Os talibãs e a obra sangrenta da OTAN
Um fuzileiro norte-americano na base aérea de Bost, em Helmand, Afeganistão (foto de arquivo)
CréditosAndrew Renneisen / Getty Images
Por José Goulão
ABRIL ABRIL
Uma das criaturas, os Talibã, voltou-se contra o criador, na sequência da arrogância e de um erro de cálculo deste. Isto não quer dizer que a lição tenha sido aprendida em Washington e em Bruxelas.
A OTAN foi expulsa do Afeganistão, derrotada e humilhada. Vinte anos, centenas de milhares de vítimas humanas, 2,23 bilhões de dólares depois deixa um país destroçado, o sétimo mais pobre do mundo, com 47% da população abaixo do nível de pobreza e três quartos do orçamento do governo dependente da ajuda internacional; as únicas atividades econômicas são a corrupção da elite colaboracionista e a exportação de ópio, responsável por mais de 80% da heroína comercializada ilegalmente no mundo. Para trás ficou uma nação nas mãos da mesma organização em que se encontrava quando se iniciou a invasão ocidental, em outubro de 2001 – os extremistas islâmicos dos Talibã. Da prometida democracia e do Estado centralizado nem sinais.
Ah não, afinal não era isso que estava em causa para lançar a guerra, apesar das justificações dadas então pelo presidente George W. Bush. «A nossa missão no Afeganistão nunca teve como objetivo a construção de uma nação; nunca teve como objetivo a criação de uma democracia unificada e centralizada», explica o presidente norte-americano de agora, Joseph Biden. Queríamos apenas «prevenir um ataque terrorista contra a pátria americana».
Estas surpreendentes declarações levaram inclusive o jornal Washington Post, um dos ícones da propaganda imperial corporativa, a constatar que «os presidentes dos Estados Unidos» – e foram quatro – «e os dirigentes militares enganaram deliberadamente o público sobre a mais longa guerra americana, conduzida durante duas décadas no Afeganistão».
A «guerra contra o terror» e o «terror» no poder
É cedo, muito cedo ainda para se conhecerem os próximos caminhos do Afeganistão depois de os Talibã terem chegado a Cabul vencendo uma guerra de guerrilha em que, inseridos pacientemente na complexa sociedade afegã, puseram em xeque a mais monstruosa máquina de guerra alguma vez reunida no mundo. Verdade seja dita que a OTAN perdeu, mas o mesmo não aconteceu com alguns dos seus principais patrocinadores: o valor das ações dos cinco mais importantes negociantes de guerra dos Estados Unidos cresceu 58% em 20 anos.
Apesar das alarmantes antevisões catastrofistas em tons coloniais postas a circular pelos tão zelosos defensores dos «valores ocidentais», com destaque para o chefe da política externa da União Europeia, Josep Borrell, é prematuro fazer previsões sobre o que virá efetivamente a ser a atuação de um governo resultante da vitória talibã. Poderá admitir-se, sem grande margem de erro, que não suscitará uma situação pior, em termos de direitos humanos e das mulheres, do que as já existentes, por exemplo, na Arábia Saudita, Qatar, Emirados Árabes Unidos ou mesmo no enclave sírio de Idlib, governado pela al-Qaeda a rogo dos Estados Unidos e da OTAN. Sendo que estes casos entre os «nossos aliados» não suscitam tão visível incômodo dos dedicados ativistas do atlantismo, de organizações não-governamentais afins e respectivos porta-vozes na comunicação social dominante.
É oportuno assinalar, por outro lado, que a gênese da situação atual poderia ter sido evitada. É um fato histórico, mas significativamente omitido, que após a formação do primeiro governo colaboracionista em Cabul, logo a seguir ao início da invasão, vários chefes talibã, entre eles o mullah Abdul Ghani Baradar, recente interlocutor do chefe da CIA numa reunião secreta e chefe da delegação talibã nas negociações do Qatar, propuseram uma plataforma de acordo com o então presidente Hamid Karzai mediante a qual os Talibã poderiam ter reconhecido o regime e integrar-se no sistema político.
Não foi Cabul que rejeitou a proposta, mas sim George W. Bush, ansioso pelas glórias imperiais da «guerra contra o terror», na sequência da qual acabou por colocar na capital afegã, 20 anos depois, um grupo que faz parte da lista norte-americana e europeia de «organizações terroristas». Bush não queria ouvir falar de outra coisa que não fosse a guerra, aliás já programada cerca de dois meses antes do 11 de Setembro. O resultado está à vista.
