A criação da Comunidade de Estados Latino-Americanos e das Caraíbas
Carolus Wimmer*
A criação da Comunidade de Estados Latino-Americanos e do Caribe, CELAC, representa tanto uma necessidade histórica, como o produto de um processo de afirmação e de transformação dos povos americanos, na luta constante por uma sociedade mais justa, humana e agradável no nosso continente. Luta que foi uma só, a mesma desde que o primeiro espanhol pisou na nossa terra com o afã explorador e colonizador. A sua criação é um acto de justiça para com os heróis da América Latina, e uma chamada às novas gerações para assumir a bandeira da libertação nacional.
Bolívar sonhou e lutou para a Grande Pátria, integrada no mundo como membro de pleno direito, como um exemplo de justiça e liberdade, progresso e prosperidade. Proclamou em voz alta os sonhos da nossa terra e do nosso povo.
O século começou com a ALBA, a Alternativa Bolivariana para os Povos de Nossa América, que é um renascer histórico da proposta de unidade geopolítica concebida por Simon Bolívar. É, como o seu nome sugere, a aurora de esperança e o despertar da letargia em que nos mergulharam as forças colonialistas e imperialistas.
Bolívar disse em 31 Dezembro de 1813: “é necessário que a força da nossa nação seja capaz de resistir com sucesso aos ataques que possa tentar a ambição europeia; e este colosso de força que deve opor-se aquele outro colosso, não pode formar-se senão pela reunião de toda a América do Sul sob um corpo de nação, para que um só governo possa aplicar os seus vastos recursos para um único objectivo que é o de resistir a todas as tentativas estrangeiras, enquanto no interior, multiplicando a cooperação mútua de tudo, nos levará ao topo do poder e da prosperidade. ”
Prevendo o perigo do imperialismo nascente dos Estados Unidos da América, Bolívar disse em 1824: “Os Estados Unidos parecem destinados pela providência a infestar a América de misérias em nome da liberdade.” E não se limitou apenas a proclamar a necessidade da unidade geopolítica latino-americana, mas com a visão iluminada incluiu os povos da Ásia e África. A necessidade de unidade Tricontinental já estava no seu pensamento.
Este propósito tentou repetir-se uma e outra vez na nossa história. A unidade geopolítica latino-americana e dos povos explorados da África e da Ásia, e o equilíbrio frente às potências coloniais, são categorias fundamentais do pensamento bolivariano de José Martí. Sandino reivindicou plenamente Bolívar no seu documento “O plano de implementação do supremo sonho de Bolívar”, hoje a ALBA começou-o no século XXI e, finalmente, a CELAC parece destinada a torná-lo realidade brevemente, no âmbito da luta pela segunda e definitiva independência da América Latina e no Caribe.
A José Martí, o mais moderno dos combatentes da primeira independência, aconteceu nascer na última colónia espanhola na América, a irmã Cuba, pelo que herdou toda a experiência de lutas anteriores – sucessos e fracassos, virtudes e defeitos, pontos fortes e fracos – que não permitiram na primeira tentativa, realizar os sonhos de unidade geopolítica, justiça, liberdade e prosperidade daqueles que precederam na luta libertadora.
Este é o primeiro objectivo da CELAC, bem como o sentido e a necessidade imperativa de sua existência: a luta contra a barbárie do imperialismo e os resquícios de colonialismo, para servir as mais puras e profundas aspirações dos nossos povos e nossos antepassados. Para isso, há que trabalhar no sentido de desenvolver uma plataforma histórico-cultural capaz de unir num único feixe todas as vontades que aspiram a viver num mundo de justiça, igualdade, fraternidade e de liberdade verdadeiras, só possível com o socialismo.
