O coronavírus e a propaganda anti-China

imagemFoto: Xinhua/Zhang Long)

por André Ortega e Pedro Marin | Revista Opera

O deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do presidente da República, com seu abrangente conhecimento de intercambista e chapeiro nos EUA, tomou nessa semana a liberdade de nos dar uma aula de história, geopolítica, inteligência e diplomacia pelo Twitter. Disse: “Quem assistiu Chernobyl [sem dúvidas, ele aprendeu tudo o que sabe sobre o tema assistindo à série, já que este era seu meio favorito para se preparar ao cargo de embaixador] vai entender o que ocorreu. Substitua a usina nuclear pelo coronavírus e a ditadura soviética pela chinesa. Mais uma vez uma ditadura preferiu esconder algo grave a expor tendo desgaste, mas que salvaria inúmeras vidas. A culpa é da China e liberdade seria a solução.”

O deputado, que poderia ter sido embaixador em Washington, causou uma crise diplomática com seu tweet. A Embaixada da China respondeu: “Lamentavelmente, você é uma pessoa sem visão internacional nem senso comum, sem conhecer a China nem o mundo. Aconselhamos que não corra para ser o porta-voz dos EUA no Brasil, sob a pena de tropeçar feio”, instigando ainda o deputado a dar “uma guinada o mais rapidamente possível, já que a história nos ensina que quem insiste em atacar e humilhar o povo chinês, acaba sempre dando um tiro no seu próprio pé” e dizendo por fim que suas palavras soavam “familiares”, que não deixavam de ser “uma imitação de seus queridos amigos” (dos Estados Unidos) e que o deputado “ao voltar de Miami, contraiu, infelizmente, vírus mental, que está infectando a amizades entre os nossos povos.”

As palavras não “soam familiares” por acaso, nem a dureza da resposta foi imotivada. Não é só a imprensa dos Estados Unidos que tem tentado emplacar o coronavírus como um “vírus chinês” e responsabilizar o país pela doença, mas também o próprio presidente norte-americano, Donald Trump. Curiosamente, foi depois de um reforço nessa campanha antichinesa nos EUA que, no Brasil, liberais e conservadores passaram a atacar a China com veemência. Uma publicação do Movimento Brasil Livre pergunta “Quando a China será responsabilizada pelas doenças que espalha ao mundo?“, indo longe o suficiente para atribuir ao país a responsabilidade pela Peste Negra, que teve seu auge 700 anos atrás. Houve até jornalistas que, na sua paixão incandescente por procurar culpados no outro lado do mundo – talvez porque por aqui o presidente saía às ruas para aplaudir manifestantes e dizia que a pandemia era uma “gripezinha” – declararam abertamente que “a culpa pela pela pandemia do coronavírus é do Partido Comunista da China”. E, para coroar a estupidez, nosso Ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, disse que a reação a embaixada chinesa foi “desproporcional” e pediu que ela se desculpasse com o governo brasileiro – que não foi mencionado nem atacado em sua resposta ao filho do presidente.

A desinformação não é só grave por razões pragmáticas em relação à diplomacia ou ao comércio – a China é o principal parceiro comercial do Brasil, e também o país mais preparado hoje para auxiliar outros países durante a pandemia, incluindo o nosso – nem só pelos perigos evidentes em atrelar um problema dessa gravidade a um povo, como a OMS reconhece (já são vários os casos de pessoas com feições asiáticas, chinesas ou não, que foram atacadas em diversos países, e correntes que apontam o coronavírus como uma “arma biológica” da China parecem ser bastante populares). A desinformação é grave acima de tudo porque toma a forma de uma campanha coordenada por razões geopolíticas e econômicas; um tabuleiro de xadrez informacional de duas potências em meio a uma pandemia, no qual o Brasil se posiciona como linha auxiliar de Trump.

