A construção do Socialismo na Bolívia
III Encontro Civilização ou Barbárie
Marcos Domich*
Homens inteligentes que não cometam erros não há nem pode haver. Inteligente é quem comete erros, mas sabe corrigi-los bem e depressa.
Lenine
Desde o 22 de Janeiro deste ano se colocou em cima da mesa da discussão política a construção do socialismo no nosso país. Os dois mais altos dirigentes do governo e do processo, Evo Morales Ayma e Álvaro García Linera, expuseram de forma cristalina essa perspectiva histórica. Além de ratificarem a linha anticapitalista e anti-imperialista, definiram a superação do capitalismo construindo o socialismo que muitas vezes se fez acompanhar do adjectivo comunitário. Álvaro Garcia encarregou-se de fundamentar teoricamente essa possibilidade, retomando posições marxistas.
Não obstante, para começar a caminhada nessa perspectiva histórica, há que ter em conta muitas premissas tanto de carácter objectivo, como subjectivo. Ao socialismo não se chega unicamente por um acto de vontade. Ao mesmo tempo que é certo que esta vontade, que é uma vontade específica – a vontade das massas trabalhadoras, sobretudo – tem de ser uma vontade adequada às condições objectivas.
O desenvolvimento dos processos sociais, económicos e políticos na Bolívia chegou a um ponto crucial. Esse ponto determina-se como o ponto de inflexão a partir do qual se abrem dois caminhos completamente distintos no seu significado e destino histórico. Um é o caminho da reforma social e o outro da revolução social. A via das reformas, sem dúvida pode melhorar a vida na sociedade, quando se destina a reparar a vida da gente que mais necessita. Mas as reformas não tocam nas bases do sistema social que está na origem das desigualdades sociais e na pauperização da maioria das pessoas, sobretudo dos pobres e explorados. A revolução, por outro lado, destrói as bases do regime antigo criando novas relações sociais de produção e liquidando a propriedade privada dos meios de produção. A revolução social não é senão um modo de transição de uma formação socioeconómica caduca para outra superior. Todavia a revolução, contrariamente a uma visão simplista e apressada, não se constrói da noite para o dia.
Até chegar às metas do que poderíamos denominar uma sociedade basicamente socialista, há um processo relativamente comprido, denominado de transição, que vai da velha sociedade caduca e injusta até à nova mais justa, equitativa e livre. A essência do período de transição é a execução das tarefas no campo da economia, fortalecendo as formas sociais de propriedade dos meios de produção e a adequação de essa economia a um novo regime político-jurídico. É um processo contínuo, de mudanças democráticas e revolucionárias que corresponde ao que os clássicos formularam no conceito de revolução permanente ou ininterrupta.
A revolução permanente, como a conceberam Marx e Engels e não em interpretações distorcidas, radica, em suas próprias palavras, é aquela em que: “… os nossos interesses e a nossa tarefa consiste em fazer a revolução ininterruptamente até que as classes – mais ou menos – dominantes sejam afastadas do poder; até que o proletariado conquiste o poder estatal.” Esta formulação atesta o dito: não é um processo rápido e a sua duração é difícil de prever. O que fica claro, aqui, é que se necessitará de um longo processo de educação das massas para manter o seu espírito revolucionário e o fortalecimento e alargamento do sector da propriedade social dos meios de produção. Em suma, manter o vigor da disposição de construir a nova ordem, vencendo o capitalismo na produção dos bens materiais e na forja de uma mente que supere os desequilíbrios do individualismo capitalista.
A primeira ruptura na etapa de transição do poder político do Estado, das mãos opressoras de antes, para as mãos emancipadoras do presente. Esta é a fase política da revolução. A fase social propriamente dita, consiste na mudança do sistema de propriedade dos meios de produção e, sobre esta base, o estabelecimento de novas relações de produção. Dito em outros termos, significa suprimir as causas da exploração do homem pelo homem.
