A mulher afegã nos 20 anos de ocupação da OTAN

imagemMulheres afegãs no campo de refugiados de Saray Shamali em Kabul em 2 de novembro de 2021.
Foto: Héctor RETAMAL/AFP

Nazanín Armanian

ODIARIO.INFO

Se hoje as mulheres afegãs se veem reduzidas a uma condição verdadeiramente sub-humana no que diz respeito a direitos e liberdades, os responsáveis não são apenas os fascistas talibãs. São quem durante décadas alimentou a reação afegã (clero, capitalismo, senhores feudais, o setor mais subdesenvolvido do país; todos apoiados pelos EUA e Grã-Bretanha, depois pela OTAN), quem alimentou mujahidines e talibãs, quem ocupou e destruiu o país em conluio com essas monstruosidades medievais, invertendo um não muito longínquo passado de progresso

Cheiram-te o hálito,
não seja que tenhas pronunciado “amo-te”
Há que esconder o amor na cave.
– Ahmad Shamlu

Devido a que:

– As Convenções de Genebra (1949) consideram que é obrigação das potências ocupantes proporcionar à população ocupada segurança, alimentação, educação e garantir os seus direitos e liberdades, e que de 2001 a 2021 o Afeganistão esteve oficialmente sob a bota dos países da OTAN;
– Os governos de Hamid Karzai (2005-2014) e Ashraf Ghani (2014-2021), que administraram o principal narco-estado do planeta, foram instalados por Washington;
– As forças da extrema-direita islâmica (chamadas “fundamentalistas” pela imprensa para amenizar a sua periculosidade), desde os Mujahidines aos Talibãs, foram patrocinadas pela CIA desde 1980 até hoje, e
– Um dos principais pretextos da OTAN para agredir o Afeganistão foi “libertar as mulheres afegãs da opressão Talibã”.

Os Estados Unidos e os seus parceiros são os responsáveis diretos pela terrível situação que a população deste estratégico país está vivendo e em particular as suas meninas e mulheres há décadas. A tragédia das mulheres afegãs foi utilizada por outro dos bombeiros pirômanos da Casa Branca, George Bush, com o fim de recrutar a opinião pública para instalar as suas tropas no país localizado perto da China e da Rússia; e o Congresso chegou a aprovar a “Lei de Ajuda às Mulheres e Crianças Afegãs” em 2001. Uma vez ocupado o país, colocou entre parênteses o tema da “guerra humanitária” criando outra narrativa: a guerra bíblica do “Bem contra o Mal”.

A cronologia dos acontecimentos demonstra a que ponto chegam os farsantes reunidos nos “Think-Tank” – os que elaboraram a conspiração contra o Iraque e contra o Afeganistão afirmando que “Bin Laden estava na caverna de Tora Bora” -, acusando aqueles que os desmascaram de conspiranóicos.

As afegãs antes da República Democrática (1978)

O terremoto político e social originado na região pela Revolução Bolchevique de 1917 (comparável com o impacto da Revolução Francesa na Europa) e a viragem na situação das mulheres russas, na maioria dos países do Oriente Médio e da Ásia Central e também do vizinho afegão, fez com que tivessem que reconhecer os direitos da mulher nas suas políticas:

– 1920: a rainha Soraya, de origem síria, esposa do monarca Amanullah Kahn, promove escolas modernas (não madrassas!) para meninas e meninos, apesar da dura oposição do clero e dos senhores feudais.

– 1921: é abolido o casamento forçado e infantil; a prostituição nupcial é tornada ilegal; é restrita a poliginia, embora seja mantida, entre outras, a lei judaico-islâmica de obrigar as meninas violadas a dormir com o seu agressor.

– 1929: a monarquia é derrubada pelas tribos afegãs armadas pelos britânicos, por ser modernizadora.

– 1950: durante o reinado de Zahir Shah e sua esposa Humaira, a Universidade de Cabul admite mulheres, embora em salas de aula separadas dos homens.

– 1956: Kobra Nurzai é nomeada Ministra da Saúde e atuou até 1969.

– 1957: a enfermeira Anahita Ratebzad organiza o “movimento contra o véu” e consegue eliminar a obrigação de usar lenço na cabeça ao tratar de pacientes do sexo masculino.

