Friedrich Engels: Afeganistão

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Publica-se este artigo de Engels com mais de século e meio não como curiosidade mas como contributo de um dos fundadores do marxismo para a análise de uma das mais conflituosas zonas do mundo. Uma das zonas do mundo em que a intervenção de sucessivas potências imperialistas tem provocado mais tragédias. Em que essa intervenção tem ajudado a condenar os povos a infindáveis confrontos, à divisão, à dominação, ao atraso. Engels refere aqui um insucesso britânico. Sabemos hoje que é apenas mais um, numa zona em que as aventuras imperialistas têm sistematicamente acabado mal.

Afeganistão [ 1 ]

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Escrito em Julho e nos primeiros 10 dias de Agosto de 1857; publicado pela primeira vez em The New American Cyclopaedia, vol. I, 1858
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Afeganistão, um extenso país da Ásia, a noroeste da Índia. Situa-se entre a Pérsia e as Índias e, na outra direcção, entre o Hindu Kush e o Oceano Índico. Anteriormente incluía as províncias persas de Khorassan e Kohistan, juntamente com Herat, Beluchistan, Caxemira e Sinde, e uma parte considerável do Punjab. Nos seus limites atuais, provavelmente não há mais de 4.000.000 de habitantes. A superfície do Afeganistão é muito irregular – elevados planaltos, vastas montanhas, vales profundos e ravinas. Como todos os países tropicais montanhosos, apresenta todas as variedades de clima. No Hindu Kush, a neve cai todo o ano nos picos elevados, enquanto nos vales o termômetro chega aos 45°. O calor é maior nas regiões leste do que nas oeste, mas o clima é geralmente mais frio do que na Índia; e embora as alternâncias de temperatura entre verão e inverno, ou dia e noite, sejam muito grandes, o país é geralmente saudável. As principais doenças são febres, catarros e oftalmia. Ocasionalmente, a varíola é destrutiva. O solo é de exuberante fertilidade. As tamareiras florescem nos oásis dos desertos arenosos; a cana-de-açúcar e o algodão nos quentes vales; e frutas e vegetais europeus crescem abundantemente nos terraços nas encostas das colinas até um nível de 6.000 ou 7.000 pés. As montanhas são revestidas de nobres florestas, frequentadas por ursos, lobos e raposas, enquanto o leão, o leopardo e o tigre são encontrados em distritos compatíveis com os seus hábitos. Os animais úteis à humanidade não faltam. Existe uma grande variedade de ovelhas da raça Persa ou da raça de cauda larga. Os cavalos são de bom tamanho e sangue. O camelo e o asno são usados como bestas de carga, e podem se encontrar cabras, cães e gatos em grande número. Ao lado do Hindu Kush, que é uma continuação dos Himalaias, existe uma cadeia de montanhas chamada montanha Solyman, no sudoeste; e entre o Afeganistão e Balkh, existe uma cadeia conhecida como cordilheira Paropamisana, acerca da qual entretanto muito pouca informação chegou à Europa.

Os rios são poucos; o Helmand e o Kabul são os mais importantes. Estes surgem no Hindu Kush, o Kabul confluindo no Indo perto de Attock; o Helmand correndo para oeste através do distrito de Seiestan e desembocando no lago de Zurrah. O Helmand tem a particularidade de transbordar anualmente as suas margens como o Nilo, trazendo fertilidade ao solo que, além do limite da inundação, é deserto arenoso. As principais cidades do Afeganistão são Cabul, a capital, Ghuznee, Peshawar e Kandahar. Cabul é uma bela cidade, lat. 34 ° 10 ‘N. long. 60 ° 43 ‘E., no rio do mesmo nome. As construções são de madeira, limpas e cómodas, e sendo a cidade rodeada de belos jardins tem um aspecto muito agradável. É rodeada de aldeias e está no meio de uma grande planície envolvida por colinas baixas. O túmulo do imperador Baber é o seu principal monumento. Peshawar é uma cidade grande, com uma população estimada em 100.000 habitantes. Ghuznee, uma cidade de antigo renome, que já foi a capital do grande sultão Mahmoud, decaiu do seu grande estatuto e é agora um lugar pobre. Perto dela está o túmulo de Mahmoud. Kandahar foi fundada tão recentemente como 1754. Situa-se no local de uma antiga cidade. Foi durante alguns anos a capital; mas em 1774 a sede do governo foi deslocada para Cabul. Acredita-se que contenha 100.000 habitantes. Perto da cidade fica o túmulo de Shah Ahmed, o fundador da cidade, um asilo tão sagrado que nem mesmo o rei pode remover um criminoso que se tenha refugiado no interior dos seus muros.