No dia 30 de janeiro, o Secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, chamou o Partido Comunista da China de “ameaça central de nossos tempos”. A posição política de hostilidade contra a República Popular pode não ser exclusividade do governo e transcende divisões entre os partidos dos Estados Unidos, mas a hostilidade de alguns setores assume a forma de um ódio bestial, ultrapassando os interesses da defesa da hegemonia dos Estados Unidos para se apresentar como uma política de mobilização chauvinista.

A Foreign Affairs, revista do think tank mais influente da política externa dos Estados Unidos – o Council of Foreign Relations (CFR) – publicou artigos mais moderados e até críticos aos tons mais conspiracionistas utilizados para atacar a China, mesmo que igualmente preocupados com a projeção exterior dos chineses. A campanha virulenta de demonização dos chineses é articulada pelos elementos mais decadentes e vândalos da política externa dos Estados Unidos, que arrodearam Donald Trump. Estes procuram, como substituição para relações normais, associação direta com incendiários de outros países capazes de fazer ataques temerários contra a China.

O discurso chauvinista serve tanto para incendiar as relações internacionais como para arregimentar forças nacionais em torno dos incendiários, tentando legitimar o governo e mobilizar a população através do medo e do ódio.

A origem do vírus
Uma das formas mais insidiosas de promover o chauvinismo e espalhar a desinformação é com especulações e afirmações inconsequentes sobre a origem do vírus. Nas pesquisas científicas ainda predomina o tom de dúvida sobre de onde veio este vírus. Foi publicado um estudo importante na revista Nature interrogando sobre as origens do coronavírus, e este não tem resposta conclusivas, só a devida construção científica da dúvida. O vírus passa por diversas mutações, inclusive nas transmissões entre humanos, e também por um processo de seleção natural.

Apesar de se discutir a possível origem zoonótica, não é certo como foi a transmissão e de qual animal ele pode ter vindo.

Os agitadores anti-China, no entanto, não estão interessados em expor essas dúvidas e questionamentos, pois sabem que isto não contribui para a mensagem chauvinista que eles querem fundamentar e não contribui para o objetivo de dirigir a frustração para um a figura mística de um culpado.

As posições mais francamente racistas que se espalham nas redes sociais culpam os chineses, transformam os corpos asiáticos em objeto de repulsa e apresentam supostos hábitos chineses como bárbaros e nojentos. No entanto, algumas posições públicas de supostos intelectuais e jornalistas, que dizem que o “Partido Comunista Chinês é o culpado”, também recorrem a distorções quando fazem afirmações sobre as condições sanitárias em mercados chineses sem oferecer contexto real e alegam que não existe segurança alimentar na China.

Um dos textos deste tipo, que vem sendo compartilhado, fala da “falta de condições sanitárias em um mercado de animais silvestres em Wuhan”, o que seria tanto um sinal da falta de segurança alimentar no país como a origem da pandemia.

O Mercado Atacadista de Frutos do Mar de Huanan, em Wuhan, não é um “mercado de animais silvestres”, mas um mercado de alimentos voltados para frutos do mar que entra em uma categoria que ocidentais chamam de “mercado molhado” (wet markets). O mercado tem 50,000 m² e mais de mil locatários, tendo em uma de suas zonas conhecida por vender animais exóticos. É preciso entender melhor o que são esses mercados, antes de comentar.

Antropólogos que trabalharam na pesquisa de doenças transmitidas de animais para seres humanos na China escreveram para o The Conversation um artigo intitulado “Por que fechar os ‘mercados molhados’ chineses pode ser um erro terrível”, questionando as imagens distorcidas e preconceituosas da realidade chinesa:

“Esta imagem [dos mercados, conforme estereótipos da mídia ocidental] é muito falha, não só porque ela se baseia em sensibilidades ocidentais sobre o que é comível e o que não é, e que apresenta uma forma moderna de comércio de comida na China como ‘tradicional’, mas de forma mais prática, porque deturpa a realidade econômica e material desses mercados.”

