãs, de suas elaborações ideológicas-políticas, da luta política e de massas, e a linha do PCS.

Apesar de tudo que tem de positivo de nossa participação eleitoral, é necessário insistir em assinalar que ela manteve vivas e, de certo modo, reforçou as manifestações ideológico-politicas do reformismo em nossas fileiras, começando pela Direção, embora nunca se tenha adotado oficialmente a via pacífica da revolução.

O movimento eleitoral levou a maioria do povo a enfrentar a fraude, a imposição e a repressão e assim, na prática – não somente por nós como também pelas grandes massas – se esgotaram as possibilidades da “via” das eleições para democratizar e transformar o país. Nós sabíamos que assim ocorreria e ajudamos as massas a realizar o aprendizado desta verdade levando-as a confrontar-se com ela e realizando uma propaganda esclarecedora sistemática. Na escola insubstituível de sua própria experiência, as grandes massas aprenderam a conhecer a verdadeira face da ditadura militar reacionária, seu fraudulento jogo com as eleições, livraram-se das ilusões, da “via” eleitoral e compreenderam que não há outro caminho para alcançar a democracia, a justiça social e o progresso a serviço do povo, que a derrubada da ditadura, cada dia mais sanguinária e opressiva, através da violência revolucionária. Repito, os comunistas ajudamos conscientemente as massas a realizar esse aprendizado. Em nossas campanhas eleitorais dizemos que não se devia esperar das urnas o poder, que estas eram um ponto de passagem no caminho e que o poder teria que ser conquistado com outra forma de luta.

Isto contribuiu para preparar as condições políticas para uma virada ampla das massas no sentido do apoio à luta armada e à incorporação de um crescente número de seus componentes como militantes e combatentes das organizações armadas.

Mas chegado este momento – em fevereiro de 1977 – e apesar que a comissão política do Comitê Central concordou em realizar a mudança de nosso partido para a luta armada que dará continuidade à luta política do povo, demoramos 2 anos em consumá-la. Tivemos que fazer um grande esforço analítico e autocrítico para encontrar as causas dessa demora. O êxito desse esforço pode ser alcançado, principalmente, porque logramos vencer o método frequentemente praticado em circunstâncias semelhantes, que consiste em lançar culpa uns aos outros no partido, ou de culpar outras organizações evitando-se enfrentar a verdade e chegando, por outro lado, a provocar fracionamentos. O fracionamento poderia ter marginalizado o partido da vida política do país. As conclusões do esforço analítico do PCS pode resumir-se assim: existiam obstáculos ideológicos e orgânicos que se chocavam contra as decisões de realizar a virada em favor da luta armada.

No que se refere aos obstáculos ideológicos, já falei. O principal obstáculo orgânico consistia em que quadros do partido, os quadros da direção nacional e os intermediários, que são o cérebro, os ossos e nervos do partido, de quem depende decisivamente a elaboração e o cumprimento dos acordos centrais não sabiam como organizar a passagem à luta armada, nem como combiná-la com a luta política. Sua formação era unilateral. Nossos quadros eram sumamente eficientes e, inclusive, inovadores para desenvolver a luta de massas não armada, para propaganda, para agitação, para o trabalho com os aliados democráticos, para o trabalho nas universidades, mas quando chegou a hora de implementar esta forma superior de luta não estávamos preparados para ela.

Tínhamos uma comissão militar, mas o conjunto de quadros do partido, que é o decisivo, não sabia como levar à prática as orientações acerca da luta armada. Para superar este obstáculo, a Direção empreendeu passos audaciosos, baseando-se nos acordos do VII Congresso, realizado na clandestinidade em abril de 1979. Foi abandonada a idéia de que a Comissão Militar é a encarregada de formar um aparelho militar, separado do corpo do partido, numa espécie de dispositivo que deve sair do seu misterioso esconderijo e entrar em ação quando chega o momento. A vida demonstrou que desse modo não se pode criar tão milagroso mecanismo. Os companheiros da Comissão Militar não tinham culpa. Essa situação era o resultado de um defeito essencial na política geral para a formação de quadros do Partido, política sem duvida vinculada às concepções reformistas não derrotadas totalmente.

Ademais, se a Comissão Militar houvesse logrado desenvolver esse tipo de aparato militar, haveríamos tido um enorme problema. No geral, segundo a experiência dos outros partidos, aqui mesmo na área centro-americana, isto acaba em enfrentamento entre a Comissão Militar e o resto da Direção. Na base das contradições entre as comissões militares e o resto do Partido, independentemente de se uns e outros levam razão em cada conflito concreto, encontramos este problema da incapacidade do conjunto do Partido para organizar e dirigir a luta armada quando chega o momento de fazê-lo.

