A luta contra o racismo hoje
Jornal O Poder Popular
Os militantes do PCB Jones Manoel e Gabriel Landi Fazzio lançaram a coletânea Revolução Africana – Uma antologia do pensamento marxista, pela Editora Ciências Revolucionárias.
O livro, que traz traduções de artigos e discursos de teóricos revolucionários, como Frantz Fanon, Kwame Nkrumah, Amílcar Cabral, Eduardo Mondlane, Samora Machel, Agostinho Neto, Thomas Sankara e Samir Amin, é o primeiro volume da coleção Quebrando as Correntes, que prevê 15 títulos com traduções de pensadores marxistas e dirigentes revolucionários da luta anticolonial.
Seguem abaixo trechos de entrevista concedida por Jones à Carta Capital e reproduzida na íntegra na página nacional do PCB.
Teóricos revolucionários e a luta antirracista
“O movimento comunista, centrado na Internacional Comunista, criada após a Revolução Russa, sempre deu importância à questão racial e colonial, e tem uma contribuição teórica e prática gigantesca, que, nos últimos anos, sumiu da consciência média dos militantes. Dos autores publicados no livro, o mais conhecido é Frantz Fanon, dirigente da Revolução Argelina, hoje muito lido como um pensador pós-estruturalista, especialmente a partir de sua tese de doutorado, o livro Peles Negras, Máscaras Brancas. Mas a contribuição de Fanon para a luta antirracista radical foi apagada.
… É muito comum hoje, no movimento negro, se falar da ancestralidade africana, da importância de voltar o pensamento e a epistemologia para a África, só que a contribuição dos líderes revolucionários não é tratada nem estudada para pensar o movimento negro radical revolucionário que combata o racismo, compreendendo que o racismo é um fenômeno estrutural intrinsecamente ligado ao capitalismo. Como diria Malcolm X, não existe capitalismo sem racismo.
… Hoje, no movimento negro, existe uma centralidade muito grande dos debates culturais e identitários. No sentido de que um conjunto gigantesco de organizações da luta antirracista centra seus esforços na ideia de que o combate ao racismo se dá combatendo a inferiorização do negro e da sua cultura, inserindo o negro em espaços estabelecidos, em comerciais de banco, papéis em emissoras de TV, cargos eletivos. É a ideia de que existe racismo porque a população negra não está devidamente representada no âmbito da cultura das instituições postas.
Esse debate de que, com a ocupação dos espaços institucionais, o racismo seria combatido ou enfraquecido, já foi tratado pelos teóricos revolucionários africanos. É um debate que já foi travado nos anos 50, 60. O livro ajuda a pensar os limites do ‘antirracismo de mercado’, que, ao nosso ver, não tem a potência política necessária para atingir o racismo em suas bases.
Kwame Nkrumah, um revolucionário de Gana, líder da independência, no texto Socialismo Africano Revisitado, que também está na coletânea, debate como se configura essa união orgânica entre capitalismo e racismo, e como não é possível destruir o racismo sem transformar radicalmente as estruturas econômicas, sociais, culturais, que são a base da sociedade.”
Capitalismo, racismo e colonialismo
“Selecionamos escritos dos autores que versam sobre alguns temas centrais. Primeiro, a relação entre capitalismo, racismo e colonialismo, porque quisemos destacar o caráter estrutural do racismo. O racismo não é apenas um fenômeno cultural, não é um aspecto de herança da escravidão que permaneceu. É um fenômeno estruturante do modo de ser do capitalismo.
Um segundo elemento é que os textos também refletem sobre a prática revolucionária de superação do racismo. Por exemplo, Amílcar Cabral reflete muito sobre organização política, formação, a relação entre partido e massas, como um partido vai se organizar para garantir a luta de libertação nacional. Nos artigos selecionados de Samora Machel, também tem essa dimensão da organização e da estruturação do poder popular.