Os antropólogos explicam que existem vários tipos desses mercados e seus produtos são muito menos “exóticos” do que as representações querem sugerir; e mais, que a maioria dos animais chamados de “selvagens” pela mídia ocidental são criados em cativeiro, como os patos-reais, as cobras e os sapos. Inclusive, apontam que a produção desse tipos pelos camponeses chineses é reflexo de mudanças de mercado nos anos 90, por pressões do mercado que incentivaram os pequenos produtores a escapar da produção industrial de larga escala (que promovia a integração vertical dos pequenos produtores) se movendo para uma produção que é melhor remunerada e atende a pequenos nichos.

A caça é ilegal na China na maioria dos casos, o que também incentivou a criação de certos tipos de animais chamados de “selvagens” ou locais.

Ainda é irônico que muitos dos pequenos produtores chineses tenham saído da produção de porco e galinha por efeito do vírus da doença de Newcastle (vdn), das aves, e o complexo respiratório suíno, respectivamente; os nichos específicos ofereceram uma saída viável e até lucrativa.

Afirmar que o Estado chinês não pratica controles sanitários nestes mercados, ou que lá não existe política sanitária em geral, é espalhar uma mentira. É possível pesquisar medidas de inspeção e controle diversas, incluindo inspeções do Centro Chinês para o Controle e Prevenção de Doenças (conhecido pela sigla em inglês, CCDC), subordinado à Comissão Nacional de Saúde. Uma pesquisa do PhD Christos Lynteris, de posição política um tanto crítica ao estado chinês, registrou controles periódicos nestes mercados, por exemplo.

Existem outros artigos científicos sobre a presença de regulação nesta área, como este artigo sobre sistemas de varejo na China. Em 2002 o governo chinês iniciou um programa de modernização dos “mercados molhados”, para transformá-los em “supermercados de comida”, programa que caminhou devagar devido à resistência dos consumidores, que preferem esse tipo de mercado por várias razões: a possibilidade de barganhar e a ideia de que é possível conseguir comidas mais frescas, dentre outras.

Segundo os autores, “o governo chinês tem tentado ativamente criar um sistema nacional moderno de abastecimento e logística, pois são considerados mais eficientes que o sistema tradicional de mercado”. A mudança é difícil por incluir grandes gastos com infraestrutura e o desafio de realocar os vendedores dentro de uma nova estrutura, com novas práticas.

Os liberais deveriam ser os primeiros a se informar sobre as dinâmicas do mercado chinês e saber que tentativas anteriores de aplicar uma abordagem totalmente proibitiva, de banir os mercados – em 2003 com a SARS e em 2013-14 com a gripe aviária H7N9 – levaram à explosão de um mercado negro incontrolável. Afinal, estamos falando de um tipo de mercado que abastece um grande número de consumidores chineses, em proporções que são maiores em algumas regiões. Em suma, o mercado já é controlado e regulado – diferente do que sugerem alguns.

Isto não quer dizer que medidas repressivas não são adotadas: em 2007, por exemplo, ocorreu uma campanha repressiva contra a venda e o consumo de civetas, conforme relatado pela Reuters.

É por razões como estas que a PhD em biologia e jornalista de ciência Chia-Yi Hou escreveu para o The Hill – jornal do coração de Washington D.C. – um artigo sobre como fechar os mercados pode não ser uma solução para prevenir surtos futuros.

“Pode ser tentador tentar atribuir culpa ou procurar por um conserto conveniente em uma emergência como este novo coronavírus de Wuhan, mas fazê-lo não vai ajudar as dezenas de milhares de pessoas já afetadas”, disse Chia-Yi, que ainda nos lembrou que o mercado de Wuhan pode não ser o lugar onde o vírus se originou.

A rigor, não é definitivamente comprovado que a origem do novo vírus é o mercado de frutos do mar de Wuhan. Um número significante dos primeiros casos – e acima de tudo o primeiro paciente de todos – não possuíam vínculos com o mercado. Do primeiro grupo de pacientes, 13 de 41 não possuíam relação com o mercado.

