Recados eleitorais para a nova etapa do jogo político
Correio da Cidadania
“A esquerda precisa dar um passo adiante, livrar-se dessa incômoda extorsão praticada a cada eleição, por uma suposta esquerda que se alia na maior parte do tempo com a direita, age igual à direita e, só nos momentos eleitorais, evoca sentimentos racionais e emocionais da esquerda para socorrer o seu projeto de poder ameaçado por algo mais à direita ainda. Passado o risco eleitoral, adeus aos compromissos com a esquerda e com os movimentos sociais populares autênticos”.
Dilma Rousseff foi reeleita presidente da República com o apoio de 38% do eleitorado. De um total de 142.822.046 eleitores, 54.501.118 votaram nela. A maioria, 62% dos eleitores, não votou nela. Ou votou em Aécio Neves (51.041.155), ou em branco (1.921.819), ou anulou (5.219.787), ou simplesmente deixou de votar. A abstenção chegou a 21,1% do eleitorado, mais de 30 milhões não se manifestaram nas urnas. Assim, o bloco dos que não se comprometeram com as duas candidaturas do 2º turno atinge 27,4% do eleitorado, o que corresponde a um total de 39.133.228 eleitores. É muita gente que ficou de fora da escolha presidencial.
Os números falam por si. A presidente, o seu partido e a coligação eleitoral não contam, pelo menos expressamente, com o respaldo da maioria dos brasileiros. A oposição de direita, mais identificada com o discurso ortodoxo do neoliberalismo e mais conservadora na visão moralista que emana das elites e das classes médias, praticamente dividiu o eleitorado, ultrapassou os 50 milhões de votos. A se considerar a direita que integra a própria coligação vencedora, que está no PMDB, PP, PR, PSD, PRB etc., e que nas questões do dia a dia cerra fileiras com a oposição de direita (PSDB, DEM, PTB etc.), a reeleição de Dilma acaba sendo um grande cavalo de Tróia contra as forças que desejam as transformações estruturais no país.
Lula e os marqueteiros petistas podem até mobilizar as torcidas organizadas na luta dos pobres contra os ricos, dos assistidos contra o abandono social, dos progressistas contra o retrocesso conservador, do Estado contra o mercado, da difusa esquerda petista contra o balaio da direita. Mas, na verdade, no bloco liderado pelo PT estão também os representantes do capital, as grandes empresas, os banqueiros e o agronegócio; estão as velhas oligarquias entranhadas nos estados e municípios, aquelas que reproduzem as práticas seculares de oferecer os currais eleitorais em troca dos favores patrocinados pelo Estado. Desnecessário citar a longa lista de caciques e coronéis que contribuíram triunfalmente para a vitória da Dilma e que, agora, irão exigir a contrapartida.
Mais uma vez os trabalhadores, os movimentos sociais autênticos e a juventude inconformada foram sensibilizados a dar sangue, suor e lágrimas para barrar o retrocesso político e o avanço da direita. Mais uma vez a mesma ladainha de outras eleições surtiu efeito para impedir que o povão deixe de ser contemplado com Bolsa Família, Prouni, Minha Casa Minha Vida, Mais Médicos. A consciência dos que são solidários com os mais pobres falou mais alto. A consciência de esquerda, inclusive dos que já desistiram do PT há muito tempo, foi atingida pela ameaça aterrorizadora da volta dos privatistas que escancararam as portas do país para a exclusão social e a super-exploração do trabalho.
Muitos setores da esquerda que não acreditam nem em Dilma e nem no resgate do PT para o campo da esquerda acabaram por votar na Dilma acreditando estar votando contra retorno ao passado, contra os fantasmas que rondam a incipiente democracia brasileira.
Esses eleitores sensíveis ao significado histórico da esquerda precisam escapar da armadilha e da chantagem se não quiserem repetir o gesto, mecanicamente, pela eternidade. Fantasmas verdadeiros, fantasmas criados e fantasmas realimentados sempre estarão à espreita da luta dos trabalhadores e do povo.
A esquerda precisa dar um passo adiante, livrar-se dessa incômoda extorsão praticada a cada eleição, por uma suposta esquerda que se alia na maior parte do tempo com a direita, age igual à direita e, só nos momentos eleitorais, evoca sentimentos racionais e emocionais da esquerda para socorrer o seu projeto de poder ameaçado por algo mais à direita ainda. Passado o risco eleitoral, adeus aos compromissos com a esquerda e com os movimentos sociais populares autênticos.
No primeiro governo Lula, a chantagem em cima dos setores de esquerda e dos movimentos sociais combativos utilizou o argumento de que se tratava de um governo em disputa, que era preciso atuar por dentro, apoiá-lo, para tentar conquistar uma hegemonia de esquerda no governo. Muita gente bem intencionada e de boa fé acreditou mesmo que a disputa era um campo aberto que poderia favorecer as forças empenhadas nas transformações, nas reformas estruturais e nas grandes mudanças demandadas pelos trabalhadores e a maioria do povo.
Não funcionou, o governo ficou empacado nas arapucas da governabilidade e afundou no mensalão, de onde saiu com nova guinada para a direita. Vale lembrar que, em 2005, Lula trocou Zé Dirceu por Dilma, na Casa Civil; Eduardo Campos por Sérgio Resende, na Ciência e Tecnologia; Olívio Dutra por Márcio Fortes, no Ministério das Cidades, entre outros.
No segundo mandato Lula, os programas sociais asseguraram apoio popular ao governo porque milhões de pessoas deixaram a linha da miséria. Os programas sociais garantiram a eleição da Dilma em 2010, ao mesmo tempo em que o governo aprofundou o atendimento das demandas do capital, com juro em patamar de rentabilidade para os financistas e especuladores; novas privatizações de estradas, portos e aeroportos; dinheiro subsidiado do BNDES para grandes grupos empresariais; desonerações de impostos para vários setores da economia; incentivos ao crédito e ao consumo; câmbio favorável às importações de manufaturados. Tal receita inviabilizou o programa da direita na disputa eleitoral e deu respaldo para o primeiro governo Dilma.
Agora as faturas do segundo governo Dilma são bem maiores, seja para assegurar a confiança do capital (precisa resolver o desafio de conciliar a satisfação dos rentistas e dos setores industriais produtivos, dos investidores estrangeiros e do desenvolvimento nacional, e do câmbio ideal para importadores e exportadores), seja para construir um programa de agrado dos aliados (PMDB, PSD, PR, PRB), seja para atender as demandas sociais e populares dos setores que apoiaram a candidata do PT contra a “ameaça da direita”, e também dos setores combativos dos movimentos populares e das esquerdas que não se deixaram levar pelo canto de sereia do lulismo e do dilmismo. Todos, movimentos governistas e oposições de esquerda, tendem a ganhar as ruas para cobrar avanços sociais efetivos e concretos.
Como se vê, a equação do próximo governo não está nada fácil. Isso sem contar as disputas internas por cargos entre os partidos aliados, as explosões das ambições pessoais, a indicação de ministérios chave para o modelo econômico, as investigações de corrupção na Petrobras e outros casos pendentes que devem perturbar a condução do governo. Além disso, o Lula já começou sua campanha presidencial para 2018, o que será mais um fator perturbador no segundo governo Dilma, pois tende a agitar as torcidas organizadas e a acirrar as ações das oposições, tanto à direita quanto à esquerda.
Tudo indica que o país viverá um período de muita agitação social. A disputa maior não estará nos escaninhos institucionais. Estará nas ruas.
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Hamilton Octavio de Souza é jornalista e professor.