Comemorar o quê?
Toda farsa tem dois gumes (Millôr Fernandes)
Estive em Montevidéu no verão de 85. Foi um privilégio. O país estava saindo de doze anos de ditadura e comemorava comme il faut. Um dos pontos de maior concentração popular era o Palácio Legislativo, sede do Congresso, lacrado por muitos anos. Sua abertura simbolizava a volta da política a céu aberto, banida pelos coturnos. Bandeiras de todos os tipos tremulavam, o povo não parava de chegar. Contaminado pela festa, caminhava pela avenida Agraciada, quando me deparei com um cartaz inusitado. Assinado pela organização Salú y Anarquia, dizia: Que mierda festejan ? Isso mesmo, na contramão daquela monumental descompressão, longamente aguardada e duramente conquistada, tinha gente que achava que aquilo não passava de uma farsa, era tudo ou nada. Olhei em volta, vi militantes da Frente Ampla que pouco depois começaria a vencer eleições, e pensei: quem estará com a razão ? Salú y Anarquia é, hoje, apenas uma referência excêntrica na história uruguaia, um animal extinto. Já a Frente Ampla …
O cartaz da Agraciada brotou na memória depois do espetáculo bisonho de ontem em Brasília. O que há para festejar ? De que sorriam Suas Excelências, que transformaram um cenário deliberativo, de interlocução respeitosa e vital para a democracia burguesa, em pocilga guerreira e forrada de achincalhe ? Com raras exceções, os senhores deputados pareciam não ter a menor ideia do que estavam discutindo. Um deles, que fez carreira na pior tradição pelega do sindicalismo, renunciou aos argumentos e cantou uma musiquinha ofensiva, de deboche. Outro, que se nutre do fascismo, homenageou um torturador. O baixo clero evocou Deus, filhos, netos, Jerusalém (!), empoderamento das mulheres (!!), moradores de rua, agricultores, cristianismo, e por aí vai, numa procissão medíocre e sinistra, difícil de superar. São esses patetas, indignos de Buster Keaton e Ben Turpin, os gloriosos avatares da democracia brasileira. O que há para comemorar ?
A cretinice do processo de impeachment tem seu símbolo maior no bolão do Paulinho da Farsa, capo da tropa de choque da oposição. Listinha em punho, o deputado percorria os salões da Câmara, recolhendo R$ 100 de quem se dispunha a apostar no placar final da votação de ontem. Deputado ou bookmaker ? Plenário ou guichê do prado ? Nível de esgoto. O que há para comemorar ?
Ao longo do processo, ergueram-se muros de todos os tipos. Muros físicos, como os erguidos em Brasília e os cordões de isolamento providenciados pela polícia em Copacabana. Muros subjetivos, com o nível de intolerância geral cometendo a proeza de quase se igualar à barbárie das torcidas organizadas, que transformam paixão em violência. Disputas de ideias terminaram em rachas familiares, amizades sucumbiram ao fanatismo. Acabo de saber que o tradicional jantar do Pessach, a (mal) chamada Páscoa judaica, de uma família paulista foi cancelado por conta dessas disputas. E o Pessach, caramba !, é a Festa da Liberdade … O Brasil virou uma imensa rinha de galos, excitados por interesses disfarçados, desinformação, fé cega e vinganças variadas. Pior é que essa rinha parece que veio para ficar. Não somos apenas Meanies ou Beatles, virtuosos ou canalhas. Perdeu-se a capacidade de travar a luta política em terreno civilizado, respeitando as diferenças. O que há para comemorar ?
Em qual país do mundo um parlamento tem 60% de seus membros envolvidos em alguma forma de crime/irregularidade ? Em qual país do mundo a Câmara dos Deputados é presidida por um cavalheiro com o prontuário de Eduardo Cunha ? Qual é a sociedade que acha natural que o chefe do Executivo seja julgado por crime de responsabilidade antes mesmo de se transformar em réu ? Em que lugar deste planeta ensandecido soltam-se fogos para celebrar o teatro medonho que Brasília patrocinou ontem ? O que há para comemorar ?
A presidente da República faz um péssimo governo, seu nível de articulação com a sociedade é tão canhestro que deixa qualquer amador ruborizado. A política saiu das ruas e dos movimentos sociais e migrou para as manobras de bastidores. A base de sustentação parlamentar, nutrida pelo toma-lá-dá-cá e por alianças com inimigos confessos dos interesses populares, demonstrou ser tão sólida quanto o “dispositivo militar” de Jango. Na hora do conflito, a cavalaria está chegando tarde. Fica difícil mobilizar os trabalhadores, meros coadjuvantes de um partido que pretendia representá-los. No vácuo, a direita aprendeu o caminho das ruas e a gente já ouve a revoada dos corvos. Despolitizada, desmobilizada, a classe trabalhadora está praticamente fora do radar.
Nada disso, entretanto, justifica as manobras pró-impeachment. O jogo é cínico e tem protagonistas óbvios. Embora eu não esteja muito interessado em rótulos, trata-se claramente de um golpe. Promovido pelo Comitê Central da burguesia, a Fiesp, amamentado pelos conglomerados de comunicação e apoiado por um nível de histeria que, infelizmente, não é inédito na história do Brasil. Não sou leviano, sei que nem todos os que apoiam o impeachment são Meanies. Há gente séria que se convenceu, honestamente, da legitimidade das acusações contra a presidente. Delas, entretanto, divirjo. Não estão em julgamento os casos de corrupção ou a competência de Dilma. O que poderia justificar seu afastamento, tema controverso e de grande complexidade técnica, jamais foi abordado com seriedade por parlamentares patetas. O que se viu foi um festival de gritos, bizarrices e baixarias, falta de respeito ao público e de decoro político. Prevaleceu o que o jornalista Marcelo Coelho chamou de império da ignorância. Eu concordo com ele. O que há para comemorar ?
Janio de Freitas, leitura sempre obrigatória, não evitou um travo amargo em sua coluna de ontem na Folha de São Paulo. Antevendo o desfecho da votação na Câmara, sentenciou: “Democracia não é para qualquer um, e o Brasil não tem aptidão para vivê-la. É historicamente inapto, como provam suas poucas e vãs tentativas”. Entendo o desalento, mas prefiro adubar esperanças. Como o poeta Thiago de Mello: “Faz escuro, mas eu canto”. Há muito o que aprender com o que está acontecendo. O tempo histórico não é o mesmo da biologia, tem manhas e caprichos que guarda num cofre invisível. Quem sabe chegou a hora de costurar, com paciência e sem ilusões, uma frente de esquerda que não seja a esquerda mais ou menos (porque, aí, ela sempre equivalerá à direita mais ou mais) ? Com programa unitário, anticapitalista e construído junto com as massas, protagonistas de sua história ? Soa antigo ? Venha aqui, Vianinha, e lembre o inesquecível Manguari Pistolão, do Rasga Coração: “Nem tudo o que é novo é revolucionário”.
Abraço
Jacques
Gruman