O grande assalto das privatizações na Grã-Bretanha

imagemIlustração de Nathaniel St. Clair

ODIARIO.INFO

Kenneth Surin

O “thatcherismo,” expressão do fundamentalismo neoliberal, privatizou tudo o que pôde. Thatcher apregoava a “democratização do capital”, fazendo crer que qualquer um poderia tornar-se acionista neste processo. Na síntese feita neste artigo ilustram-se parte dos resultados reais: empresas do setor público dos transportes, da água e da energia são hoje propriedade de grandes empresas privadas, na sua esmagadora maioria estrangeiras.

Margaret Thatcher era muito boa para contar histórias da carochinha. A tragédia de “UKania”* é que muitos britânicos se apaixonaram por essas histórias.

Provavelmente a maior dessas patranhas dizia respeito à noção de uma democracia acionista.

A ideia aqui era simples, mas totalmente equivocada: vender as empresas de propriedade pública para permitir que todos comprassem ações das empresas recém privatizadas. Comprando quantas ações quisesse, o cidadão se tornaria parte da grande democracia britânica thatcherista possuidora de ações.

Muitos de nós sabíamos naquela altura que nunca viria a ser assim. Tal como observou Marx, a bolsa de valores, onde as ações das empresas recém privatizadas seriam obviamente negociadas, é “onde os pequenos peixes são engolidos pelos tubarões e os cordeiros pelos lobos da bolsa de valores”.

Os ricos sempre usaram os seus recursos para adquirir o monopólio das ações das empresas. Assim, quando as empresas públicas foram colocadas à venda a preços irrisórios por Thatcher e seus comparsas, os ricos correram para arrebanhar a maior parte das ações oferecidas, e a procura resultante elevou o preço das ações. Ao fazê-lo, colocou-as quase todas fora do alcance do Zé e da Maria comuns.

Então o que é que aconteceu realmente com a “grande democracia acionista britânica ”?

Os burocratas do Estado, tão arrasados por Thatcher, foram substituídos por burocratas privados, ainda que burocratas recebendo salários astronômicos quando comparados com os recebidos pelos seus pares no aniquilado setor estatal.

As empresas estatais recém privatizadas nunca seriam de propriedade do Zé e da Maria comuns, nem mesmo de John e Jane Bull – em vez disso, grandes corporações estrangeiras e governos estrangeiros possuem agora quase todas essas empresas.

Na verdade, a suprema ironia thatcherista é que muitas das empresas privatizadas por ela regressaram agora como propriedade estatal, mas, infelizmente para os britânicos, de governos estrangeiros.

Tomem como exemplo a cidade de Romford, no distrito londrino de Havering, que teve a distinção de ser nomeada como o lugar mais eurocético do país numa sondagem de 2016 da YouGov.

O lema do Brexit é “retomar o controle”, mas na estação de Romford há uma variedade de escolha de trens para Londres: pode-se viajar num comboio gerido pelos holandeses, ou num gerido pelos chineses. Alguém que se desloque para a vizinha Basildon tem que saltar em Upminster e comprar um bilhete da empresa italiana que opera o C2C. Eis a imagem completa.

A ScotRail é operada pela Abellio, que é inteiramente propriedade da operadora ferroviária nacional holandesa Nederlandse Spoorwegen. A Abellio também possui 60% dos comboios da Grande Anglia (os 40% restantes são propriedade da empresa japonesa Mitsui).

Os comboios da West Midlands são 70% de propriedade da Abellio, os 30% restantes são compartilhados entre a Mitsui e outra empresa japonesa JR East. A Arriva Rail London é operada pela Arriva, que pertence ao operador ferroviário nacional alemão Deutsche Bahn.

A Arriva também opera a Chiltern Railways e a CrossCountry, Grand Central e Northern. O já mencionado C2C é de propriedade da Trenitalia, estatal italiana.

O Eurostar é operado pela EIL, que é de propriedade da governamental francesa SNCF (55%), da Caisse de dépôt et placement du Québec (CDPQ) (30%), da Hermes Infrastructure (10%), que é maioritariamente propriedade de um fundo de investimento dos EUA e da NMBS / SNCB (5%), que é a empresa ferroviária estatal da Bélgica.