O caminho dos Talibã
O que farão os Talibã com o poder que conquistaram pelas armas, expulsando o todo-poderoso exército imperial?
A discussão sobre se estamos perante o movimento que governou o Emirado Islâmico do Afeganistão entre 1996 e 2001, com o qual a administração Clinton chegou a entender-se pelo menos em negócios petrolíferos, ou perante um «novo Talibã» é ainda acadêmica.
Existem indícios de que os Talibã, na verdade uma imensa e complexa associação fluida de senhores da guerra fundamentalistas islâmicos, na linha direta dos que em tempos foram patrocinados pela CIA para combater a presença militar soviética em território afegão, são hoje uma entidade mais inclusiva, integrando setores tribais que vão para lá da dominante pashtun, designadamente tajiques, usbeques e até xiitas hazara. Estes foram, nos tempos iniciais dos Talibã, na primeira metade da década de noventa, as grandes vítimas dos então conhecidos como «estudantes de teologia», oriundos do Paquistão.
Há também indícios comprovados de que os Talibã estão negociando uma ampliada coligação de governo, no mínimo para criar uma situação em que um novo executivo em Cabul seja reconhecido internacionalmente, uma hipótese remota para não ficar sujeito à asfixia financeira preparada pelos Estados Unidos: congelamento dos 9,4 bilhões de dólares de reservas do Banco Central Afegão, cancelamento de empréstimos do FMI – autêntico instrumento da OTAN – incluindo o de 460 milhões de dólares a título do combate à Covid-19, provável esbulho do ouro afegão depositado internacionalmente, como acontece em relação à Venezuela.
Os Talibã estão negociando com Hamid Karzai, o primeiro presidente do regime de ocupação; Abdullah Abdullah, chefe do «Conselho Superior de Reconciliação Nacional» – ambos «aceitáveis» pelos norte-americanos; e ainda com o senhor da guerra Gulbudin Hekmatiar, duas vezes primeiro-ministro, chefe da Irmandade Muçulmana no Afeganistão e um político que, apesar de ter jurado fidelidade à al-Qaeda, concorreu às últimas eleições presidenciais patrocinadas pela OTAN.
Instabilidade como continuação da guerra
Com esta estratégia de negociação ampliada os Talibã pretendem dar corpo à sua promessa de «governo inclusivo» e, ao mesmo tempo, tentar retirar espaço à argumentação norte-americana e dos aliados da OTAN sobre o seu irredentismo terrorista.
As recentes visitas de delegações talibã à Rússia, à China e ao Irã revelam um esforço no sentido da estabilidade regional através da participação no processo de integração da Ásia Central e do Sul cujo principal veículo é a Organização de Cooperação de Xangai (OCX), entidade que dá corpo aos entendimentos entre Moscou e Pequim.
Os presidentes Putin e Xi Jinping falaram por telefone depois da chegada dos Talibã a Cabul e salientaram a importância da «rapidez em intensificar os esforços contra as ameaças do terrorismo e o tráfico de droga com origem no Afeganistão, a importância de estabelecer a paz e de impedir que a instabilidade passe para países adjacentes».
A Rússia preza sobretudo a estabilidade em países vizinhos do Afeganistão como o Uzbequistão, o Tajiquistão e o Turquemenistão.
A China pretende defender os investimentos que tem realizado no Afeganistão, nomeadamente na atividade mineira, na construção da autoestrada que vence a mítica passagem do Khyber e na extensão ao território afegão do eixo entre o território chinês e o Paquistão integrado na Iniciativa Cintura e Estrada (ICE) ou nova Rota da Seda. Um oleoduto entre o Irã e território chinês é outro objetivo a ser equacionado, neste caso no âmbito do volumoso acordo econômico estabelecido recentemente entre a China e Teerã. Pequim deseja igualmente que o novo governo afegão vede em absoluto as tentativas de incursões terroristas contra o território uigur do Xijiang. Não faltam mercenários uigures no Isis e na al-Qaida, manobrados por mãos norte-americanas e turcas.
Perante a eventualidade deste novo quadro regional e no âmbito da estratégia para cercar a Rússia e isolar a China, os Estados Unidos não podem ver com bons olhos um caminho assim contrário aos objetivos ocidentais de globalismo e unilateralismo. A chamada «ordem internacional baseada em regras».
Não surpreenderá, portanto, que o objetivo actual de Washington seja a continuação da guerra através da sabotagem de todos os esforços para estabilizar a situação afegã.
