O que está em jogo em 2018?
Juliano Medeiros*
As eleições de outubro ocorrerão numa situação inédita. Desde o fim do regime militar o Brasil não vive um momento de tantas indefinições. Essas indefinições vão do desempenho econômico ao resultado eleitoral, no curto prazo, até o futuro das instituições da Nova República e das contrarreformas realizadas pelo ilegítimo governo Temer, no médio prazo. Seja como for, as eleições de 2018 estão sob o signo da incerteza.
A situação se torna ainda mais dramática quando observamos o que está em jogo. Há uma avaliação, senão unânime, amplamente majoritária entre a intelectualidade crítica, de que estamos diante do fim de um ciclo na política brasileira. Esse fim de ciclo seria marcado pela incapacidade das instituições da Nova República e dos arranjos político-institucionais dela decorrentes de cumprirem as promessas de justiça social consignadas na Constituição Federal de 1988. Com este ciclo, outros fenômenos sociais e políticos também demonstram seu esgotamento, como a polarização entre PT versus PSDB, que marcou as últimas seis eleições presidenciais.
O fim do ciclo aberto na Nova República estimula uma luta aberta sobre a natureza do ciclo que se inicia. E com ela, muitas dúvidas. O que será do PT após sua primeira eleição sem a candidatura de Lula, possivelmente impugnado pela Justiça Eleitoral após sua condenação sem provas? Poderá a direita superar a fragmentação imposta pela luta entre suas frações de classe e recompor um polo politicamente hegemônico? Quais os impactos da nova etapa da crise de acumulação capitalista na periferia do sistema e, particularmente, no Brasil? Como as operações judiciais incidirão sobre um possível novo arranjo de forças? Pensar o que realmente está em jogo nas eleições deste ano só é possível em diálogo com essas questões.
O fim do ciclo
O impeachment de Dilma Rousseff não representou apenas o fim dos governos liderado pelo PT. Ele representou, também, a interdição por tempo indeterminado da estratégia de pacto de classes construída a partir de chegada de Lula ao governo, em 2003. Nesse pacto, descrito por André Singer como uma espécie de “reformismo fraco” (em oposição ao “reformismo forte” dos governos bolivarianos do mesmo período), todos poderiam acessar os benefícios de quase uma década de crescimento econômico ininterrupto liderado pela explosão do preço das commodities no mercado internacional. Era o esplendor da Nova República: uma inédita sequência de duas décadas de governos eleitos democraticamente e que representavam a essência dos preceitos da Constituição de pleno funcionamento da economia de mercado com a gradual expansão de políticas sociais.
Enquanto oito anos de governos tucanos serviram para alicerçar as bases do neoliberalismo – com a combinação entre câmbio flutuante, metas de inflação e superavit primário – treze anos de governos petistas democratizaram direitos sociais e promoveram o acesso aos bens de consumo, sem alterar os fundamentos econômicos de seus antecessores. Com isso, chegamos a uma curiosa combinação entre uma economia com traços neoliberais – sob forte hegemonia do capital financeiro – e ganhos assegurados pelo crescimento econômico e pela vocação redistributiva da coalizão que governou o país nos últimos anos.
Tudo parecia perfeito, até que veio 2008. No início tratada com desdém pela aliança no poder, a crise desencadeada no mercado imobiliário dos Estados Unidos levou a um rearranjo global da economia, com consequências drásticas para os chamados “países emergentes”. A contaminação pela crise internacional fez com que o Produto Interno Bruto (PIB) acumulasse queda de mais de 4% entre o último trimestre de 2008 e o primeiro semestre de 2009. O setor industrial, com redução de 11,6% nesse mesmo intervalo de tempo, foi o principal responsável pela inflexão na evolução do PIB, uma vez que o setor agropecuário registrou leve expansão.
Diante desse cenário, foi através do mercado interno que os governos de Lula e Dilma buscaram mitigar os impactos da crise. A aposta no imenso potencial de consumo formado pela oferta abundante de crédito e o aumento do salário-mínimo e das aposentadorias levou a um crescimento do setor terciário de 4,2% logo após a eclosão da crise. Graças a essa estratégia, o pacto de classes foi vitorioso nas eleições de 2010 e 2014.
pcb.org.br/portal/images/stories/outras-opinioes.pngMas a crise mostraria sua face novamente. A estagnação do crescimento, o aumento do desemprego e as políticas de austeridade adotadas a partir de 2014 por Dilma Rousseff e Joaquim Levy levaram a uma crescente instabilidade política e econômica. Uma forte e prolongada recessão atingiu em cheio o Brasil em 2015-2016, com uma taxa de crescimento do PIB média negativa de -3,7%, acompanhado de uma piora em vários indicadores sociais.