A causa principal da exploração do homem é que os meios de produção (terra, instrumentos, máquinas, instalações, etc.) estão nas mãos dos outros homens. Enquanto uns os possuem outros não têm senão a sua força de trabalho (manual ou intelectual). Não é pura retórica o dito no Manifesto Comunista: os expropriados, os trabalhadores, não têm outra coisa a perder que não as suas correntes.
O poder económico gera poder político e é a propriedade dos meios de produção que outorga esse poder que, em princípio, pressupõe o poder de explorar o trabalho alheio. Implica também muitos outros efeitos; sobre esse poder económico surge toda uma estrutura que, passando pelo poder político, a formação jurídica, a textura moral social e individual, chega ao ideológico, ao psicológico, à esfera total da consciência social.
Em resumo, pode dizer-se que a relação de propriedade com os meios de produção imprime o seu selo até naquele espaço tão sublimado como o dos sentimentos e afectos e naquele que se conhece como a simbólica social; engendra toda uma afectividade de proprietário ou proprietarista. Na sociedade humana e sobretudo na dividida em classes, este afecto engendra a paixão que explica desde a ambição pela pequena posse de alguma propriedade até à busca de uma grande fortuna. Atribui-se ao sacerdote guerrilheiro colombiano Camilo Torres uma afirmação que explica a força deste afecto: “o rico, entre perder a vida ou a carteira, prefere perder a vida”.
Em redor do assunto da propriedade está o cerne das discussões e da confrontação na sociedade boliviana nestes dias. As classes e diversos sectores sociais e as nacionalidades e etnias, com uma ou outra simbologia, movem-se em torno da propriedade em geral, mas em particular em torno da propriedade dos meios de produção. Na sociedade capitalista, inclusive em âmbitos em que se pode imaginar que não há preconceitos ou temores sobre o seu destino, não deixam de se manifestar receios e dúvidas. Vivem dependentes de que não os despojem. É que até nos espaços de menor preconceito se desconhece que, no mais radical dos processos revolucionários, houve (e há) uma diferença entre a propriedade pessoal – ferramentas de trabalho pessoais; a casa e o carro (se o têm) e até a terra familiar ou particular – e a propriedade dos meios de produção, no sentido estritamente capitalista do termo.
Os receios dos menos preconceituosos, nos pouco informados politicamente, convertem-se em atormentadas predisposições e certezas de ameaças. Os meios de comunicação se encarregam de agigantá-los e gerar ondas de rumores que acabam por criar, pelo menos, uma oposição passiva contra o governo.
Não vamos examinar em detalhe os elementos que manobra e com os quais agita, a oposição das direitas, em “defesa da propriedade”. Só referimos alguns dos seus slogans: “Vão tirar as casas!”, “Vai tudo passar para o Estado!”, “Não haverá mais empresas privadas”, “Não haverá mais escolas nem universidades privadas!”, ”Vão encerrar os consultórios privados!”… “e as farmácias” … “o Estado é um mau administrador”, “a burocracia engole tudo”, “cresce a corrupção”, e assim até ao infinito.
Com formas completamente distintas, a extrema-esquerda radical tem os seus próprios slogans que, no fundo, levam a água ao mesmo moinho desestabilizador e reforçam os temores dos incautos que acreditam que de facto esses slogans podem concretizar-se. Os incautos, muitos e variados, não diferenciam o carácter deste governo e a realidade da extrema-esquerda. Esta lança apreciações e consignas da seguinte natureza: “este é um governo neoliberal”, “a nacionalização realizada é uma farsa”, “deve confiscar-se todos os bens aos ricos”, e assim por diante.
As disputas com as direitas e com as facções esquerdistas e a infinita batalha com os meios dominados pelo conservadorismo e as transnacionais da comunicação, se bem que têm importância, não são tão relevantes como as diferenças no seio do próprio governo e nos sectores sociais que se reclamam partidários da mudança. Há uma compreensão muito diversa sobre o assunto da essência e do alcance do tema da propriedade privada, sobretudo da dos meios de produção. Óbvio que esta falta de clareza cria confusão e impede uma concretização fluida das acções governamentais.