– 1964: a Constituição reconhece a igualdade entre homem e mulher; concede o direito de voto às mulheres. Nas eleições parlamentares, quatro mulheres são eleitas, entre elas a Sra. Ratebzad, política marxista. Que as monarquias semilaicas daquela época na zona fossem mais avançadas do que as chamadas “repúblicas” islâmicas de hoje, todas totalitárias e de recorte medieval, deve-se ao fato de que representavam o capitalismo face aos resíduos do feudalismo obscurantista. Nesse mesmo ano, as feministas fundam a Organização Democrática da Mulher Afegã. O “feminismo islâmico” ainda não havia sido inventado e ninguém se atrevia a pintar o patriarcado religioso de cor de rosa.

– 1968: centenas de mulheres manifestam-se contra a lei conservadora que proíbe as mulheres de estudar no estrangeiro.

Entre 1973 e 1978, na República (sem mais!) do Afeganistão, dirigida por Mohammed Daud Khan, 15% dos parlamentares serão mulheres, enquanto a cirurgiã Sohaila Sadigh é premiada como a primeira coronela (honorária) do país: durante o regime Talibã, ela continuou a operar vestida de homem.

Sob a República Democrática

– 1978: o estado socialista afegão, entre as medidas reformadoras (as leis laborais, distribuição de terras, etc.), proíbe também o casamento infantil e a norma que obriga as viúvas a casar com os irmãos do defunto.

– 1980: a doutora Ratebzad será a embaixadora do país na Iugoslávia e um ano depois tornar-se-á Ministra da Educação. O presidente Najibulá será recordado pelos afegãos pelo seu amor ao seu país e ao seu povo.

– Declara saúde e educação gratuitas pela primeira vez na história do país, revolucionando a vida das mulheres e meninas trabalhadoras. Leva água e eletricidade às aldeias mais remotas.

– Concede liberdade na indumentária. A burka, (vem do termo Purda, “cortina” em persa antigo), uma vestimenta de origem judaica e adotada pelos islamistas mais misóginos, que era exclusiva da etnia pashtun, vai desaparecendo.

– Cria dezenas de milhares de escolas para meninos e meninas; postos de trabalho para as mulheres, além de creches e licenças maternidade de três meses remuneradas. Elas serão cerca de metade do pessoal docente e de saúde do país (o mesmo sucede no Irão ou no Iraque de então).

– Substitui os Tribunais Religiosos por tribunais civis: um grande alívio para as mulheres-esposas.

– 1983: nomeia a feminista veterana Soraya Perlika como presidente do Crescente Vermelho Afegão. Estabele a idade nupcial em 16 anos para elas e 18 para eles.

Mas a frente anti-progresso afegã (clero, capitalismo, senhores feudais, o setor mais subdesenvolvido do país, todos apoiados pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido), numa brutal campanha, clama que “os comunistas pretendem coletivizar as mulheres do país”, preparando o assalto ao estado socialista.

O regime dos jihadistas

– 1992: com a tomada de Cabul pela Aliança do Norte e outros grupos anticomunistas vinculados com a CIA, Arábia Saudita e Irã, milhões de homens e mulheres afegãos tiveram que fugir das suas casas, pois os jihadistas contaminavam a água das escolas femininas, atacavam os negócios dirigidos pelas mulheres (cabeleireiros, escolas, etc.), destruíam os depósitos de água, postes elétricos, fábricas e plantações, violavam e apedrejavam os insubmissos. No bairro de Afshar, em Cabul, em 13 de fevereiro de 1992, massacraram cerca de 700 residentes da etnia Hazara, violaram e mutilaram as mulheres e sodomizaram as crianças antes de as matar. “A história recordar-nos-á por termos desmantelado a URSS e não por termos criado os Mujahidines e os seus crimes”, disse o conselheiro de segurança de Jimmy Carter, Zbigniew Brzezinski, o padrinho desta organização criminosa.

Os Talibã substituem os Mujahidin

Em 1996, o Pentágono decide desfazer-se dos Mujahidines por meio dos Talibãs, “adeptos de serem párocos islâmicos”. Talvez estes fossem capazes de estabelecer uma nova ordem no país, agora que a URSS havia desaparecido.

Este grupo fascista parecer-se-á muito com os seus colegas europeus do século passado, e não apenas no seu ódio tanto ao socialismo como à democracia liberal, mas também por proibirem partidos políticos, sindicatos, associações patronais, liberdade de imprensa, etc. Embora também venha a ter traços próprios:

– Com o mito viril do guerreiro, faz a apologia da mulher como esposa e mãe, símbolo da pureza, fertilidade e felicidade (para o homem): as que se distanciam desse simbolismo serão apedrejadas em público, ação similar à das fogueiras acesas pela Inquisição Cristã para queimar as “bruxas”.