Este problema só podia resolver-se convertendo o Partido, em seu conjunto, em chefe e ator não só de sua luta política como também de sua luta armada, tornando o grande combinador e dirigente de todas as formas de luta. Para lograr isso, tivemos que tomar medidas audazes: fizemos que um número rapidamente crescente dos membros do Comitê Central, da Comissão Política, dos Comitês Dirigentes Intermediários e uma grande massa do Partido e da Juventude Comunista de El Salvador, JCS, estudassem os problemas da luta armada revolucionária e se exercitassem na arte e na técnica militar, não para dedicar todos eles ao aparelho militar, se não para praticar a convicção de que a luta armada no Partido deve ser organizada realizada e dirigida pelo Partido, por seus organismos dirigentes e de base.

O acerto daquela orientação se confirmou nos fatos de que nossas forças armadas se multiplicaram muitas vezes, a partir dos dias seguintes ao VII Congresso e, o que é mais importante, combatem hoje com crescente capacidade e eficácia. Se nós não houvéssemos feito esta virada orgânica, as massas teriam continuado batendo às portas de nosso Partido, pedindo para incorporar-se e não teríamos podido assimilá-las, exceto a uns poucos indivíduos. O Partido teria ficado assim excluído da fila de frente da revolução, quiçá se haveria dividido e se liquidado.

Quero sublinhar que, a partir de nossa experiência, a conclusão é que as concepções reformistas com respeito ao problema do poder e à via da revolução vêm unidas à existência de uma estrutura orgânica partidária atrofiada, também reformista. Nossos partidos são capazes de organizar a luta sindical, a agitação e a propaganda política, as manifestações de massas, as greves, as campanhas eleitorais e demais atividades similares; porém, não mais que isso. Assim só podemos ser força de apoio.

A UNIDADE DA ESQUERDA REVOLUCIONÁRIA

Ligada com todos estes problemas está a questão da unidade das forças de esquerda revolucionária, a atitude dos comunistas com respeito às organizações revolucionárias surgidas fora das estruturas do partido. É curioso e sintomático que os partidos comunistas tenhamos mostrado nos últimos decênios uma grande capacidade para nos entendermos com os vizinhos do lado direito, enquanto que em troca não logramos, na maioria dos casos, estabelecer relações, alianças estáveis e progressivas com nossos vizinhos do lado esquerdo. Entendemos perfeitamente todos os matizes a partir de nós para a direita, suas origens, sua significação, etc., mas com respeito aos que estão à nossa esquerda, não somos capazes de compreender a essência mesma do fenômeno de sua existência e características, nem sua significação histórica objetiva, nem nossas tarefas para com eles. Os comunistas latino-americanos não tivemos durante muito tempo uma linha consistente e sistemática para unir todas as forças da esquerda, incluída a esquerda armada.

Não há nada pejorativo nem depreciativo na denominação “vizinhos do lado direito”, é só um recurso para grafar a exposição destas idéias. Os comunistas salvadorenhos, nos orgulhamos e nos sentimos honrados pela amizade de uma grande parte desses aliados, firmes e conseqüentes lutadores pelos ideais democráticos, de independência e progresso social.

Nisto jogam seu papel vários fatores. O principal sem embargo é que, no geral – ainda que não em todos os casos – os que à nossa esquerda empunham as armas se comprometem em uma luta revolucionária real, cometem muitos erros típicos do esquerdismo em suas colocações políticas, atacando duramente o Partido dos comunistas, mas acerta num ponto fundamental: trabalham obcecados por organizar e promover a luta armada que na América Latina e em tantas outras regiões do terceiro mundo demonstrou ser a via da revolução. Na medida que persistem em sua luta, e seus erros não os fazem sucumbir, aprendem pouco a pouco de seus reveses, corrigem seus erros políticos e se libertam por fim de sua enfermidade esquerdista, ainda que muitas dessas organizações jamais logrem corrigir-se, se não sucumbem, vegetam inclusive por decênios, como grupos de catacumba. Deixam de ser revolucionários, derivam para o terrorismo individual. Uma correta linha de luta pela unidade da esquerda impulsionada pelos comunistas, poderia acelerar ou ajudar na correção dos erros esquerdistas. Mas os comunistas não podem jogar esse papel se não corrigem seus próprios erros de direita, seu reformismo.

Enquanto não chega à correção do reformismo, as relações entre os comunistas e a esquerda armada – fazendo de um lado toda retórica – se coloca na prática e essência como a relação entre a reforma e a revolução; e está claro que os reformistas podem entender-se melhor com outros reformistas. Essa, acredito, é a explicação de por que os comunistas latino-americanos sabemos nos entender melhor com os que estão à nossa direita do que com os que estão à esquerda.