No governo, e isto estende-se ao partido governante, existem três correntes bastante distintas entre si; alguns analistas contabilizam até sete. Não entraremos em detalhe acerca da corrente que consideramos revolucionária e de opção nitidamente socialista. Esta corrente, geralmente, de inspiração marxista e marxista-leninista não é homogénea e não é a mais numerosa.
Outra corrente é a que podemos associar a uma concepção social-democrata e que manobra, precisamente, várias alavancas da economia e das finanças do país. Os seus partidários são muito cautelosos no que respeita às transformações verdadeiramente importantes na base económica. Tem-se a impressão que alguns deles prefeririam que as coisas, nesta matéria tão espinhosa, ficassem como estão. Têm um pânico em transtornar a economia ao tentar transformações estruturais. Sua acção económica baseia-se na protecção das suas reservas internacionais, nas exportações, antes de mais de matérias-primas; na poupança de despesa na administração estatal. Os preços altos das matérias-primas e a cotação estável da moeda norte-americana, serviu-lhes de confirmação do acerto da sua gestão económica. Igualmente podem gabar-se do notável aumento das reservas internacionais, de um crescimento positivo do PIB (com uma média de 5% durante os últimos 5 anos), do aumento da riqueza nacional, a diminuição dos índices de pobreza, particularmente rural; da estabilidade relativa dos preços ao consumidor.
A corrente mais caudalosa – que pode ser identificada e englobada, na generalidade, no indigenismo, sendo mais extensa e variada que a anterior – defende a expansão da propriedade, de toda a propriedade, incluindo a dos meios de produção, sempre e quando levem um selo indígena. Em alguns casos, este propósito manifestou-se na reivindicação imperativa de determinadas áreas de trabalho e de onde se cruzou com a presença de trabalhadores de outro sector social. Concretamente, algumas comunidades camponesas tentaram deslocar trabalhadores mineiros, em particular cooperativistas, de algumas minas. Fazem-no sobre o princípio de “terra-território” ou propriedade ancestral que compreende não só a superfície mas sim toda a riqueza que se pode encontrar no subsolo. Apoiam-se também numa interpretação ampla da nova Constituição Política do Estado. Esta estabelece a obrigatoriedade da consulta para a exploração de recursos que se encontrem em áreas que pertencem a povos originários (art. 316 inc. 1). Porém, neste caso, os trabalhos realizavam-se em conformidade com as antigas concessões entregues, habitualmente, a mineiros originários, com base nas disposições actuais. Por último, não têm faltado, nos sectores do indigenismo radical que, felizmente, estão fora do governo, posturas mais intransigentes como o direito, por exemplo, a negociar directamente a exploração de recursos naturais com empresas estrangeiras.
Esta política indigenista vem envolta com um conjunto de conceitos que, no melhor dos casos, não estão contra a perspectiva de um desenvolvimento em transição para um sistema socialista, mas é evidente também que não o tomam em conta como uma possibilidade certa. Mais exacto seria dizer: iludem-no. Substituem-no por uma visão idílica do trabalho, por agora impraticável. Transformam o desejável em utopia.
A concepção indigenista tem alguns pilares sobre os quais assenta e, em geral, estão divididos por todos os grupos que se reclamam originários puros. Não é objectivo desta apresentação analisar algo que é difícil resumir neste espaço. Haverá tempo para cerrar o dente neste problemático assunto. Mais assinalamos o que mais se adormece e é precisamente o mais necessário: a convergência e a unidade de todas as forças populares e de trabalhadores, na tarefa de afiançar e avançar o processo de mudança. A pedra angular das suas posições é de negação de todo o teórico ou instrumental-orgânico que, de alguma forma, provenha da Europa ou, de forma mais lata, do “ocidente”. Subtilmente assentaram-se ideias que não nasceram da criação teórica própria. Na realidade são ideias importadas ou introduzidas sobretudo por ONG’s.