A revista Science, da Associação Americana para o Avanço da Ciência, divulgou o dado sobre o número de pessoas sem relação com o mercado dizendo que é possível que o lugar não seja a origem da doença. A matéria citou um especialista em infectologia da Universidade de Georgetown, Daniel Lucey, que considera o número de pessoas sem relação com mercado muito alto, isto é, muito considerável: assim, provavelmente as infecções começaram antes desse primeiro grupo de pacientes, pela cidade de Wuhan – entrou no mercado, não saiu do mercado. A matéria também cita o diretor de estudos de genoma de doenças infecciosas do instituto de pesquisa Scripps, Kristian Andersen, que vem analisando as sequências do vírus e considera a hipótese do vírus ter surgido fora do mercado inteiramente plausível.

O vírus pode sim, também, ter saído do contato com animais. Uma hipótese é que a mutação pode ter ocorrido em uma série de contaminações assintomáticas entre seres humanos. Textos que fazem referência a essa possibilidade até podem ser citados por alguém como o “bom liberal”, mas ele prefere dizer, em tom de revelação apocalíptica, que “cientistas já haviam previsto essa possibilidade” como se fosse um aviso ignorado pelos chineses, quando é bem sabido que a circulação diária de animais cria um ambiente propício para amplificação de diversos tipos de vírus. Isto estava colocado no debate público da China – por pessoas como o pesquisador que investigou o surto de SARS em 2003, Zhang Jinshuo, do Instituto de Zoologia da Academia de Ciências Chinesa -, mas a questão não é simples de se resolver.

A possibilidade de aparição de novos vírus é uma coisa óbvia; o que é difícil prever é onde aparecerão, quais serão suas características e efeitos em humanos, quando as mutações ocorrerão e que perigo podem oferecer ou não. Milhares de novos vírus e mutações são descobertos todo ano. Em 2016, por exemplo, um grupo de pesquisadores australianos e chineses descobriu 1,5 mil novos vírus, pesquisando infecções em aranhas e insetos. É possível que algum deles tenha a capacidade de “saltar” para humanos algum dia, mas não é tarefa fácil prevê-lo acertadamente.

O professor Robert G. Webster publicou um artigo no The Lancet em fevereiro de 2004, discutindo os “mercados molhados” como fonte de doenças respiratórias agudas. Ele nos lembra que esse tipo de “mercado de vivos” também existe nos Estados Unidos e que serve como sistema de vigilância, de alerta para novos vírus que podem ameaçar os animais e possivelmente seres humanos. Era esperado que eventualmente surgiria uma mutação de Coronavírus que tivesse uma transmissibilidade real entre seres humanos.

Sobre o debate a respeito do fechamento desses mercados a céu aberto, Webster lembrou que a ausência de mercados molhados de carne vermelha em Hong Kong – o que inclui as carnes de caça – não impediu que surtos de SARS tenham aparecido na cidade depois disso. O pesquisador afirma que fechar os mercados em um país, sem fechar no resto da Ásia, teria pouco impacto.

Podemos dizer que em 2004 já se sabia que o coronavírus, sendo um vírus de RNA, tinha capacidade para mutação e recombinação – portanto, “a próxima emergência do SARS CoV pode adquirir transmissibilidade real em seres humanos”, disse Webster. Além disso, um dos riscos era o vírus escapar de amostras mal manuseadas em laboratórios com baixa biossegurança. Fazer como um dos textos de propaganda e se referir a um artigo de 2007 dizendo que este “já alertava que havia reservatório de coronavírus em morcegos” como um aviso profético, além de ser trivial, pode ser desinformador. Dá um tom de jornalismo investigativo e denuncista incompatível com a realidade.

Estes textos de propaganda, quando fazem uma série denunciando o governo chinês, frequentemente transformam o trivial em algo tenebroso, assustador, a partir da interpretação. Dizem que o governo chinês “minimizou” o risco como se fosse irresponsável e não estivesse acompanhando o posicionamento de cientistas, que eram cuidadosos antes de saltar para conclusões.