A posição geográfica do Afeganistão e o carácter peculiar do povo conferem ao país uma importância política que dificilmente pode ser sobrestimada nos assuntos da Ásia Central. O governo é uma monarquia, mas a autoridade do rei sobre os seus agitados e turbulentos súbditos é pessoal e muito incerta. O reino está dividido em províncias, cada uma supervisionada por um representante do soberano, que arrecada a receita e a remete à capital.

Os afegãos são uma raça corajosa, resistente e independente; desempenham apenas ocupações pastorais ou agrícolas, evitando a troca e o comércio, que desdenhosamente atribuem aos hindus e a outros habitantes das cidades. Para eles, a guerra é uma emoção e um alívio da monótona ocupação em atividades industriosas.

Os afegãos estão divididos em clãs [2 ], sobre os quais os vários chefes exercem uma espécie de supremacia feudal. O seu indomável ódio pela submissão a regras e o seu amor pela independência individual, só por si, impedem que se tornem numa nação poderosa; mas essa mesma irregularidade e incerteza de acção torna-os vizinhos perigosos, susceptíveis de serem impelidos pelos ventos do capricho ou agitados por intrigantes políticos, que habilmente excitam as suas paixões. As duas tribos principais são os Dooranees e Ghilgies, que estão sempre em conflito uns com os outros. Os Dooranee são os mais poderosos; e em virtude de sua supremacia, seu ameer ou cã consagrou-se a si próprio rei do Afeganistão. Tem um rendimento de cerca de £10.000.000. A sua autoridade é suprema apenas na sua tribo. Os contingentes militares são principalmente fornecidos pelos Dooranee; o resto do exército é fornecido por outros clãs ou por aventureiros militares que se alistam no serviço na esperança de pagamento ou de saque. A justiça nas cidades é administrada por cadis, mas os afegãos raramente recorrem à lei. Os seus cãs têm direito de punição mesmo até ao limite de vida ou morte. A vingança de sangue é um dever familiar; no entanto, são considerados um povo liberal e generoso quando não provocado, e os direitos de hospitalidade são tão sagrados que um inimigo mortal que coma o pão e o sal, mesmo que obtidos por estratagema, torna-se sagrado face à vingança, e pode até reivindicar a proteção do seu anfitrião contra qualquer outra ameaça. Na religião são muçulmanos e da seita Soonee; mas não são fanáticos, e as alianças entre Sheeahs e Soonees [3 ] não são de nenhuma forma incomuns.

O Afeganistão foi alternadamente submetido ao domínio mogul [4 ] e persa. Antes do advento dos britânicos nas costas da Índia, as invasões estrangeiras que varreram as planícies do Hindustão procederam sempre do Afeganistão. O sultão Mahmoud, o Grande, Gengis Khan, Tamerlão e Nadir Shah, todos tomaram esse caminho. Em 1747, após a morte de Nadir, Shah Ahmed, que havia aprendido a arte da guerra com aquele aventureiro militar, decidiu livrar-se do jugo persa. Sob ele, o Afeganistão atingiu o seu ponto mais alto de grandeza e prosperidade nos tempos modernos. Pertencia à família dos Suddosis, e o seu primeiro acto foi apoderar-se da riqueza que o seu falecido chefe havia saqueado na Índia. Em 1748, conseguiu expulsar o governador Mogul de Cabul e Peshawar e, cruzando o Indo, rapidamente ocupou o Punjab. O seu reino estendeu-se de Khorassan a Deli, e até mesmo cruzou armas com os poderes Marata. [5 ] Esses grandes empreendimentos, entretanto, não o impediram de cultivar algumas das artes da paz, e era conhecido favoravelmente como poeta e historiador. Morreu em 1772 e deixou a coroa ao seu filho Timour que, no entanto, não estava à altura do pesado encargo. Abandonou a cidade de Kandahar, que havia sido fundada por seu pai e se tinha, em poucos anos, tornado uma cidade rica e populosa, e deslocou de novo para Cabul a sede do governo.