Bolívar, Morelos, Juárez e Martí, juntamente com muitos outros, lutaram e mostraram o caminho numa espécie de primeira época; mais tarde, uma vanguarda de latino-americanos, Sandino, Mariátegui, Mella, Aníbal Ponce, Artigas, Che e toda uma plêiade digna da nossa terra, seguiu o seu exemplo, deu-nos as pistas e os caminhos que hoje é necessário conhecer e actualizar para garantir que a América Latina desempenha o seu papel no equilíbrio mundial. E como se trata do mundo, não podemos esquecer as contribuições que ao pensamento dos explorados têm trazido indivíduos de outras latitudes, começando com Marx e Engels, e incluindo Rosa Luxemburgo, Vladimir Ilitch Lénine e todos os seres que têm sentido generosidade universal e defendido a justiça.
A unidade da nossa Grande Pátria Latino-americana e Caribe é uma acção urgente, que é de grande importância frente á crise que hoje vive a civilização capitalista representada pelos Estados Unidos e as suas congéneres europeias e asiáticas. Esta crise de civilização, é o prelúdio de uma mudança de fase na história da humanidade, do capitalismo ao socialismo, e que pode causar uma catástrofe de proporções incalculáveis para a humanidade. A situação exige medidas para alcançar uma cultura geral e integral, cuja primeira categoria é a justiça. Que torne possível articular as acções do movimento da classe operária com os movimentos sociais, movimento académico e cultural em geral, com os sectores excluídos e dos povos, que cada vez com mais força, surgem e se desenvolvem.
Esta fase seria o pré-requisito para alcançar a vitória final contra a injustiça e a arbitrariedade impostas pelo grande capital, que ameaçam a própria existência dos seres humanos na terra. Que a cultura, a economia e a política se vistam de humilde, de índio, de explorado, de mulher, de criança, de pobre, de preto … E lutem denodadamente junto a eles para a redenção final de todos os seres humanos.
“Civilização ou Barbárie?
Não é por gosto ou por acaso, e muito menos por respeito pela verdade ou pelo conhecimento que os modernos ideólogos do imperialismo se empenham em proclamar o “fim da história”.
Estaremos nós, os seres humanos, realmente nos últimos anos de nossa viagem por este belo planeta? Infelizmente, há fortes indícios de que esta poderia ser uma terrível realidade em pouco tempo se os seres conscientes desta época não formos capazes de encontrar uma solução urgente para os problemas que temos de enfrentar, entre os quais se destacam, pela sua importância e complexidade, o problema da mudança climática e a ameaça de guerra nuclear. Motivo tremendo, que nos incentiva a levar a bom termo a empresa que estamos a propor e dar-lhe todos os esforços e todas as nossas capacidades.
Vários temas discutidos nos aproximam da necessidade de uma convivência entre a humanidade e a natureza, a trabalhar por uma conduta regida pelo amor entre os homens e pelo respeito à natureza.
É urgente resgatar a memória histórica, que nos permite aprender com as suas lições, aplicar a crítica inteligente e consequente á distorção interpretativa dos factos – que os representantes das ideologias do imperialismo foram introduzindo nas nossas mentes e nas nossas acções – o resgate das omissões, e a valorização adequada dos vários movimentos emancipadores. E não só resgatar a nossa história, que até pode ser necessário reescrever, porque os factos históricos das nossas terras da América Latina, foram distorcidos de uma forma que servem os interesses da dominação imperialista. Neste processo de resgate da nossa memória histórica colectiva, Eduardo Galeano deu-nos um testemunho de grande valor, “As Veias Abertas da América Latina”, livro que, num gesto digno, o presidente Chávez ofereceu ao presidente Obama.
Che estava bem consciente desta realidade e a ela se referiu com perspicácia: “As taras do passado – sublinha Che – são trazidas para o presente na consciência individual e há que fazer um trabalho contínuo para erradicá-las.”