Também foi alegado que o governo mandou destruir as amostras do novo corona, em tom sensacionalista, como se o intercâmbio descontrolado de amostras, capaz de causar acidentes ou cair em laboratórios inadequados, não fosse um perigo.

É especialmente desinformador se referir a morcegos quando estes não são uma iguaria em Wuhan, mas foram usados como referência da campanha de difamação da China no início da epidemia, em que imagens feitas em Palau se espalharam como se fossem feitas em Wuhan. Quando ocorreu o surto de Ebola, se especulou que a origem poderia ser um vilarejo que consumia morcegos, mas depois consideraram a possibilidade do contato de uma criança com fezes do animal em um brinquedo.

São diversas as formas pelas quais um vírus pode passar pela chamada deriva antigênica, passando por várias tipos de ser vivo no caminho. A China é um país grande, com uma grande população e com uma larga história de urbanização – a diferença são suas dimensões, pois o surgimento de novos vírus é uma possibilidade em todo mundo. Quanto mais o tempo passa e o vírus viaja, mais ele se transforma.

Já existem até mesmo dúvidas sobre o surgimento do vírus na China: médicos na Lombardia falam de uma “pneumonia estranha” afetando a região antes da crise; ademais, as próprias autoridades chinesas questionam as autoridades dos Estados Unidos sobre a possibilidade de pessoas mortas pelo coronavírus terem inflado a contabilidade das vítimas de influenza, antes da crise.

O agitador chauvinista, mancomunado com as intenções de Bolsonaro, não quer falar disso, ele só quer culpar o governo chinês. O agitador chauvinista não quer fazer questionamentos e ele nunca se escandalizou com a produção de porcos estar possivelmente por trás do surto de H1N1 em 2009, a “gripe suína”, que pode ter chegado a matar até 500 mil pessoas em estimativas altas. Sequer leva a sério sua própria referência ao tráfico de animais silvestres pelo mundo – onde os Estados Unidos aparecem como um dos principais compradores, de um contrabando que muitas vezes sai da China.

É tudo culpa das ditaduras
Larry Rohter – jornalista que ganhou grande notoriedade por ter chamado Lula de cachaceiro – é aplaudido pelos “bons liberais” por um texto na Revista Época que leva o título de “A pandemia tem um culpado: a China”.

O argumento de Rohter guarda alguns temas típicos do discurso liberal: o “autoritarismo chinês” seria caracterizado por secretismo e ineficiência, que estariam por trás do desastre do coronavírus. Ao discutir coronavírus, pintam a imagem da “maligna ditadura chinesa”, como se o estado chinês como um ente que se sobrepõe à sociedade e não tivesse legitimidade: ele é produto da emancipação nacional da China no século XX, e mantém sua legitimidade graças a essa independência, a paz civil, o progresso social e também a mobilização, os mecanismos de contato político.

As pequenas falácias que acusam a “irresponsabilidade” dos chineses serão tratadas no decorrer do texto, mas primeiro precisamos expor seu sentido principal: culpar a China. Apesar de o artigo deixar clara sua intenção de apontar um culpado, ele não percebe o quão ridículo é esse esforço.

Sem pudor, até se associa a Eduardo Bolsonaro dizendo que este disse “verdades” quando fez suas declarações hostis à China. Segundo ele, a postura do governo chinês é que é beligerante, não a de Eduardo Bolsonaro que é provocadora.

Os liberais diagnosticados com chauvinismo fascistoide apresentam aqui um dos seus sintomas iniciais: a negação. Repetiam que o que aconteceu em Wuhan não poderia acontecer em países ocidentais liberais e democráticos, referindo-se a noções como “confiança” e “eficiência” em contraposição ao que seriam limites insuperáveis de “ditaduras”, que são secretivas e movidas pelo interesse em estabilidade; agora que países europeus sofrem com a pandemia, contemplando o colapso do sistema de saúde e possivelmente de velhas instituições, os liberais em negação sentem a necessidade de reafirmar suas críticas contra a “ditadura” atribuindo um culpado.