Durante o seu reinado as dissensões internas das tribos, que haviam sido reprimidas pela mão firme de Shah Ahmed, foram reavivadas. Em 1793, Timour morreu e Siman sucedeu-lhe. Este príncipe concebeu a ideia de consolidar o poder muçulmano da Índia, e este plano, que poderia ter colocado seriamente em perigo as possessões britânicas, foi considerado tão importante que Sir John Malcolm foi enviado para a fronteira para manter os afegãos sob controlo, no caso de empreenderem qualquer iniciativa, e foram ao mesmo tempo iniciadas negociações com a Pérsia, com cuja assistência os afegãos poderiam ser colocados entre dois fogos. Estas precauções eram, entretanto, desnecessárias; Siman Shah estava mais do que suficientemente ocupado por conspirações e distúrbios internos, e os seus grandes planos foram cortados à nascença. O irmão do rei, Mahmoud, lançou-se sobre Herat com o projecto de erigir um principado independente, mas falhando na sua tentativa fugiu para a Pérsia. Siman Shah fôra ajudado a alcançar o trono pela família Bairukshee, à frente da qual estava Sheir Afras Khan. A nomeação por Siman de um vizir impopular suscitou a raiva dos seus antigos apoiantes, que organizaram uma conspiração que foi descoberta, e Sheir Afras foi executado. Mahmoud foi então chamado pelos conspiradores, Siman foi aprisionado e foram-lhe arrancados os olhos. Em oposição a Mahmoud, que era apoiado pelos dooranees, Shah Soojah foi apresentado pelos Ghilgies e ocupou o trono por algum tempo; mas foi finalmente derrotado, principalmente pela traição dos seus próprios apoiantes, e foi forçado a refugiar-se entre os sikhs. [6 ]

Em 1809, Napoleão enviou o general Gardane à Pérsia na esperança de induzir o xá [Fath Ali] a invadir a Índia, e o governo indiano enviou um representante [Mountstuart Elphinstone] à corte do xá Soojah para criar uma oposição à Pérsia. Nesta época, Runjeet Singh cresceu em poder e fama. Era um chefe sikh e, graças ao seu génio, tornou o seu país independente dos afegãos e ergueu um reino no Punjab, granjeando para si o título de Maharajah (rajá-chefe) e o respeito do governo anglo-indiano. O usurpador Mahmoud, entretanto, não estava destinado a desfrutar do seu triunfo por muito tempo. Futteh Khan, o seu vizir, que alternadamente flutuara entre Mahmoud e Shah Soojah, conforme a ambição ou interesse temporário vislumbrado, foi detido pelo filho do rei, Kamran, os olhos arrancados e depois cruelmente executado. A poderosa família do vizir assassinado jurou vingar a sua morte. Recorreram novamente ao fantoche Shah Soojah e Mahmoud foi expulso. Como Shah Soojah provocara queixas, entretanto, foi depois deposto, e outro irmão coroado em seu lugar. Mahmoud fugiu para Herat, que manteve na sua posse e em 1829, com a sua morte, o seu filho Kamran sucedeu-lhe no governo daquele distrito. A família Bairukshee, tendo agora alcançado o poder principal, dividiu o território entre os seus membros, mas seguindo o uso nacional entrou em disputas, e apenas se uniam na presença de um inimigo comum. Um dos irmãos, Mohammed Khan, ocupou a cidade de Peshawar, pela qual pagava tributo a Runjeet Singh; outro assumiu Ghuznee; um terceiro Kandahar; enquanto em Cabul dominava Dost Mohammed, o mais poderoso da família.