Daniel Estulin no seu livro “A Verdadeira História do Clube Bilderberg” dá-nos novos elementos para orientar a batalha que devemos desenvolver no campo das ideias. Estulin diz: “Manter a maioria da população em constante estado de ansiedade interior funciona, porque as pessoas estão demasiado ocupadas garantindo a sua própria sobrevivência ou lutando por ela, para ajudarem no estabelecimento de uma resposta eficaz. A técnica do clube Bilderberg, usada repetidamente, consiste em submeter a população e levar a sociedade a uma forte situação de ansiedade, angustia e terror, de modo a que as pessoas cheguem a sentir-se tão oprimidas que clamem aos gritos por uma solução, qualquer que ela seja. ”
Estamos numa etapa decisiva da história da espécie humana, uma etapa em que se enfrentam de forma clara revolução e contra-revolução, na qual se puseram definitivamente a descoberto os verdadeiros interesses de classe que têm incentivado as classes que sempre têm ostentado todos os poderes, tanto político como económico, militar, jurídico, cultural, etc., que se têm alimentado, com apetite voraz, da vida, da carne, do sangue e do sofrimento dos explorados da terra.
Se é uma verdade económica o facto de que a moeda corrente capitalista não tem qualquer suporte material, também o é no domínio da justiça, que cada dólar, euro ou libra esterlina, tem uma componente crescente de sofrimento humano, doença, morte, pobreza, fome e quanto de cruel e desumano tem o capitalismo.
Os poderes económicos têm-se coligado e, finalmente, tornaram-se uma espécie de máfia internacional que pretende decidir os acontecimentos que irão ocorrer no mundo, não apenas economicamente, mas em cada uma das áreas da vida que a ambição tem vindo a colocar ao seu serviço.
Fim da OEA e do Pan-americanismo
A Organização dos Estados Americanos (OEA) é a mais antiga organização multilateral na região, e na sua constituição confrontam-se duas correntes ideológicas do século XIX: o pan-americanismo e o latino-americanismo, que são doutrinas com metas e objectivos diferentes.
O latino-americanismo corresponde às ideias e pensamentos do Libertador Simón Bolívar, quando em 1812 a partir do seu Manifesto de Cartagena expressou a necessidade de estabelecer uma única pátria latino-americana, tanto pelo seu tamanho e riqueza como pela sua liberdade política.
O Congresso Anfictiónico do Panamá, em 1826, foi a acção mais expressiva para executar o projecto continental latino-americano. Bolívar procurava a união com o objectivo de assegurar a independência, liberdade, igualdade jurídica e a segurança do auto-desenvolvimento. Tinha uma ideia clara do perigo de relações bilaterais com as potências europeias e com os EUA. É quando pronuncia a sua famosa frase, já mencionada, sobre o “destino” dos os EUA na América Latina.
Após o fracasso, naquele momento, da empresa bolivariana, emergiu na última década do século XIX, devido à conveniência de os EUA em limitar a actividade do Reino Unido na área comercial no continente americano, o conceito pan-americanista, que incluía a América do Norte. Em 1889 e 1890 foi realizada em Washington a “Primeira Conferência Internacional dos Estados Americanos e a Conferência Pan-Americana.
Desde então, o latino-americanismo perdeu posição e os EUA ampliaram o conteúdo da Doutrina Monroe, formulada em 1823 pelo presidente James Monroe, sob o lema: “América para os americanos”, para assumir o controle da política continental.
José Martí, como no seu tempo fez Bolívar, advertiu sobre as intenções dos EUA para aumentar o seu domínio no continente e disse que era a hora para a América Latina declarar a sua segunda independência.
Desde a sua criação em 1948 até agora, a OEA tem correspondido aos propósitos do pan-americanismo contra os ideais do latino-americanismo. Daí a importância histórica e definitiva para os processos de libertação do continente, em moldar a CELAC para enfrentar o intervencionismo pan-americano de maneira eficaz.
A OEA é o Anticongresso Anfictiónico do Panamá e os políticos progressistas do continente devem estabelecer as tácticas para a transição para uma América Latina sem a OEA. A comunidade de Estados da América Latina e Caraíbas, CELAC, é chamada para acabar com a subordinação ao imperialismo através da OEA.
Ameaças e desafios
Os novos processos de integração devem caracterizar-se também pela luta contra a presença militar estrangeira na região. A América Latina está vivendo tempos de expansão da sua soberania e processos de integração, ante os quais os EUA preparam respostas para os deter.