Suponha-se que nisto estão implicados muitos outros aspectos do problema. Primeiro o fato de que possam surgir outras organizações revolucionárias à margem das estruturas de nossos partidos. O velho discurso dogmático de que o partido comunista é, por definição, “o partido da classe operária”, a “vanguarda de luta anti-imperialista e pelo socialismo”, etc., reduz e inclusive bloqueia nossa capacidade para compreender que nas condições sociais e políticas (de classe) engendradas pelo capitalismo dependente na América Latina, é impossível que tais organizações da esquerda armada deixem de surgir e de existir e que, portanto, é absurdamente indispensável realizar uma sistemática política para elas que combine a luta ideológica contra seus erros e a luta pela unidade com eles, baseada na elevação real do caráter revolucionário, do caráter classista e de vanguarda de nosso partido.

Entre as causas que tornaram possível o surgimento de organizações revolucionárias fora das estruturas do PCS, têm lugar importante os traços reformistas de sua política, os quais já pontifiquei, sua incompreensão dos problemas e possibilidades práticas para organizar e desenvolver a luta armada nas condições de nosso pequeno e densamente povoado país (um documento aprovado em março de 1968 praticamente descartava que se pudesse desenvolver a guerra de guerrilhas, exceto pra defender o poder revolucionário instaurado por meio de uma insurreição geral).

Mas os erros e debilidades do partido comunista não são a causa absoluta do surgimento de ditas organizações como foi alegado por alguns. Inclusive se o partido não tivesse cometido tais erros teriam surgido uma ou mais organizações esquerdistas, como o demonstraram experiências, entre elas a dos bolcheviques.

É que ademais de causas subjetivas existem também determinantes causas objetivas que têm suas raízes na estrutura de classe e nos fenômenos sociais próprios do capitalismo dependente, quando o modo de produção e a superestrutura estatal abrigam resíduos de formações sociais pré-capitalistas ou do capitalismo primitivo. Em El Salvador, os processos que impulsionaram uma brusca expansão do capitalismo dependente tiveram lugar nos anos 50 e, sobretudo, nos sessenta. Estes processos tiveram em cena novos sujeitos sociais, sem os quais é impossível entender o leque de todas as forças políticas que hoje se confrontam em El Salvador.

Examinemos a questão dos novos agentes populares. Surgiu uma nova classe operária do processo de industrialização daqueles anos, mais qualificada desde o ponto de vista técnico, porém com uma consciência de classe muito mais débil que a velha classe operária artesanal, produto de sua recente origem social camponesa e pequeno-burguesa provinciana; um proletariado e semi-proletariado agrícola muito ressentido por sua recente proletarização e, portanto, muito explosivo; um enorme setor marginal urbano produto da emigração rural provocada pelo desenvolvimento do capitalismo na agricultura; e um importante setor pequeno burguês intelectual, também marginal, nascido da expansão da educação média e universitária, que não tem correspondência com as capacidades internacionais que o estabelecimento econômico nacional proporciona.

Só quando entendemos esta questão dos novos agentes sociais criados pela expansão do capitalismo dependente, podemos compreender que a possibilidade do surgimento de verdadeiras organizações políticas revolucionárias fora das estruturas do partido comunista existe objetivamente, e que é próprio dos países de capitalismo dependente muito mais que dos países de capitalismo desenvolvido.

Trata-se de organizações que aderem ao marxismo-leninismo, que apresentam as perspectivas do socialismo, em que pese não estarem vinculadas ao Movimento Comunista Internacional.

Todavia, não faltam casos em que tais grupos degeneram em desprezíveis redutos de provocação e divisionismo ideológico.

Na América Latina, o discurso destas organizações é muito similar ao esquerdismo infantil criticado por Lênin, mas os agentes não são exatamente idênticos. Estas organizações aparecem, inclusive, onde há partidos comunistas desenvolvidos e reaparecem ainda quando derrotados e aniquilados fisicamente. Não são, pois, propriamente expressões da infância do movimento operário e dos partidos comunistas, que se supera pelo desenvolvimento destes, senão que se repete constantemente originando organizações com freqüência maiores que os respectivos partidos comunistas. Os partidos comunistas, na maioria de nossos países, são pequenos e pouco influentes, pese sua média de idade ao redor de meio século.

Na América Latina é este um fenômeno que possui sua própria sustentação social, majoritária na sociedade capitalista dependente. Daí que se analisarmos o problema só atendendo o discurso das organizações surgidas à margem do Partido (PC), pode se cometer o erro de pensar que se realizarmos uma luta ideológica e política enérgica contra o esquerdismo, desaparecerão estes grupos esquerdistas ou se reduzirão à insignificância. Este esquema fracassou na América Latina; não conduziu ao desaparecimento das organizações “esquerdistas”, nem à unidade das forças revolucionárias, senão ao enfrentamento dos partidos comunistas com as demais organizações revolucionárias. Favoreceu o fortalecimento de correntes reformistas nas fileiras comunistas e não contribuiu tampouco ao amadurecimento do próprio partido, se entendemos por maturidade não a idade mas sim a compreensão da vida que nos rodeia, a realidade social e política na qual se está imerso e a capacidade de mudá-la. Em numerosos casos algumas dessas organizações “esquerdistas” não só cresceram mais que o respectivo partido comunista, como também amadureceram antes dele e conduziram os trabalhadores e outras classes e camadas populares a realizar vitoriosamente a revolução democrática anti-imperialista e se transformaram, ou se transformam hoje no partido marxista-leninista que encabeça a construção do socialismo ou a marcha para este.