Entre elas estão, por exemplo, o apartidarismo que se converteu em antipartidarismo generalizado e sem o menor objectivo de distinguir entre si quaisquer partidos políticos. A palavra de ordem nunca foi sempre lutar contra a “partidocracia”, colocando no mesmo saco todos os partidos. Desde essa posição não só negam a necessidade de partidos, sejam de esquerda, mas até dos sindicatos. Estes últimos, até contra a tradição de mais de meio século de organizações de trabalhadores agrícolas em sindicatos agrícolas, filiados na Central Obrera Boliviana. Alegam que tanto os partidos como os sindicatos são de “origem europeia”. É a primeira evidência do esquecimento ou da recusa do enfoque classista, pois, os partidos políticos representam, quase invariavelmente, os interesses das classes sociais e os sindicatos igualmente, mas de maneira mais específica, promovem os interesses concretos dos assalariados.
Começou a exaltar-se, em substituição dos partidos e dos sindicatos, as organizações sociais, categoria, obviamente, muito ampla. Nunca se negou a necessidade de trabalhar com elas. Assim se convergem na luta, mas é necessário dotá-las de uma organicidade mínima e sobretudo manter a tensão sobre a base de um programa com maior alcance histórico. Estamos de acordo com a necessidade de levar a fundo a origem destas correntes: “Com o falso pressuposto e o argumento enganoso de que os relatos pós-modernos e as metafísicas académicas pós-estruturalistas nascem… do solo indígena (?) e brotam… das culturas originárias (?) uma vez mais, como já ocorrera (antes) (…) se terminava adoptando como próprio um discurso teórico forjado exclusivamente a partir de uma experiência política distante, alheia: a de aquela geração europeia derrotada em 1968, desiludida durante toda a década de 70 e finalmente incorporada no sistema durante os anos 80”.
Vale a pena recordar algumas categorias na sua escala de prioridades. Para o indigenismo fortemente caracterizado como tal, a natureza e sobretudo a pachamama (mãe-terra) é mais importante que o homem. Este, ao fim e ao cabo, é um filho, mais um produto da terra. Concepção distinta aquela que defendemos: é a evolução social, a vida em sociedade, o trabalho, o que cria o homem social. Isto é o que o diferencia dos animais, inclusive daqueles que se encontrem no mais elevado nível da escala zoológica, a que pertencemos.
Num importante encontro (Cimeira sobre a Mudança Climática em Cochabamba, em Maio passado) – que teve muitos aspectos positivos e mobilizadores em defesa do meio ambiente e na condenação do capitalismo e a sua responsabilidade na mudança climática – o representante boliviano chegou a defender que os originários “vão mais além do capitalismo e do socialismo, já que estes eram igualmente predadores”. Não demonstrou um só dado que avalize esta comparação do socialismo ao capitalismo, mas a frase foi lançada e ali ficou como expoente de uma posição com pretensões de colocar-se acima do socialismo, particularmente do socialismo marxista.
É difícil sintetizar o conjunto de conceitos que desferem os teóricos da indigenidade que sem dizê-lo directamente, pretendem que a sua concepção de vida, do mundo e do homem, supera o que define o socialismo e muito particularmente o socialismo científico. Elegemos a apresentação aqui de um livro que refere a concepção de suma qamaña, como um resumo que nos dá uma ideia do emaranhado discursivo da “cosmovisão andina”: “A República da Bolívia não conseguiu constituir-se em Estado-nação no espaço-tempo da modernidade. E eis que a modernidade cessou e com ela a forma Estado-nação, o modo industrial de produzir, a visão mecanicista, atomista e redutora de interagir com a realidade. O próprio conceito de realidade se relativizou e tornou-se probabilístico e quântico. Portanto os mitos de Desenvolvimento e do Progresso também chegaram ao seu fim. Nesta transição de época, não obstante, coexistem revoltas, as inércias fantasmagóricas do passado e as virtudes, não reconhecidas como tais, do mundo que amanhece” E conclui: “É de vida ou morte que os bolivianos, na Assembleia Constituinte deram um passo adiante como vanguarda política da humanidade, dando-nos uma constituição que seja capaz de traduzir politicamente o novo paradigma científico técnico e a cosmovisão das Nações indígenas e originárias”.