– A idade nupcial das “mulheres” é reduzida para os 8 anos: dizia Mussolini que as mulheres solteiras não tinham lugar na “sua Itália”.

– As mulheres serão despojadas de todos os direitos humanos: ficarão em prisão domiciliar e não poderão sair de casa, nem para ir comprar pão, nem levar os filhos ao médico, se não estiverem acompanhadas por um homem. A ignorância será sinônimo de decência. Não poderão ser examinadas por médicos, mesmo que isso lhes custe a vida; no entanto, em certas circunstâncias, poderão “examinar” o corpo do paciente através do espelho (conforme determina a Sharia). Assim, 16 em cada 100 mulheres perdiam a vida ao dar à luz, e 17 em cada 100 bebês morriam antes do seu primeiro aniversário.

– Negam a capacidade de liderança das mulheres, recorrendo ao Alcorão: “Por alguma razão Alá enviou apenas profetas do sexo masculino e só a eles fez revelações” (21: 7).

– Não permitem o trabalho da mulher (lançando na pobreza as que são chefes de família) nem mesmo que usem o saco-burca. Infligiam 75 chicotadas com cabo metálico àquelas mulheres cujos corpos se viam quando o vento passava por baixo dessa horrenda vestimenta, expressão viva da frase “a melhor mulher é a muda (não discute), surda (não ouve o voz dos homens) e cega (não olha para outros homens)”, uma boneca sexual nas mãos de um pervertido. E quando as deixaram sair, ordenaram uma separação estrita entre os sexos (o seu colega do Irã, Ahmadinejad, chegou até a propor separar os elevadores, inclusive os passeios).

– Proíbem o lazer, a televisão, a música, o cinema, fazer voar papagaios de papel (o entretenimento das crianças afegãs pobres), rir, dançar, cantar, conversar com homens não aparentados, apaixonar-se, usar maquiagem e verniz de unhas, saltos altos, perfumes, andar de bicicleta, guiar automóveis, ser fotografada ou ir ao hammam (banhos públicos, causando-lhes sérios problemas de saúde), porque são “importações do Ocidente”.

– Converteram as mesquitas em centros de controle dos cidadãos: quem não comparecia era acusado de apóstata, espancado e até executado. Os adversários foram acusados de “espiões dos estrangeiros”.

– Estabeleceram que a indenização por magoar mulheres é metade da dos homens: ela é metade humana, ela é Untermensch, diziam os nazistas, sub-humana. Aplicaram a lei da lapidação, a de Talião, e lançaram seres humanos de edifícios altos por amarem a pessoa errada. A fome, o tráfico sexual, os maus-tratos e os feminicídios dispararam.

– O grau de barbárie Talibã era tal que as famílias ricas enviaram as suas filhas às “repúblicas islâmicas” do Irã (de cujos Talibãs tinham fugido cerca de 5 milhões de iranianos) ou do Paquistão para as proteger.

A coabitação OTAN-Talibã

Em outubro de 2001, e sob o pretexto de castigar os seus antigos aliados da Al-Qaeda-Talibã pelos atentados de 11 de Setembro, os Estados Unidos e seus aliados aplicam punição coletiva à nação afegã, lançando 20.000 bombas sobre o seu povo, causando dezenas de milhares de mortos, feridos e mutilados, e a fuga de milhões de almas das suas casas naquele duro inverno. As 500 toneladas de urânio empobrecido despejadas são vistas em crianças que nasceram com graves deformações, conforme denunciou o coronel médico norte-americano Asaf Durakovic, antes de ser expulso do exército.

Depois, enviaram uns 300.000 soldados dos setores sociais excluídos para matarem outros pobres por uns trocados. Levaram a violência a outro nível: sequestrar, violar, prostituir um número impossível de determinar de meninas e mulheres afegãs.

Atenção ao dado: em 2012, o Pentágono revela que pelo menos 26.000 mulheres e homens norte-americanos foram vítimas de violência sexual em bases dos EUA. Só no Iraque e só em 2004, umas 40 mulheres soldados denunciaram ter sido violadas e, em 2016, eram mais de 5.000. Imaginem o que eles fizeram às mulheres afegãs “não compatriotas, não armadas”! O caso da neurocirurgiã paquistanesa Dra. Aafia Siddiqui (1972) e seus três filhos pequenos no Afeganistão, sequestrada pela CIA em 2003 e submetida a brutais torturas e violações, foi apenas a ponta do iceberg. As atrocidades e os crimes de guerra da OTAN no Afeganistão foram, obviamente, ignorados pelo Tribunal Penal Internacional.