O capitão Alexander Burnes foi enviado como embaixador a este príncipe em 1835, quando a Rússia e a Inglaterra intrigavam uns contra os outros na Pérsia e na Ásia Central. Ofereceu uma aliança que o Dost estava mais do que ansioso em aceitar; mas o governo anglo-indiano exigia dele tudo, embora não oferecesse absolutamente nada em troca. Nesse ínterim, em 1838, os persas, com ajuda e conselho russo, sitiaram Herat, a chave para o Afeganistão e a Índia [7 ]; um agente persa e russo chegou a Cabul, e o Dost, face à constante recusa de qualquer compromisso positivo por parte dos britânicos foi, finalmente, efectivamente compelido a receber propostas das outras partes. Burnes foi-se embora, e Lord Auckland, então governador-geral da Índia, influenciado pelo seu secretário W. McNaghten, decidiu punir Dost Mohammed pelo que ele próprio o obrigara a fazer. Resolveu destroná-lo e instalar no seu lugar Shah Soojah, agora um pensionista do governo indiano. Foi concluído um tratado com Shah Soojah e com os Sikhs; o xá começou a reunir um exército, pago e comandado pelos britânicos, e uma força anglo-indiana foi concentrada no Sutlej. McNaghten, secundado por Burnes, acompanharia a expedição na qualidade de enviado ao Afeganistão. Nesse ínterim, os persas tinham levantado o cerco de Herat e, portanto, a única razão válida para a interferência no Afeganistão fora removida, mas, ainda assim, em Dezembro de 1838, o exército marchou para Sinde, país que foi coagido à submissão, e ao pagamento de uma contribuição em benefício dos Sikhs e Shah Soojah. [8 ]

20 de Fevereiro de 1839. O exército britânico ultrapassou o Indo. Consistia em cerca de 12.000 homens, com mais de 40.000 ajudantes de acampamento, além dos novos alistados do xá. O Passo de Bolan foi atravessado em Março; começou a ser sentida a falta de provisões e forragem; os camelos caíram às centenas e grande parte da bagagem perdeu-se.

Em 7 de Abril. O exército entrou no Vale de Khojak, atravessou-o sem resistência e, em 25 de Abril, entrou em Kandahar, que os príncipes afegãos, irmãos de Dost Mohammed, haviam abandonado. Após um descanso de dois meses, Sir John Keane, o comandante, avançou com o corpo principal do exército em direção ao norte, deixando uma brigada, comandada por Nott, em Kandahar. Ghuznee, a inexpugnável fortaleza do Afeganistão, foi tomada em 22 de Julho, tendo um desertor trazido informação de que a porta de Cabul era a única que não havia sido emparedada; foi desse modo destruído, e a praça foi então invadida. Após este desastre o exército que Dost Mohammed havia reunido debandou de imediato, e Cabul abriu também as suas portas.

6 de Agosto. Shah Soojah foi devidamente instalado, mas a verdadeira direcção do governo permaneceu nas mãos de McNaghten, que também utilizou o tesouro indiano para pagar todas as despesas de Shah Soojah.

A conquista do Afeganistão parecia concluída, e uma parte considerável das tropas foi feita regressar. Mas os afegãos não estavam de nenhum modo satisfeitos com serem governados pelos Feringhee Kaffirs (infiéis europeus), e durante todo o ano de 1840 e de 1841, a insurreição seguiu-se a insurreição em todo o lado do país. As tropas anglo-indianas tinham de estar em constante movimento. No entanto, McNaghten declarou que este era o estado normal da sociedade afegã e escreveu para casa que tudo ia bem e que o poder de Shah Soojah estava a criar raízes. Foram em vão as advertências de oficiais militares e outros agentes políticos. Dost Mohammed rendera-se aos britânicos em Outubro de 1840 e foi enviado para a Índia; todas as insurreições durante o verão de 41 foram reprimidas com sucesso e, em Outubro, McNaghten, nomeado governador de Bombaim, pretendia partir com outro corpo de tropas para a Índia. Mas então estourou a tempestade.

A ocupação do Afeganistão custou ao tesouro indiano £ 1.250.000 por ano: 16.000 soldados, anglo-indianos e de Shah Soojah, tiveram de ser pagos no Afeganistão; 3.000 outros estavam em Sinde e no Vale de Bolan; os luxos reais de Shah Soojah, os salários dos seus funcionários e todas as despesas da sua corte e governo eram pagos pelo tesouro indiano e, finalmente, os chefes afegãos eram subsidiados, ou melhor, subornados, a partir da mesma fonte, a fim de os manter sossegados. McNaghten foi informado da impossibilidade de prosseguir com este ritmo de despesa. Tentou contenção, mas a única forma possível de a aplicar era cortar as propinas dos chefes. No mesmo dia em que o tentou, os chefes formaram uma conspiração para o extermínio dos britânicos e, portanto, foi o próprio McNaghten o meio de promover a concentração dessas forças insurrecionais, que até então haviam lutado individualmente contra os invasores, e sem unidade ou concertação; embora seja certo também que, por esta altura, o ódio entre os afegãos à dominação britânica havia atingido o ponto mais alto.