Penso que tem uma grande importância a análise das condições objetivas sobre as quais surge o fenômeno da proliferação das organizações de esquerda. Tratei de esboçar o problema, de colocá-lo no terreno objetivo e oferecê-lo assim à discussão. Estou convencido, repito, de que entender isto é já ganhar mais da metade das premissas necessárias para elaborar uma política correta de unidade das forças revolucionárias e do movimento revolucionário.

Eu sustento, pois, que independentemente de que os partidos comunistas cometam erros ou não, existem raízes na América Latina e outras regiões de similar desenvolvimento social no mundo para que surjam essas organizações. Isso se deduz de nossa experiência e não só dela. Podemos ver muito claramente esta verdade, se temos em conta que o PCS foi durante 40 anos um lutador solitário pelas idéias do socialismo e do comunismo, inclusive a única organização de esquerda no país (desde sua fundação em 1930, até o aparecimento de organizações da esquerda armada em 1970). Durante quarenta anos, nosso partido sofreu mais e durante mais tempo por sua enfermidade reformista (que o afetou em alguns momentos) e, sem embargo, puderam surgir novas organizações revolucionárias unicamente até depois de que o substancial desdobramento do capitalismo dependente mudou o panorama social, engendrou uma nova estrutura classista.

Durante mais de 5 anos, o PCS realizou uma ativa polêmica pública com as colocações e posições políticas das organizações da esquerda armada. A característica principal do estilo e do método de nossa polêmica constitui em descartar a utilização de adjetivos em substituição a análise e abordar analítica, clara e persuasivamente e o mais profundo possível temas fundamentais das discrepâncias entre nossas linhas gerais e entre nossas concepções ideológicas. Esforçamo-nos a expor e desenvolver nossa política de alianças, nossa tese sobre o caráter da revolução, nossa tática nas eleições, nossa opinião acerca das possibilidades da real configuração do fascismo nas condições da América Latina (possibilidade negada por algumas organizações) e sobre o processo de fascistização da velha ditadura militar que se desenvolvia em nosso país. Realizávamos nossa polêmica pronunciando-nos a favor da unidade da esquerda e no marco de uma luta expressa para alcançar dita unidade. Corresponde ao PCS o mérito de haver desfraldado primeiro e defendido mais sistematicamente a bandeira da unidade da esquerda.

Não obstante as virtudes de nossa polêmica, que sem dúvida contribuiu para esclarecer a temática teórico-política que confrontava o movimento revolucionário e democrático, houve nela uma debilidade: o tema da via da revolução não foi abordado; a dialética relacionada com o poder e o programa econômico-social só foi abordado nos dias seguintes ao triunfo da revolução popular sandinista. Este vazio na temática de nossa polêmica não foi casual: resultava das amarras reformistas a que me referi antes.

Palavras Finais

O PCS não é o único destacamento do movimento comunista latino-americano que realiza esta fundamental virada revolucionária. São vários os partidos que na América do Sul e Central aceitam o desafio da luta armada e a unidade das forças revolucionárias. Esta é a saída já em marcha de uma longa crise de nosso movimento e o peso que este agregará à luta pela revolução, uma vez sanado de suas enfermidades, será muito grande.

A revolução triunfará depois de aprender de seus reveses em nosso continente, que vive hoje uma situação revolucionária que vai estendendo-se desde a América Central e o Caribe que, dia a dia, é o epicentro do terremoto que está desaprumando o domínio imperialista, as ditaduras militares e a exploração oligárquica.

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Notas:

(1) “Uma vida Dedicada à Defesa da Constituição”, General Prat, Editora Fondo de Cultura Econômica, México.

(2) MEP: Nova Política Econômica aplicada por conselho de Lênin desde finais de 1921 e início de 1922 (depois da guerra civil e da intervenção militar estrangeira) que abarcou vários anos e compreendia a retirada temporária e a conseqüente reanimação do capitalismo, dentro de certos limites e a ofensiva posterior para o socialismo, na confluência dos anos 20 e 30.

*Schafik Hándal, faleceu em 24.01.2006, quando retornava da posse de Evo Morales na presidência da Bolívia. Foi candidato derrotado pela FMLN à presidência da República de El Salvador em 2004.