Um terceiro elemento muito presente é a ideia de que a luta contra o racismo não vai se dar apenas no âmbito de um suposto resgate das origens ancestrais. É muito comum, hoje, no movimento negro, tratar como se a superação do racismo fosse dada numa espécie de recuperação da ancestralidade africana. Vários autores que selecionamos debatem essa ideia de resgate de uma África pré-colonial, mostrando que isso não faz sentido, que a África pré-colonial foi destruída. Evidentemente, existem algumas tradições comunitárias, menos individualistas, que ainda sobrevivem e que ainda serão aproveitadas na construção do socialismo na África. Mas não se pode partir para a idealização do passado, porque o passado foi superado.
E um último elemento foi a reflexão desses líderes sobre a importância da emancipação da mulher no combate ao colonialismo e ao racismo, numa construção do socialismo. Thomas Sankara e Samora Machel, em especial, destacam muito a importância da emancipação da mulher e levam a sério uma máxima de Lênin, que dizia que o grau de maturidade do socialismo é expresso pelo quanto a mulher é livre.”
Movimente Negro e ideias liberais
“Hoje, existe um liberalismo muito forte no movimento negro, até porque existe um discurso mundial, a partir de diversas ONGs e fundações, como a Fundação Ford e Rockefeller, para difundir uma concepção liberal da questão racial. O movimento negro, em seus setores hegemônicos, compreende a luta antirracista como uma luta pela ocupação de espaços institucionais das estruturas que estão postas, como um combate cultural, estético e identitário, procurando valorizar o negro como uma pessoa bonita, que tem cultura, que deve ocupar os espaços de visibilidade da grande mídia. Essa forma de tentar combater o racismo nunca vai conseguir superá-lo.
Nos Estados Unidos, depois do movimento por direitos civis, houve uma série de políticas de igualdade racial muito semelhante às que foram aplicadas no Brasil, nos últimos anos, como política de cotas, que não combateram o racismo. Foram importantes para criar um setor negro na classe média, para fortalecer um setor negro da burguesia, mas enquanto enfrentamento dos fundamentos do racismo, foram totalmente ineficientes.
Outro exemplo pode ser dado pela África do Sul, onde, ao fim do apartheid, o governo Nelson Mandela assumiu um programa econômico neoliberal e estabeleceu políticas de igualdade racial muito tímidas em que a situação da população negra de maneira geral, do ponto de vista socioeconômico, não foi transformada.”
A luta contra o racismo no Brasil
“O racismo não é uma herança da escravidão, que permanece. Ele é um elemento estruturante das relações econômicas, sociais e políticas do Brasil, e está totalmente entrelaçado com as formas de produzir e distribuir a riqueza e com o processo de dominação política. A questão racial só pode ser enfrentada por uma perspectiva revolucionária.
Os governos do PT promoveram políticas importantes de igualdade racial. Concomitante a isso, o número de negros encarcerados e assassinados pelo Estado cresceu durante o período petista. Assim como a situação das relações de trabalho, a configuração étnico-racial da divisão social de trabalho não foi alterada. A população negra continua sendo superexplorada, submetida à intensa violência estatal, hiperencarcerada.
A população negra é a mais afetada pela contrarreforma da Previdência, pela contrarreforma trabalhista aprovada no governo Temer, pelo congelamento por 20 anos dos investimentos públicos em saúde e educação, é a vítima prioritária da intensificação das políticas de repressão e de extermínio do Estado.
(…) A função do Revolução Africana é oferecer para o militante do movimento antirracista um material histórico que mostre que existe uma tradição de luta antirracista revolucionária de inspiração marxista. Resgatar essa memória é um instrumento para difundir a concepção revolucionária dessa luta. É fundamental oferecer isso para os militantes do movimento negro para que eles não se afastem ou não neguem o marxismo por puro desconhecimento da contribuição desse pensamento.”
(matéria publicada no Jornal O Poder Popular nº 45)
Leia a entrevista na íntegra em https://pcb.org.br/portal2/23746/a-revolucao-africana-e-a-luta-contra-o-racismo-hoje/