Os ingleses em Cabul eram comandados pelo general Elphinstone, um velho obstinado, irresoluto e completamente incapaz, cujas ordens constantemente se contradiziam. As tropas ocupavam uma espécie de acampamento fortificado, que era tão extenso que a guarnição mal dava para guarnecer as muralhas, quanto mais para destacar corpos para atuar no terreno. As obras eram tão imperfeitas que a vala e o parapeito podiam ser ultrapassados a cavalo. Como se isso não bastasse, o acampamento era dominado pelos relevos vizinhos quase dentro do alcance dos mosquetes, e para coroar o absurdo da organização, todas as provisões e abastecimentos médicos estavam em dois fortes destacados a alguma distância do acampamento, além disso separados dele por jardins murados e por outro pequeno forte não ocupado pelos ingleses. A cidadela ou Bala Hissar de Cabul teria oferecido fortes e esplêndidos aquartelamentos de inverno a todo o exército, mas para agradar a Shah Soojah não fora ocupada.

2 de Novembro de 1841, a insurreição estalou. A casa de Alexander Burnes, na cidade, foi atacada e ele próprio assassinado. O general britânico nada fez e a insurreição fortaleceu-se com a impunidade. Elphinstone, totalmente desamparado, à mercê de todo tipo de conselhos contraditórios, rapidamente meteu tudo naquela confusão que Napoleão [Bonaparte] descrevia com as três palavras, ordre, contre-ordre, disordre. O Bala Hissar estava, mesmo então, desocupado. Foram enviadas algumas companhias contra os milhares de insurgentes e, claro, foram derrotadas. Isto encorajou ainda mais os afegãos.

3 de Novembro, os fortes próximos do acampamento foram ocupados. No dia 9, o forte do comissariado (guarnecido por apenas 80 homens) foi tomado pelos afegãos, e os britânicos foram assim reduzidos à fome. No dia 5, Elphinstone já falava em procurar uma passagem livre para fora do país. Na verdade, em meados de Novembro, a sua irresolução e incapacidade haviam desmoralizado tanto as tropas que nem os europeus nem os Sipaios [ 9 ] estavam já em condições de enfrentar os afegãos em campo aberto. Começaram então as negociações. Enquanto elas decorriam, McNaghten foi assassinado numa conferência com chefes afegãos. A neve começou a cobrir o terreno, as provisões eram escassas. Por fim, 1º de Janeiro, foi concluída uma capitulação. Todo o dinheiro, £ 190.000, seria entregue aos afegãos, e seriam assinadas créditos de mais £ 140.000. Toda a artilharia e munições, excepto 6 canhões de seis libras e 3 canhões de montanha, deveria ficar. Todo o Afeganistão deveria ser evacuado. Os chefes, por outro lado, prometiam um salvo-conduto, provisões e gado para transporte de bagagem.

5 de Janeiro, os britânicos marcharam embora, 4.500 combatentes e 12.000 auxiliares de campo. Uma marcha foi suficiente para dissolver o último resquício de ordem e misturar soldados e auxiliares de campo numa confusão desesperante, tornando impossível qualquer resistência. O frio, a neve e a falta de provisões agiram como na retirada de Napoleão de Moscou [em 1812]. Mas, em vez de cossacos mantendo uma distância respeitosa, os britânicos foram perseguidos por enfurecidos atiradores afegãos, armados com espingardas de pederneira de longo alcance, ocupando todas as posições dominantes. Os chefes que tinham assinado a capitulação não podiam nem queriam conter as tribos das montanhas. O Passo de Koord-Kabul tornou-se o túmulo de quase todo o exército, e o pequeno remanescente, menos de 200 europeus, caiu na entrada da passagem de Jugduluk. Apenas um homem, Dr. Brydon, chegou a Jalalabad para contar a história. Muitos oficiais, contudo, haviam sido capturados pelos afegãos e mantidos em cativeiro, Jalalabad foi tomada pela brigada de Sale. Foi-lhe exigida a capitulação, mas recusou-se a evacuar a cidade, e o mesmo fez Nott em Kandahar. Ghuznee havia caído; não havia um único homem no local que entendesse fosse o que fosse sobre artilharia, e os Sipaios da guarnição haviam sucumbido ao clima.

