Você abusou/Tirou partido de mim, abusou (Antônio Carlos e Jocafi)
Não me lembro de eleições tão geladas. Desde o primeiro turno, o que se viu foi pouca ou nenhuma militância na rua, panfletagens terceirizadas, pessoas desmotivadas/revoltadas com as sucessivas denúncias de malfeitos públicos. Some-se a isso o nível medíocre da grande maioria das candidaturas, a despolitização metodicamente praticada pelos principais partidos da ordem, o descarado abuso do poder econômico e as diferenças cosméticas entre os cavalos vencedores, e se entenderá a enorme fatia de eleitores que preferiram não cravar partidos ou candidatos (votos brancos e nulos).
Neste segundo turno, apesar da polarização entre PT e PSDB, a situação é basicamente a mesma. Candidatos reféns de marqueteiros e das pesquisas de opinião, baixíssima mobilização, intensa movimentação nos bastidores (inacessível ao público, embora decisiva para definir rumos e compromissos do próximo governo). No mais, tem prevalecido uma violência verbal indigna de candidatos à presidência. Um vale-tudo idiota, que despeja violência nas redes sociais. Candidatos e seguidores não usam a ideologia como ferramenta de argumentação, mas como arma de destruição em massa. Não usam a política como espaço nobre de convivência das diferenças, mas como dispositivo de incineração dos diferentes.
Em quem votarei agora ? Parto de duas premissas. Sou contra o voto biliar, histérico, que se define pela agressividade, pelo preconceito, pelo rancor. No estilo do velho cacique Jorge Bornhausen, que disse, referindo-se ao PT, “vamos acabar com essa raça”. A falta de cultura política fortalece os iracundos, que não se restringem à burguesia e à classe média. Também não voto na direita, que, agora, orbita em torno de Aécio Neves. Seu partido e aliados ressurgem como opção conservadora, acenando com o recrudescimento das privatizações, o tratamento inflexível/policial das reivindicações dos trabalhadores, a política externa subserviente aos interesses do imperialismo.
Restaria, por acomodação ou osmose, votar em Dilma Rousseff, hipotética cabeça de uma alternativa progressista. Em outras ocasiões, influenciado pelo “voto útil”, pela escolha do “mal menor”, cravei PT em segundos turnos. O resultado, lamento informar, foi pior do que decepcionante. Daí que prefiro não agir mecanicamente, não ir a reboque de um voto que parece óbvio à primeira vista. Elaboro o raciocínio.
Começo pela candidata. Apesar de ter quadros qualificados, com densidade política e larga experiência eleitoral, o PT preferiu o poste sugerido por Lula. Ecos do maquiavelismo getulista com relação ao marechal Mascarenhas de Moraes? Dilma é, claramente, uma burocrata de maus bofes, sem o menor tesão pelo jogo político. Neste aspecto, o uso da foto dos tempos de luta armada pelos marqueteiros, a Dilma “coração valente”, não passa de demagogia. O passado de luta contra a ditadura foi soterrado por grossas camadas de pragmatismo. Tenho sempre a sensação de que ela faz campanha eleitoral com profundo tédio, contrariada mesmo. Seu desempenho em debates é sofrível. Comporta-se como piloto de data show, preferindo gráficos e estatísticas a argumentos políticos. Sua dificuldade de argumentação fora da bitola estreita dos marqueteiros chega a ser comovente, quando não constrangedora. Um outro detalhe chama a atenção. Jamais cita seu partido nos debates. Desserviço grave num ambiente em que se costuma personalizar o que deveria ser construção coletiva.
Agora, o partido. Respeito a origem do PT, que nasceu numa conjuntura de ascensão das lutas populares. Socialista na raiz, abandonou o barco quando a perspectiva de chegar à presidência tornou-se concreta. Na Carta ao Povo Brasileiro (erradamente lembrada
como Carta aos Brasileiros), de 2002, o partido dobra a espinha aos mercados e, mais à frente, confirma a inclinação à direita mantendo os pilares econômicos do governo anterior. Henrique Meirelles, executivo da banca internacional, é nomeado por Lula para o Banco Central, acalmando de vez a burguesia. Daí por diante, o que se viu foi um deslizamento consistente rumo ao centro e à direita. Quando Fernando Henrique anunciou, em 1994, a aliança com o então PFL, foi uma surpresa. Como era possível que o Príncipe dos Sociólogos, que panfletou junto com Lula nas greves do ABC, em fins dos anos 70, estendesse a mão para Antônio Carlos Magalhães ? Em 2012, Paulo Maluf recebeu Lula e lideranças petistas para um almoço. Na sobremesa, um acordo garantiu um tempinho adicional na TV para a campanha à prefeitura de São Paulo. A falta de escrúpulos em nome da “governabilidade” é equivalente em ambos os casos. Renan Calheiros, Fernando Collor e José Sarney fazem parte da base aliada que governa o país junto com o PT. Delfim Neto, que jamais fez uma autocrítica por sua atuação durante a ditadura, é tido como homem “progressista” e ouvido com respeito por aves de alta plumagem do partido. A aliança com as ruas se decompôs e deu lugar a um pragmatismo descaracterizador, que joga os petistas nos braços do que há de mais atrasado e corrompido na política nacional. Os movimentos sociais, com raras exceções, foram cooptados, anestesiados, domesticados.