A empresa chinesa MTR possui a linha TfL e 30% da South Western Railway. Transport for Wales é de propriedade de Keolis, um operador privado de transporte público Franco-Quebequense.

Na verdade, as ferrovias estatais europeias possuem agora mais de um quarto do sistema de comboios de passageiros do Reino Unido.

A mesma situação existe em relação às empresas de energia, água e telefone do Reino Unido.

A London Electricity, a SWEB, a Seeboard e a British Energy são propriedade da EDF Energy, uma subsidiária do grupo EDF (Électricité de France), propriedade do governo francês.

A Powergen é de propriedade do grupo alemão E.ON. Calortex, Independent Energy e Midlands Electricity são propriedade da Npower, uma subsidiária da empresa alemã de energia RWE Group.

A ScottishPower é uma subsidiária da empresa espanhola Iberdrola, que é também proprietária da Manweb, a empresa de energia que fornece Merseyside e North Wales.

A Anglian Water é propriedade de um consórcio formado pelo Canada Pension Plan Investment Board, pelo Colonial First State Global Asset Management (pertencente ao Commonwealth Bank of Australia), pelo IFM Investors (uma empresa australiana de gestão de investimentos) e por 3i. O mesmo consórcio é também dono da Hartlepool Water.

A Northumbrian Water é de propriedade da Cheung Kong Infrastructure Holdings (Hong Kong). A Cheung Kong Infrastructure Holdings é também dona da Essex and Suffolk Water. A Wessex Water é de propriedade da YTL Corporation (Malásia)

A Affinity Water é em parte propriedade do Morgan Stanley (EUA). A South East Water é propriedade da Hastings Diversified Utilities Fund/Utilities Trust da Austrália. Sutton e East Surrey Water são propriedade da Sumitomo Corporation (Japão).

A Level 3 Communications (EUA) possui uma rede nacional de fibra ótica. O2 opera uma rede GSM-900 e é propriedade da Telefónica (Espanha). A EE administra uma rede GSM-1800 e é uma joint venture da Orange (França) e da Deutsche Telecom (Alemanha)

As empresas de ônibus e aeroportos do Reino Unido são também em grande parte de propriedade estrangeira. Os ônibus da Arriva são propriedade do operador ferroviário nacional alemão Deutsche Bahn. As empresas de transportes coletivos são também propriedade da ComfortDelGro (Singapura), da RATP (França) e da Transdev (França).

Os aeroportos de Heathrow, Glasgow e Southampton são propriedade da espanhola Ferrovial (25%), da Qatar Holding (20%) e da Caisse de dépôt et placement du Québec (12,62%). O aeroporto de Gatwick é propriedade da Global Infrastructure Partners (EUA). O Ontario Teachers ‘Pension Plan possui 48,25% do aeroporto de Birmingham. A IFM Investors (Austrália), além de possuir parte da Anglian Water, possui também o aeroporto de Manchester, a via rápida MM6 e a empresa de telecomunicações Arqiva.

Tudo isso foi consequência da venda de ativos empreendida em grande escala. Ativos pertencentes ao povo britânico foram (literalmente) atirados para o colo de empresas e governos estrangeiros.

Londres, por excelentes razões, decidiu recentemente reerguer uma estátua de Margaret Thatcher. Dado que ela foi a arquiteta de tantas generosidades oferecidas às corporações e governos de outros países, há uma possibilidade ligeiramente maior de essa estátua ser erguida num número maior de cidades da Europa Ocidental, bem como no Japão, Austrália, Canadá, Malásia, EUA, China e no Qatar e Singapura.

A Dama de Ferro iniciou um ato de roubo às claras do qual os possuidores de riqueza privada e os governos de outros países se beneficiaram imensamente. O povo britânico, que possuía esses ativos, ficou nas lonas.

Tudo isso ocorreu em um contexto em que o fosso de riqueza entre os que têm muito (“Have-Lots”) e os que gerem com dificuldade o dia a dia (JAM, Just About Managing) cresceu para níveis que já não se viam desde a década de 1930.

Kenneth Surin leciona na Duke University, Carolina do Norte. Vive em Blacksburg, na Virgínia.

*O artigo original referia-se a “UKania” (UK+algo que se associa à Ucrânia atual), um trocadilho saboroso mas completamente intraduzível

Fonte: https://www.counterpunch.org/2019/03/20/ukanias-great-privatization-heist/