Além da complexidade da estrutura tribal e étnica da sociedade do Afeganistão, onde frequentemente pontificam os senhores da guerra muito sensíveis a quem dá mais e onde o conceito de nação é muito frágil, Washington poderá recorrer também às suas conhecidas ligações com o Isis, Daesh ou Estado Islâmico – no caso afegão o Isis-Khorasan – e com a al-Qaida, que mantém uma relação ambígua com os Talibã.
Trata-se, no fundo, da tentativa de engendrar no Afeganistão uma situação ingovernável como a deixada pela OTAN depois de desmantelar a Líbia, igualmente em aliança com mercenários extremistas islâmicos. É o tipo de quadro, caracterizado pelos domínios locais de feudos e milícias, muito a jeito das transnacionais e do seu poder para corromper. E o Afeganistão é um fabuloso depósito de metais terras raras e também de lítio, riquezas essenciais para as novas tecnologias.
Os recentes atentados em Cabul são sinais de uma estratégia que pretende demonstrar a incapacidade talibã para fazer funcionar o país com estabilidade. Este quadro revela a importância e o perigo dos instrumentos de desestabilização e de desgaste continuado do país.
O Isis-Khorasan ou Isis-K apenas se tornou uma verdadeira realidade no Afeganistão a partir de 2015 e depois da derrota do «califado» do Isis em torno de Raqqa, na Síria.
Datam dessa época as notícias segundo as quais os Estados Unidos e o Reino Unido promoveram, através da CIA, a transferência de mercenários do Isis e respectivas famílias da Síria para o Leste do Afeganistão. Mais recentemente tem-se falado muito do fenômeno «Daesh Airlines», a ponte aérea patrocinada pela Turquia que transfere terroristas do Isis de Idleb, na Síria, para o Afeganistão, a exemplo do movimento que também existiu em direção à Líbia.
Outro negócio de grande porte e que terá certamente influência nos caminhos a seguir pelo Afeganistão é o da produção e comércio de ópio, essencial para o abastecimento global de heroína, papel que o Afeganistão da OTAN assumiu com um papel de quase-monopólio em volumes jamais atingidos.
Segundo os dados de Washington, foram investidos 10 bilhões de dólares em operações anti-droga durante a ocupação do Afeganistão. Esse foi o período, no entanto, em que a área de produção de ópio no país quadriplicou, não sendo segredo que o narcotráfico é um expediente através do qual a CIA financia as suas operações clandestinas. Como a criação e gestão do seu «exército sombra» no Afeganistão.
Disseram «direitos humanos»?
«Exército sombra». Uma estrutura terrorista clandestina ramificada e infiltrada que funciona no Afeganistão sob a tutela da CIA no âmbito da ocupação e que ganhou maior incremento a partir da «Operação Ômega», iniciativa da administração de Barack Obama que se caracterizou pela transferência de forças especiais das forças armadas para os serviços secretos. Aqui tiveram a possibilidade de criar e formar redes de terror para fazer trabalhos sujos que são «incompatíveis» com organizações «civilizadas» como a OTAN, por exemplo a tortura, os assassínios seletivos e as atividades próprias dos esquadrões da morte.
Khost Protective Force (KPF) e a Direcção de Segurança Nacional (DNS) são dois corpos terroristas tutelados por forças especiais transferidas das forças regulares para a CIA e constituídos por colaboracionistas afegãos que se dedicaram a perseguir, torturar e assassinar opositores à ocupação. Estas milícias, constituídas por mais de dez mil agentes, atuaram como esquadrões da morte através do país e também em Cabul. O prestigiado jornalista Seymour Hersh teve oportunidade de demonstrar que a CIA financiou as atividades do KPF através de receitas do tráfico de heroína.
Admite-se como possível que o Isis-K, tendo em conta os seus antecedentes e as suas ligações internas com senhores da guerra atuando em conjunto com os norte-americanos, seja um outro e mais recente corpo do «exército sombra» da CIA, mais orientado para a fase que se segue.
A primeira das estruturas terroristas deste tipo a ser criada foi, há cerca de 10 anos, o Counter-Terrorism Pursuit Team (CTPT), um esquadrão da morte com mais de três mil membros.
Um relatório da Missão das Nações Unidas no Afeganistão (UNAMA) considerou os grupos terroristas secretos como «atores militares internacionais» atuando «fora da cadeia de comando de governo», existindo «relatos constantes» de que o KPF «praticou abusos de direitos humanos matando intencionalmente civis, detendo indivíduos ilegalmente, além de danificar e queimar intencionalmente propriedades civis durante operações de busca e ataques noturnos».