Entretanto, as autoridades britânicas na fronteira, às primeiras notícias do desastre de Cabul, tinham concentrado em Peshawar as tropas destinadas à rendição dos regimentos no Afeganistão. Mas faltava transporte e os Sipaios adoeciam em grande número. O general Pollock assumiu o comando em Fevereiro e, no final de Março de 1842, recebeu mais reforços. Forçou então o Passo de Khyber e avançou para socorrer Sale em Jalalabad; aqui, Sale havia alguns dias antes derrotado completamente a investida do exército afegão. Lord Ellenborough, agora governador-geral da Índia, ordenou que as tropas recuassem; mas tanto Nott como Pollock encontraram uma boa desculpa na falta de transporte. Por fim, no início de Julho, a opinião pública na Índia forçou Lord Ellenborough a fazer alguma coisa pela recuperação da honra nacional e do prestígio do exército britânico; consequentemente, autorizou um avanço sobre Cabul, tanto a partir de Kandahar como de Jalalabad.

Por altura de meados de Agosto, Pollock e Nott haviam chegado a um entendimento a respeito das acções a empreender e, em 20 de Agosto, Pollock avançou para Cabul, chegou a Gundamuck e derrotou um corpo de afegãos no dia 23, tomou o Passo de Jugduluk em 8 de Setembro, derrotou a força conjunta do inimigo no dia 13 em Tezeen, e no dia 15 acampou junto às muralhas de Cabul. Entretanto, Nott tinha evacuado Kandahar em 7 de Agosto e marchou com todas as suas forças em direcção a Ghuznee. Após alguns combates menores, derrotou um grande corpo de afegãos, a 30 de Agosto tomou posse de Ghuznee, que havia sido abandonada pelo inimigo, a 6 de Setembro, destruiu as obras de defesa e a cidade, derrotou novamente os afegãos na forte posição de Alydan e, em 17 de Setembro, chegou próximo de Cabul, onde Pollock estabeleceu de imediato comunicação com ele. Shah Soojah havia, muito antes, sido assassinado por alguns dos chefes, e desde então nenhum governo regular existira no Afeganistão; nominalmente era rei Futteh Jung, seu filho. Pollock despachou um corpo de cavalaria em perseguição dos prisioneiros de Cabul, mas estes tinham conseguido subornar a sua guarda e fizeram-lhe frente no caminho. Como vingança foi destruído o bazar de Cabul, ocasião em que os soldados saquearam parte da cidade e massacraram muitos habitantes.

12 de Outubro, os britânicos deixaram Cabul e marcharam para a Índia via Jalalabad e Peshawar. Futteh Jung, desesperado perante a sua posição, seguiu-os. Dost Mohammed foi libertado do cativeiro e regressou ao seu reino. Assim terminou a tentativa dos britânicos de instalar no Afeganistão um príncipe fabricado por eles.

Notas:

1 Que Engels queria escrever um artigo sobre o Afeganistão (com ênfase na guerra anglo-afegã de 1838-42) é evidenciado pelo facto de incluir este tópico na lista provisória de artigos da The New American Cyclopaedia na sua carta a Marx de 28 de Maio de 1857. Em 11 de Julho de 1857, porém, Engels informou Marx que o artigo não estaria pronto em 14 de Julho, conforme combinado. Trabalhar nele demorara aparentemente mais do que o esperado. Marx recebeu-o em 11 de Agosto e, como pode ser visto na anotação no seu caderno nesta data, enviou-o para Nova York. Numa carta a Marx de 2 de Setembro de 1857, Charles Dana acusou o recebimento de “Invasão do Afeganistão”. Quando trabalhou neste artigo, Engels usou a History of the War in Afghanistan Vols. I-II, Londres, 1851, de J. W. Kaye (v. este volume, pp. 379-90).

2 Engels usa o termo “clã”, muito difundido na Europa Ocidental, para designar heli (grupos tribais) em que as tribos afegãs se dividiam.

3 Soonees (sunitas) e Sheeahs (xiitas) – membros das duas principais seitas muçulmanas que surgiram no século VII como resultado de conflitos entre os sucessores de Maomé, fundador do Islão.