Não podemos subestimar o imperialismo dos EUA, que com certeza recorrerá a métodos antigos e novos, como a intervenção directa (invasões, golpes, assassinatos políticos) ou indirectamente (regime burguês democrático representativo, meios de comunicação). Não se pode esquecer que o Pan-americanismo, ao contrário do Latino-Americanismo Bolivariano é igual a “Pentagonismo”. Já o vimos na Venezuela, com o golpe fracassado de 2002, na Bolívia em 2008, nas Honduras com o golpe de 2009, na Guatemala em 2009, no Paraguai de 2009, no Equador de 2010. Mas não é só a ameaça dos EUA, são os aliados da NATO ocupando as Malvinas e o Haiti, com bases à disposição em Curaçao, Granada e todas as suas ex-colónias.
É urgente então reforçar as posições anti-imperialistas e os instrumentos de integração regional. A consolidação da Comunidade de Estados Latino- Americanos e Caribe (CEPAL) irá permitir construir um espaço verdadeiramente regional, pela exclusão do seu seio dos Estados Unidos e do Canadá. A Venezuela acolherá em Julho de 2011 a Cimeira da fundação da CELAC, um bloco formado por 33 países. A nascente CELAC deve acabar com a subordinação ao imperialismo nesta parte do mundo.
Nova oportunidade para a emancipação.
Os povos da América Latina estão-se levantando novamente, com rebeldia, com decisão revolucionária, com espírito de unidade e solidariedade. Encarregam-se de ir removendo uma por uma as suas máscaras, pondo a nu intenções exploradoras e destrutivas.
Confrontado com as políticas sociais que garantem a vida, que se desenvolvem rápida e decisivamente na Venezuela, Bolívia, Cuba e muitos outros países do nosso continente, o imperialismo dos EUA constrói mais bases militares, amplia a IV Frota da sua Armada, reforça o seu arsenal de morte, actualiza os manuais de assassinato e tortura, continua as suas ameaças de guerra, o imperialismo britânico envia seus navios de guerra ao largo das ilhas Malvinas e o imperialismo francês reforça as suas ainda colónias nas Caraíbas. O Reino da Holanda serve como um idiota útil para emprestar os seus portos e bases no Caribe para manobras de guerra. Toda a Santa Aliança da NATO se prepara para o contra-ataque.
Os nossos povos têm apenas do seu lado a razão e a vontade de serem livres, soberanos e independentes.
A América Latina e particularmente a Venezuela vivem um momento histórico muito especial, um ponto de viragem histórico muito especial, em que confluem no seu espaço politico social e económico, as condições não apenas subjectivas, mas também objectivas para a geração de uma mudança revolucionária, que começou há dez anos com uma posição maioritariamente patriótica. A própria luta de classes, o golpe fascista, a sabotagem petroleira, o bloqueio económico nos últimos anos da contra-revolução, aceleraram o processo de tomada de decisão: á luta da revolução bolivariana, juntou-se o anti-imperialismo, o anti-capitalismo e procura de uma visão socialista.
Lembramo-nos e juntamos à luta revolucionária a famosa frase de Rosa Luxemburgo: ” Socialismo ou Barbárie “.
Este último pensamento será gerador da unidade real das nossas pátrias americanas, este novo bloco histórico continental, a Comunidade dos países da América Latina e das Caraíbas, cuja criação está prevista para 5 de julho de 2011.
Os impérios sempre tentaram dividir para reinar e fizeram-no na América Latina há 500 anos, apesar das lutas e revoltas populares.
Agora há uma nova oportunidade de emancipação.
E as lutas na primeira década do século XXI mostram que existe uma solução para a dicotomia entre Civilização e Barbárie, através da unidade com solidariedade, cooperação e complementaridade dos povos, e através da construção do socialismo.
N. do T.:
A Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos – CELAC – foi criada na «Cimeira da Unidade da América Latina e do Caribe», realizada na Riviera Maya (México), em Fevereiro de 2010
* Secretário para as Relações Internacionais do Partido Comunista da Venezuela e Presidente do Parlamento Latino-americano
Tradução para Português: Guilherme Coelho.
Fonte: http://www.odiario.info/?p=1874