As mudanças cosméticas feitas em algumas cidades grandes, como inauguração de cabeleireiros femininos, são como os McDonald’s que os EUA abriram nos países do ex-Pacto de Varsóvia: “um sinal da sua libertação”.

Entre 2010-2011, 66% das meninas afegãs com idades entre 12 e 15 estavam fora da escola e, em 2015, segundo a UNICEF, 7,3 milhões de crianças (das quais 60% eram meninas) abandonaram a escola devido à pobreza; muitas dessas meninas empregadas nas plantações de ópio exploradas pelos cartéis internacionais da droga, dando origem ao fenômeno das “Noivas da droga”, enquanto disparava o consumo de ópio entre as mulheres mais pobres.

Em 2009, uma lei obriga a esposa a satisfazer os desejos sexuais do seu marido; isto é, violação marital. E aprovam outra que permite que mulheres sejam presas por “comportamento indecoroso”. Agora imaginem uma prisão feminina!

Em 2012, a Comissão de Direitos Humanos do Afeganistão registrou 5.575 casos de violência física contra mulheres (queimá-la viva, espancá-la até a morte, mutilá-la etc.). Centenas de mulheres foram leiloadas em praças públicas.

E o balanço em 2021:
– Todos os anos, pelo menos 2.300 mulheres e meninas se imolam, no mais absoluto desespero.
– Apenas 37% das mulheres jovens sabem ler e escrever, a percentagem reduz-se nas mulheres adultas: 19%.
– Segundo Global Rights, 9 em cada 10 mulheres afegãs sofreram violência sexual e física ou foram forçadas a contrair matrimônio.
– 67% da população não tem acesso a água potável.
– A esperança de vida das mulheres não chega aos 50 anos.

Como se de um laboratório de controle social se tratasse, são patrulhadas por policiais do “vício e da virtude” (também utilizadas pelas teocracias da Arábia Saudita e do Irã) que vigiam não só os contatos entre os seres humanos, mas também o grau da sua obediência às normas mais absurdas sobre as cores das roupas ou o corte do cabelo e da barba dos meninos: os infratores receberão os 75 açoites que Deus manda.

Nestes anos, a OTAN cogoverna com os Talibãs: “Os Talibã não são nossos inimigos”, disse Biden durante o mandato de Obama. Os EUA permitiram que o grupo se reorganizasse até expandir seu poder por grande parte do país, onde, graças a Washington, continuou a aplicar as suas normas: chegaram a construir milhares de madrassas e cerca de 100.000 mesquitas.

Talibã II

E quando os EUA decidem entregar o poder em Kabul aos Talibãs com o objetivo de afundar a China, o grupo islâmico de extrema-direita, em busca de apoio mundial, é forçado a fazer “discursos de domesticidade” (como quando Khomeini na sua entrevista com Oriana Fallaci em Paris prometeu não impor o véu e legalizar até mesmo o partido comunista), enquanto decapitava a policial grávida de 8 meses Negar Masumí e o jogador de basquete Mahjabin Hakimi, como ponta do iceberg das atrocidades que nunca deixaram de cometer.

Para os Talibãs, os “muçulmanos” não necessitam de habitação, emprego, universidades, água potável etc., mas de mais centros religiosos para salvar as suas almas, contaminadas pela modernidade. Desde 15 de agosto, milhares de famílias de etnias não pashtun foram expulsas dos seus lares, e as suas terras e casas foram ocupadas por esses bandidos; centenas de mulheres, muitas grávidas ou com bebês, tiveram que se refugiar nas montanhas apenas com a roupa que tinham vestida.

Hoje, o principal problema da mulher afegã não é poder estudar como afirmam a imprensa ocidental e as afegãs das classes altas, mas alimentar a sua família e ter segurança: o desespero é tal que estão vendendo as suas filhas pequenas para poder dar de comer a outros membros da família.

Não, nem é possível reformar uma ideologia fascista, nem os seus adeptos poderão moderar sua aplicação.

Satanás, ébrio com a vitória,
faz banquete do nosso funeral
Há que esconder a Luz e Deus na cave.

Fonte: https://blogs.publico.es/puntoyseguido/7429/la-mujer-afgana-durante-los-20-anos-de-la-ocupacion-de-la-otan/