Lamento, mas a conclusão é inevitável: o PT é a esquerda que se extraviou. Não à toa, Tarso Genro, quadro histórico do partido, observou que “se o Lula não ficar na frente do movimento de renovação profunda, o PT pode se transformar numa espécie de PMDB pós-moderno”. Se o Messias não chegar, o mundo desaba ?
Não se trata de negar melhorias para as camadas mais pobres da população, nos doze anos petistas. Foram importantes, sem dúvida, mas são absolutamente insuficientes para caracterizar um projeto de esquerda. Antes de mais nada, um esclarecimento. As políticas compensatórias implementadas pelos governos Lula e Dilma não significaram uma diminuição real da desigualdade no Brasil. Cito o economista Reinaldo Gonçalves, da UFRJ, dificilmente rotulável como besta fera da direita: “Com raras exceções, essas políticas limitam-se a alterar a distribuição da renda na classe trabalhadora (salários, aposentadorias e benefícios), sem alterações substantivas na distribuição funcional da renda, que inclui, além do salário e das transferências, as rendas do capital (lucro, juro e aluguel)”. Como corolário, a desigualdade entre as rendas do capital e do trabalho, indecente no nosso país, permanece intocada. Os banqueiros continuam rindo à toa. Como que a confirmar a bonança dos ricos em mares petistas, relatório recente sobre a riqueza global informa que o Brasil tem 296 mil pessoas entre o 1% mais rico do mundo, e mais de 5 milhões entre os 10 do topo. É mais do que os outros seis emergentes citados no relatório. O número de milionários não para de crescer.
Voltando à questão das políticas compensatórias. Transferir recursos para os pobres, sem educá-los para compreender a estrutura que alimenta e multiplica a pobreza, traz duas consequências: a) Consolida o conformismo (Mas doutor uma esmola/para um homem que é são/ou lhe mata de vergonha/ou vicia o cidadão – Luiz Gonzaga); e b) Abre as portas para o messianismo. Desorganizado e desorientado, o povo continuará à espera de políticos “sensíveis” para resolver seus problemas. Não tem condições de compreender, sozinho, seu papel de protagonista das transformações.
Um partido de esquerda não deve, jamais, renunciar ao papel de educador político das massas. Isso não se faz sem confrontar interesses de classe. O PT não tem sido esse partido.
Em toda a campanha eleitoral, o PT jamais esboçou ao menos um programa mínimo de demandas identificadas com a esquerda. Em determinados momentos, acovardou-se com pressões reacionárias (como aconteceu, por exemplo, com as discussões sobre o aborto e a homofobia). Suas alianças preferenciais não dão a menor garantia de que um eventual segundo governo Dilma avançará para uma agenda progressista. Nestas circunstâncias, fica impossível passar um cheque em branco. Fazê-lo, seria ofender a minha história e a de tantos combatentes por uma sociedade mais justa e fraterna. Entre eles, muitos que ajudaram a fundar o PT. Minha atitude não pode ser outra: voto nulo. Com o compromisso de apoiar a construção de uma Frente de Esquerda, que, para além das eleições, formule e implemente uma estratégia socialista para o Brasil.
Abraço
Jacques Gruman
Em tempo: Não falei sobre o segundo turno das eleições para o governo do Rio. Não há muito o que falar. O Estado do Rio, que já foi caixa de ressonância cultural e política do país, vai escolher entre duas máfias: uma religiosa, escorada pelo trio Crivella, Garotinho & Lindbergh, outra clássica, patrocinada por Cabral e seus Blue Caps. Entre don Corleone e don Altobelo, prefiro … chamar a polícia ! Nulo de novo.