Rohter às vezes é referido como exemplar, por prestígio. Em um exemplo do que não fazer em uma redação, desviando completamente o assunto e dando uma cambalhota para desmoralizar aqueles que denunciam o racismo contra os chineses, ele diz que “na verdade, se existe racismo, é por parte dos próprios chineses”, que vivem em um país com uma maioria étnica e que não são como “Brasil e Estados Unidos” que ele chama de “geleia geral” de “várias raças, etnias, povos e religiões”. A lógica é muito similar a de um marqueteiro: o autor quer nos convencer, no fundo, que racistas são os chineses, que não são como os Estados Unidos – um elogio da diversidade como fundamento para contribuir ao estereótipo de chineses bárbaros.

Larry Rohter conclui nesse contorcionismo: dizendo que se trata de uma elite “que acha que todo mundo que não é han é inferior” e “brinca com a saúde do resto do mundo”. Para variar, está tentando engrossar um discurso que por semelhança associa a China ao nazismo, restando aos Estados Unidos ser o grande campeão do humanismo, da tolerância e da diversidade. As bandeiras mudam um pouco, mas a função é a mesma: recorre a uma imagem apelativa – a ditadura dos chineses racistas – para mobilizar sentimentos antichineses.

Acusar os chineses de racistas é um tempero marqueteiro da imaginação de Larry Rohter, o que não deixa de ter um tom de hipocrisia. E ela é outro sintoma do liberalismo em crise: liberais acusam que o governo chinês foi irresponsável por ter iniciado a quarentena quatro dias depois do Ano Novo chinês, o que seria “tarde demais” – mas quando o governo chinês adotou as medidas de fechamento em Wuhan, o discurso liberal o atacava dizendo que eram medidas autoritárias, extremas, típicas de um regime autoritário e no limite ineficientes. Por sua vez, o Ocidente estaria livre de tal necessidade por ser mais eficiente e ter sociedades “baseadas na confiança”.

Um exemplo é um artigo do The Washington Post, publicado no dia 27 de janeiro, que caracteriza já no título o fechamento da cidade de Wuhan como “autoritarismo” (China’s coronavirus lock down – brought to you by authoritarianism; O ‘lock down’ contra o coronavírus da China – feito graças ao autoritarismo, em tradução livre). O banimento de viagens é chamado de “controverso” e um acadêmico sênior do think tank Council of Foreign Relations, Yanzhong Huang, chamou as medidas de draconianas e disse que só o governo chinês poderia aplicá-las nessa extensão. Para eles as medidas podiam ser “sinal de resiliência do estado autoritário” e não existiam evidências fortes de que essa abordagem era efetiva. Huang é citado mais de uma vez para criticar as medidas como sem fundamento e que “exageram a resposta emocional, o que tende a exagerar o risco real trazido pelo vírus”.

O próprio Huang, no entanto, divulgou no dia 14 de março, em seu Twitter, uma pesquisa que afirma que, se não fossem as medidas tomadas em Wuhan, já no dia 19 de fevereiro haveriam 744,000 mil casos fora da cidade. Até agora, no dia 21 de março, se acumulam 307 mil casos, entre mortos, curados e infectados em todo o mundo (neste dia, 198 mil e 766 pacientes). A pesquisa foi feita por acadêmicos de várias universidades do mundo.

Assim o agitador chauvinista move suas posições sem mudar seu alvo: a China primeiro estava errada quando tomou uma atitude, depois estava errada por não ter tomado atitude antes. As democracias liberais se recusaram a tomar o mesmo tipo de medida na Itália, na Espanha, na Alemanha, na Suécia, na Inglaterra e nos Estados Unidos – relutaram e em alguns casos até desmoralizaram a possibilidade de uma quarentena, como vem fazendo Bolsonaro no Brasil, que vacila até mesmo para tomar as medidas de mitigação.

Depois de terem anunciado que a China fracassaria, se depararam com a crise devassando as democracias liberais enquanto a China conseguia algum sucesso: a solução agora é fechar os olhos para os fracassos das democracias liberais e jogar a culpa no Partido Comunista da China.