Um dos traços centrais desta concepção é opor-se aos conceitos, definidos como exclusivamente ocidentais, de desenvolvimento e industrialização. Em algum outro momento Medina define que o modelo bíblico do Éden e da visão aristotélica da “Boa vida na cidade” separam, ambos, o homem e a natureza e conclui quase de modo polpotiano: “Não é a Cidade, mas a Chacra; não é a separação mas a simbiose com a natureza, o espaço-tempo da qualidade de vida”.
Como um resultado directo desta concepção, que pretende negar a ciência – e no fundo não está ganha para as perspectivas revolucionárias do processo de mudança – observa-se, na actual conjuntura, um risco de paralisação da actividade revolucionária das organizações sociais, de regresso às posições dos objectivos concretos, limitados, sectoriais, e do abandono de algo que caracterizou a resistência ao neoliberalismo: a defesa comprometida e prioritária dos interesses à escala nacional. É sem dúvida um processo de fetichização (ainda não insuperável), por trás do simbolismo andino, de linguagem, de ritos. A situação revolucionária que se concretizou em Outubro de 2003 é impensável sem a participação das organizações sociais. É necessário, pois, voltar a activar a efervescência revolucionária de tempos não muito distantes.
Não é a intenção polemizar agora nem com a social-democracia nem com o indigenismo, mas sublinhar como estas correntes podem desviar a atenção dos temas vitais, dos objectivos centrais do processo para este materialize as transformações que permitirão desabrochar o caminho até uma sociedade superior.
É imprescindível determinar, além do ponto de inflexão, em que nível de avanço do processo de transformação nos encontramos. Aprovou-se uma nova Constituição Política do Estado Plurinacional; conquistou-se uma sólida maioria parlamentar pela transformação; conquistou-se 6 em 9 governações; de ter uma presença maioritária na maioria das assembleias departamentais; de dominar mais de 220 das 312 autarquias que existem no País; de encaminhar-se uma renovação ambiciosa do órgão judicial e, o mais significativo, de ter derrotado politica e operativamente os intentos desestabilizadores e separatistas.
Este nível e simultaneamente ponto de inflexão, desde a nossa visão, assinala que praticamente se completou com êxito a fase política da revolução. O sintoma principal de essa mudança é que as velhas classes dominantes e exploradoras foram retiradas das principais estruturas de dominação política. Mas esta afirmação tem de ser relativizada. Não é o mesmo ocupar alguns centros altos da estrutura política e depurá-la de toda a herança da hermenêutica funcionária, dos hábitos e costumes da burocracia sobre tudo, e até da sua composição de pessoal. O velho persiste muito tempo na sociedade e o processo de decantação dura muito tempo e requer um trabalho como o de um mecanismo de relojoaria. Muita de esta gente é necessária para o processo de construção da nova ordem e a partir de certa ética e de certa disposição meramente patriótica convertem-se em necessários, ainda que nunca em imprescindíveis.
Tampouco entraremos na análise de outros aspectos do funcionamento da sociedade no processo de mudança. Em particular daqueles que se referem ao elemento humano, a sua psicologia e orientação ideológica, aos seus hábitos, à sua conduta quotidiana. Nem ao papel nefasto que joga o elemento adicionado à última hora e este processo de mudança; aqueles que saltaram cinicamente para o carro da vitória eleitoral. Nem tão-pouco à ampla capa não só de oportunistas políticos, de aqueles, até piores, em só pensam no seu benefício pessoal, não só ilícito como muitas vezes atinge proporções escandalosas. Quando se pensa neste conjunto de detalhes vemos quão distantes estamos do aparecimento do homem novo, não só individual, mas como sujeito colectivo.
Miguel Urbano abordou este tema do homem construtor do socialismo levantando profundas interrogações. Inferimos do seu trabalho que o que primeiro há a despejar são as ideias românticas e apressadas acerca do homem novo. Sua formação, como tal, exige muito tempo e sobretudo implica aquele ideal das sociedades socialistas avançadas: o paulatino desaparecimento das diferenças de classe. Chegar ao sonho da igualdade – uma das aspirações socialistas que se menciona pouco – se a intui como alta e difícil de alcançar, a partir do estado da pessoa actual e a partir sobretudo da sua consciência.