Estes grupos terroristas, que certamente continuarão infiltrados apesar da nova situação, guiam-se por listas de pessoas para matar e capturar, a chamada «Lista Conjunta de Efeitos Prioritários»; nos últimos anos aderiram à «dronificação da violência» banalizando a cadeia de mortes em série e a individualização de alvos.
Através da transferência de ativos das forças regulares para a CIA, diluíram-se os rastros que pudessem conduzir até aos mais altos responsáveis por estas chacinas, certamente alguém agindo secretamente e à margem de quaisquer regras. Ao entrar em Cabul, os Talibã apoderaram-se das listas de agentes do KPF e da DNS. Não é de estranhar, portanto, o afã de muitos destes colaboracionistas para abandonarem apressadamente o território afegão atrás dos seus chefes.
Talvez isso explique também a razão pela qual tantos governos europeus avessos à aceitação de refugiados se mostraram recentemente tão disponíveis para acolher afegãos em fuga, afinal verdadeiros exércitos de «tradutores», a acreditar nas explicações oficiais, e que talvez sejam a versão moderna dos pides que apenas carimbavam passaportes. Não estranhemos que entre eles cheguem indivíduos responsáveis por atos de terror a serviço de corpos como o KPF e a DNS e ao mesmo tempo considerados cidadãos de bem a título dos serviços prestados aos ocupantes da OTAN.
O apreço por estes refugiados de primeira contrasta com o destino degradante que a União Europeia reserva para milhares de refugiados afegãos e de muitas outras nacionalidades penando nos campos de concentração na Líbia, financiados por Bruxelas, ou que se sujeitam às selvagerias do Frontex e da Guarda Costeira grega quando pretendem entrar no território da Grécia. A União Europeia paga bilhões de euros para que essas pessoas fiquem longe dos territórios europeus, mesmo que se afoguem em águas jônicas e mediterrânicas. Existem indícios de que tratamentos semelhantes estão guardados para as novas ondas de afegãos que pretendem deixar o país, mas que, por azar o seu, não integram a elite dos «tradutores». É nítido que os ministros europeus do Interior já estão desenvolvendo esforços de modo a que Bruxelas pague aos países vizinhos do Afeganistão para que fiquem com esses refugiados de segunda.
O Afeganistão resultante da ocupação e debandada da OTAN é um mar de incógnitas. Para memória futura, porém, é importante lembrar a gênese dos problemas, de modo a tentar entender os seus desenvolvimentos atuais e as eventuais soluções.
Os Talibã que tomaram Cabul e estão tentando formar governo são um resultado natural da «Operação Ciclone», através da qual os presidentes norte-americanos James Carter e Ronald Regan, a conselho de figuras sinistras da conspiração como Henry Kissinger e Zbigniew Brzezinski, resolveram há cerca de 40 anos mobilizar e militarizar o extremismo islâmico e lançá-lo contra as tropas soviéticas presentes no território afegão para defender a República Democrática do Afeganistão – único e curto período em que, por exemplo, as mulheres afegãs tiveram plenos direitos cívicos.
A criação das milícias dos mujahidines afegãos, com mentalidade e modos de atuar verdadeiramente medievais, representou uma viragem histórica na situação internacional com repercussões trágicas, década após década, um pouco por todo o mundo, principalmente no Oriente Médio, na África, na Ásia e até na Europa – cenário de gravíssimos atentados terroristas. Dos mujahidines nasceram os Bin Ladens, as al-Qaidas, os Talibã, os Ísis e todos os seus heterônimos transnacionais que não poucas vezes voltam a ser utilizados como instrumentos de ações agressivas e guerras conduzidas pelos Estados Unidos e a OTAN, como acontece no Afeganistão, na Síria, na Líbia, no Iraque, no Iêmen. Por alguma razão os criminosos mujahidines foram qualificados como «combatentes da liberdade» e assim recebidos solenemente na Casa Branca pelo presidente Ronald Reagan.
Aconteceu agora que uma das criaturas, os Talibã, se voltou contra o criador, na sequência da arrogância e de um erro de cálculo deste. Isto não quer dizer que a lição tenha sido aprendida em Washington e em Bruxelas. Estejamos certos de que, no magma de incertezas em que o Afeganistão está mergulhado, não faltarão esforços, iniciativas e conspirações para restaurar velhas cumplicidades ou reaproveitar as que continuam plenamente ativas.
José Goulão, Exclusivo O Lado Oculto/AbrilAbril