As manifestações de junho de 2013 foram o ato de estreia de um descontentamento difuso endereçado às instituições, aos políticos e às velhas formas de governar. Nesse contexto fermentou um caldo de insatisfação que colocou a maioria do povo brasileiro a favor da Operação Lava Jato e do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, como atestaram diversas pesquisas de opinião realizadas no início de 2016. Acuada, a esquerda brasileira – liderada por um partido incapaz de mostrar qualquer capacidade de resistência – se viu responsabilizada por todos os problemas do país. Corrupção, desemprego, atrasos nas obras públicas: tudo passou a ser vinculado ao PT e, num sentido mais amplo, à esquerda em geral. O resultado, nas eleições municipais de 2016, foi uma acachapante derrota eleitoral, fazendo diminuir em 60% o número de prefeituras governadas pelo PT.
A crise é o “novo normal”
Dispostas a ir às últimas consequências para salvarem seus interesses diante da crise, as diferentes frações da burguesia constituíram uma ampla frente política. Sob a liderança de seu lugar-tenente, Eduardo Cunha, em poucos meses essa frente reunia desde partidos que vocalizaram durante treze anos os interesses do capital financeiro na oposição – notadamente PSDB e DEM – até governistas empedernidos, como PMDB, PP ou PR. O programa dessa frente era simples: assegurar controle total sobre o fundo público para defender os interesses do mercado, conter os efeitos da crise política provocada pela Lava Jato e levar adiante contrarreformas que pudessem assegurar uma completa reestruturação do Estado brasileiro, rompendo com a natureza reformista da Constituição Federal de 1988.
Essa frente apostava numa rápida recuperação da economia em nível mundial, que alavancaria um novo ciclo expansivo no Brasil, agora “realinhado” com os interesses do centro do capitalismo global. Acontece que a recuperação não veio. E com isso, as frações de classe que promoveram o golpe parlamentar de abril de 2016 começaram a dar claros sinais de desagregação. A mobilização dos caminhoneiros, com suas características híbridas de greve e locaute, revelaram profundas fissuras entre os setores claramente pró-imperialistas, que controlam postos-chave no governo Temer, e as frações vinculadas aos setores produtivos, especialmente o agronegócio.
O calendário eleitoral, visto como uma oportunidade de legitimação do programa do golpe, tornou-se um fantasma, já que as incertezas aprofundam a divisão entre os generais do liberalismo e abre espaço para saídas extremas – à esquerda e à direita. E outras palavras, a situação vivida hoje pelo Brasil não é muito diferente daquela experimentada pelos países que enfrentaram processos eleitorais após a crise de 2008 na Europa. De alguma forma, é como se a crise tivesse se tornado uma nova forma de normalidade. A instabilidade é o “novo normal”.
Enquanto vigorarem as medidas impostas pelo consórcio golpista que tomou o Palácio do Planalto com o apoio dos demais poderes da República – com Supremo, com tudo – o Brasil viverá constantemente sob a sombra da recessão, da crise social e da miséria. As elites, no entanto, plantaram a semente de sua destruição, já que o caos abre espaço para alternativas cada vez mais potentes. Na França pós-crise, a extrema-direita e a esquerda radical somam hoje quase metade do eleitorado francês. Na Espanha surgiram novos partidos de massas, como Podemos e Ciudadanos. Na Grécia a esquerda radical chegou ao poder e em Portugal uma coalizão liderada pelo Partido Socialista – com apoio parlamentar do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda – governa contra os interesses da Troika há mais de dois anos. Na Inglaterra o nacionalismo xenófobo levou à saída do país da Zona do Euro e nos Estados Unidos a desesperança permitiu a eleição de Donald Trump – e o surgimento de um polo à esquerda, com Bernie Sanders. Esses fenômenos, cada um à sua maneira, são tributários das mudanças promovidas pela crise econômica e pela incapacidade do liberalismo em produzir saídas.
Na América Latina, uma onda de retrocessos marca o cenário político. A vitória dos neoliberais nas eleições no Chile, Peru e Argentina, acompanhada dos golpes parlamentares no Brasil e Paraguai, isolaram fortemente os governos anti-imperialistas da região. A instabilidade política na Venezuela, mais do que qualquer outro país, expressa claramente a combinação entre crise econômica, provocada pela queda dos preços do petróleo, e isolamento político regional.