A observação, de Urbano, acerca de que passada a época gloriosa e romântica dos momentos estelares de uma revolução, as gerações que a conhecem pela história e às vezes a conhecem mal, não actuam como o prescreveria a sua pertença a uma sociedade em que vai desaparecendo a exploração do homem pelo homem e, objectivamente, se vive melhor que na sociedade capitalista, é difícil de responder. Atrevemo-nos a pensar que uma das alavancas para a alcançar é uma crescente democracia e a crescente participação pessoal no trabalho e nas decisões colectivas. Isso levará à forja quotidiana do homem novo, fenómeno que não se dá da noite para o dia e que tem de entender, por sua vez, que no próprio desenvolvimento vivencial, cultural, etário e biológico da personalidade em permanente dinâmica e mudança.
Para finalizar o caso boliviano, um aspecto que merece uma análise detalhada é a correlação e o estado das forças políticas. Na direita clássica e na neo-direita, sucedânea da neo-esquerda dos anos 70, houve grandes remodelações. Provocaram o virtual desaparecimento dos partidos, terríveis cisões e em geral o derrube do conjunto das suas ideias neo-liberais. Sobre isto, repetimos o que disse em seu tempo Almaraz: possuem “ideias (tão escassas) que cabiam numa casca de noz”. Porém o importante é examinar cuidadosamente os seus reagrupamentos e sobretudo as suas novas poses. Uma dirigente camponesa caricaturava a situação desta maneira: “a direita agora veste-se de ponchos e [ojotas]”.
Trespassando as trincheiras da direita é óbvio que não passamos por alto o que não é uma simples trincheira, mas sim uma fortaleza: a bateria dos meios de comunicação ao seu serviço e que trabalham a toda a força distorcendo a informação, desinformando, semeando estereótipos negativos, avivando preconceitos e incitando a manifestações e acções que deteriorem ou prejudiquem o processo. Infelizmente a resposta do governo e da esquerda é insuficiente e muitas vezes inadequada. Estas duas trincheiras citadas, há que o sublinhar, estão grandemente suportadas por ajudas estrangeiras milionárias. Como nunca se evidenciaram os movimentos de entidades como a USAID que opera através de milhares de tentáculos como as Organizações Não Governamentais.
Completa, na generalidade, a tarefa política chega a parte correspondente à mudança da própria estrutura da sociedade, da sua base. Sem a transformação necessária de esta estrutura, toda a mudança política pode dar em nada. Ainda mais, pode ser sucedida por um processo contra-revolucionário. A experiência internacional nesta matéria é muito amarga para os trabalhadores, para os povos que a sofreram. É sobre esta questão da proposta económica que deve haver a maior clareza, mais exactamente a maior lucidez de consciência política.
Nesta matéria não cabem as ambiguidades nem a substituição dos objectivos nem a mudança de uma planificação científica por ideias utópicas. O desenvolvimento nacional soberano, integrado na ALBA e em benefício dos trabalhadores e do povo boliviano é a meta inequívoca, o objectivo invariável do processo de mudança, se queremos converter este numa revolução verdadeira e não numa mera reforma progressista. Efectuar realmente o que chamamos o Resgate da Pátria, rumo ao Socialismo. Obviamente o processo de mudança não nos levará às metas fixadas num período curto. Há que despojar-se de todo o tempo de ilusões, de falsas ideias acerca da construção de uma nova sociedade. Ao socialismo chegaremos, só atravessando – com sabedoria, com flexibilidade, sem dogmatismos nem desvios, contemplando a própria realidade – é difícil, às vezes caminho tortuoso, da transição do capitalismo ao socialismo. Mas antes de mais necessitamos de unidade popular e organização.
*Marcos Domich, Professor da Universidade de La Paz, é amigo e colaborador de odiario.info.