4 Os Moguls – invasores de ascendência turca, que vieram para a Índia da zona da Ásia Central no início do século XVI e em 1526 fundaram o Império dos Grandes Moguls (em homenagem à dinastia governante do Império) no norte da Índia. Os contemporâneos consideravam-nos descendentes directos dos guerreiros mongóis de Gengis Khan, daí o nome “Moguls”. Em meados do século XVII, o Império Mogul incluía a maior parte da Índia e parte do Afeganistão. Mais tarde, porém, o Império começou a declinar devido a rebeliões camponesas, à crescente resistência do povo indiano aos conquistadores maometanos e às crescentes tendências separatistas. Na primeira metade do século XVIII, o Império dos Grandes Moguls praticamente deixou de existir.

5 Os Maratas (Marathas) – um grupo étnico que vivia no Noroeste de Deccan. Em meados do século XVII, iniciaram uma luta armada contra o Império dos Grandes Moguls, contribuindo assim para o seu declínio. No decorrer da luta os Maratas formaram um estado independente próprio, cujos governantes em breve embarcaram em guerras de conquista. No final do século XVII, o seu estado foi enfraquecido por lutas feudais internas, mas no início do século XVIII uma poderosa confederação de principados Maratas foi formada sob um governador supremo, o Peshwa. Em 1761, sofreram uma derrota esmagadora às mãos dos afegãos na luta pela supremacia na Índia. Enfraquecidos por esta luta e contenda feudal interna, os principados de Marata caíram presa da Companhia das Índias Orientais e foram subjugados por ela em resultado da guerra Anglo-Marata de 1803-05.

6 Os Sikhs – uma seita religiosa que apareceu no Punjab (noroeste da Índia) no século XVI. A sua crença na igualdade tornou-se a ideologia dos camponeses e das camadas urbanas mais baixas na sua luta contra o Império dos Grandes Moguls e os invasores afegãos no final do século XVII. Posteriormente, emergiu entre os sikhs uma aristocracia local e os seus representantes chefiaram os principados sikhs. No início do século XIX, esses principados uniram-se sob Ranjit Singh, cujo estado sikh incluía o Punjab e algumas regiões vizinhas. As autoridades britânicas na Índia provocaram um conflito armado com os sikhs em 1845 e em 1846 conseguiram converter em vassalo o estado sikh. Os sikhs revoltaram-se em 1848, mas foram subjugados em 1849.

7 O cerco de Herat pelos persas durou de Novembro de 1837 a Agosto de 1838. Com a intenção de aumentar a influência da Grã-Bretanha no Afeganistão e de enfraquecer a da Rússia na Pérsia, o governo britânico declarou que as ações do Xá eram hostis à Grã-Bretanha e exigiu que levantasse o cerco. Ameaçando-o com a guerra, enviou um esquadrão ao Golfo Pérsico em 1838. O Xá foi forçado a submeter-se e a aceitar um tratado comercial unilateral com a Grã-Bretanha. Marx descreveu o cerco de Herat no seu artigo “A Guerra contra a Pérsia”.

8 Durante a guerra Anglo-Afegã, a Companhia das Índias Orientais recorreu a ameaças e violência para obter o consentimento dos governantes feudais de Sind, uma região no noroeste da Índia (agora no Paquistão) fronteiriça com o Afeganistão, para a passagem de tropas britânicas através do seu território. Aproveitando-se disso, os britânicos exigiram em 1843 que os príncipes feudais locais se proclamassem vassalos da Companhia. Depois de esmagar as tribos rebeldes Baluchi (nativos do Sind), declararam a anexação de toda a região à Índia britânica.

9 Sipaios – tropas mercenárias do exército britânico-indiano recrutadas entre a população indiana e servindo sob o comando de oficiais britânicos. Foram usadas pelos britânicos para subjugar a Índia e para travar as guerras de conquista contra o Afeganistão, Birmânia e outros estados vizinhos. No entanto, os Sipaios partilhavam o descontentamento geral do povo indiano com o regime colonial e participaram na insurreição de libertação nacional na Índia em 1857-59.

A versão inglesa deste texto encontra-se em: https://www.marxists.org/archive/marx/works/1857/afghanistan/index.htm

As notas são igualmente deste site

https://www.odiario.info/afeganistao/