À esquerda, uma esperança
Mas se a crise revelou os limites da estabilidade democrática oferecida pelos velhos representantes do liberalismo econômico, ela também abriu espaço para novos processos sociais. O surgimento de novos campos políticos à esquerda está em curso em diferentes países nos últimos anos, onde as tradicionais forças da socialdemocracia – isto é, as forças de esquerda que limitaram sua ação e seu programa político aos limites da democracia representativa e à tarefa de administrar a economia de mercado – cedem cada vez mais espaço a novos partidos e movimentos que buscam representar uma agenda política crítica a esses limites, assumindo um discurso e um programa em favor de uma democracia radical.
Em alguns casos, como na Espanha e no Chile, esses novos atores sociais se institucionalizaram, dando origem a partidos políticos. Em outros, como nos Estados Unidos, após o Ocuppy Wall Street, esses processos sociais incidiram sobre a arena institucional, sem, contudo, originar novas organizações partidárias ou ensejar a formação de novos campos políticos.
Evidentemente, os processos acima mencionados são muito distintos entre si. Mas é válido crer que o surgimento simultâneo de novos atores políticos identificados com a crítica aos limites da democracia representativa e da simples “administração do sistema” em diferentes países, guarde relação entre si. Isso seria explicado pela combinação entre os flagrantes limites dos paradigmas que orientaram as forças hegemônicas na esquerda desde a queda do Muro de Berlim na Europa e América Latina e sua incapacidade de responder aos efeitos da crise de valorização do capital e as transformações dela decorrentes.
A consequência da combinação entre crise estrutural e crise epistêmica levaria, assim, a uma crise da velha reformista e ao surgimento de novos campos à esquerda em diversos países do ocidente (além dos já mencionados, há processos semelhantes no Peru, México, França, Portugal, Alemanha, Uruguai, Turquia e Grécia). Em muitos deles, o surgimento desses novos campos foi precedido não por um “descolamento” dos movimentos sociais que compunham o campo antes hegemônico, como sindicatos ou entidades estudantis, mas pela eclosão de processos sociais críticos aos limites da democracia representativa, dando origem a novos atores sociais coletivos.
No Brasil, a aliança entre PSOL, PCB e um conjunto de movimentos sociais liderados pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) é a que melhor expressa esse processo. Dissidência à esquerda do PT legalizada em 2005 como partido, o PSOL foi a legenda partidária que mais fortemente se conectou com os processos de resistência que ganharam fôlego na última década em todo mundo. Esses processos uniram uma agenda histórica da esquerda por salário, soberania nacional e direitos sociais a novas demandas por democracia, reconhecimento e liberdade.
Evidentemente, o Brasil é muito diferente de países como França ou Chile, onde essa nova esquerda consolidou um espaço institucional relevante (hoje, cerca de 20% dos eleitores). Mas é inegável que a crise do paradigma socialdemocrata se alastra por todo o mundo, colocando um novo antagonismo entre os limites do possível e uma democracia radical. Referente nacional do que seria a verdadeira tradição daquele paradigma, o Partido dos Trabalhadores, apesar da popularidade de Lula, sofre com a dificuldade de reinventar-se, para além de toda a perseguição jurídica e midiática da qual tem sido vítima.
Por isso, o que está em jogo neste fim de ciclo na política brasileira é a possibilidade de semear uma nova agenda de esquerda, radicalmente crítica aos limites da democracia das elites que institucionaliza a sub-representação das maiorias sociais – como negros e mulheres – sem perder sua perspectiva abertamente anticapitalista, antítese dos interesses das classes dominantes.
Enquanto outras candidaturas do campo progressista seguem expressando a necessidade de recomposição do pacto entre capital e trabalho, rompido pela burguesia no auge da crise política de 2016, Guilherme Boulos e Sônia Guajajara afirmam caminho oposto: a necessidade de um programa e uma democracia dos “de baixo”, capaz de combater a brutal desigualdade que marca nossa formação social e construir um novo ciclo de lutas sociais, cuja perspectiva estratégica passa por uma nova lógica de organização da sociedade na busca por um socialismo democrático.
A eleição de Boulos e Sônia, evidentemente, não é suficiente para responder a esse desafio. Mas é parte indispensável dessa caminhada. Nossa aliança apresentará um programa, um discurso e uma prática política que desafiam a imaginação daqueles que, na esquerda, se acostumaram com os limites do possível, e isso pode encantar milhões. Reconhecendo avanços e limites em outras experiências, construindo pontes para enfrentar a agenda do golpe, fortalecendo a unidade democrática com outros partidos, buscaremos ir além. Não é pouco o que está em jogo. Entreguemos o melhor de nós. O futuro do Brasil depende disso.
*Juliano Medeiros é Historiador, cientista político e Presidente Nacional do PSOL