O liberal que faz pose de decente não é tão diferente do conspiracionista que acusa a China de ter criado o vírus deliberadamente. Ele só é mais refinado na hora de manufaturar culpa.

O doutor Li Wenliang
Uma das notícias mais frequentemente repetida em meio à campanha – inclusive em grandes meios ocidentais – diz respeito à história de um médico de Wuhan, Li Wenliang, que publicou em sua conta da rede social chinesa WeChat uma série de informações sobre o novo vírus no dia 30 de dezembro, e que teve de assinar uma reprimenda em uma delegacia de polícia de Wuhan por espalhar boatos.

Em um artigo para a revista Foreign Policy no qual descreve Li como um “herói real da epidemia” e questiona a credibilidade dos dados chineses sobre o vírus, Laurie Garret diz que o caso “revelou o lado mais feio do Partido Comunista da China (PCCh) e seu terrível esforço para reescrever a história de uma epidemia notavelmente fora de controle. Li tratou de casos em dezembro em Wuhan, de onde o surto originou, e que se pareciam com casos de SARS, e disse a colegas no dia 30 de dezembro por meio de uma sala de chat de médicos. Dias depois, pelo assim chamado crime de espalhar boatos, Li e outros sete médicos foram levados à polícia chinesa e forçados a assinar um documento admitindo terem ‘espalhado mentiras’”, diz o texto que também cita “especialistas” que comparam a situação na China a Chernobyl e Li e os médicos ao “homem-tanque” do Massacre na Praça da Paz Celestial.

Mas ao contrário do que sugere a narrativa, Li não era um dissidente tentando espalhar a verdade em meio aos “terríveis esforços” do governo para contê-la. O médico – um oftalmologista, não um infectologista ou um pneumologista – era membro do Partido Comunista da China. E de acordo com o que ele mesmo declarou à CNN, seu objetivo não era que as mensagens fossem públicas. “Eu só queria avisar aos meus amigos da universidade para que tomassem cuidado”, disse. “Quando eu vi elas [as mensagens] circulando online, eu percebi que elas estavam fora do meu controle e que eu provavelmente seria punido”.

No mesmo dia em que Li fez sua publicação, a Comissão Municipal de Saúde de Wuhan emitiu documentos internos para hospitais orientando no combate ao que nessa altura ainda era uma pneumonia desconhecida.

Depois de sua morte no dia 7 de fevereiro, decorrente da infecção por coronavírus, a Comissão Nacional de Supervisão abriu uma investigação para avaliar o caso de Li. De acordo com a Xinhua, “os investigadores sugeriram que as autoridades supervisoras locais examinem a emissão da carta de reprimenda contra Li, que foi inapropriada e não respeitou os procedimentos pertinentes de aplicação da lei. De mesmo modo, insistiram à polícia a revogar a carta e fazer que os responsáveis prestem contas, publicando os resultados de forma oportuna”.

O relatório também avaliou que Li “não pretendeu perturbar a ordem pública publicando mensagens no grupo de WeChat”, mas que as partes dos conteúdos repassados por ele sem verificação, em um momento em que a epidemia ainda não havia sido compreendida, “não correspondiam plenamente com a realidade”. Li Wenliang ainda assim foi homenageado pela Comissão Nacional de Saúde como um dos trabalhadores de saúde que combateram o coronavírus.

A estratégia chinesa: Breve história de uma grande guerra
A cidade de Wuhan, na província de Hubei, é um dos mais importantes polos industriais chineses, e foi o grande foco de infecção do vírus. Mas, em meio à crise do coronavírus, a cidade, além de polo industrial, poderia ter servido ao resto dos países do mundo como um grande laboratório de políticas de combate ao vírus, à qual poderiam olhar do conforto de um belvedere e se preparar para as crises que, mais cedo ou mais tarde, chegariam a seus territórios.

Até agora não se sabe quem foi o paciente zero do vírus na China. A dificuldade em encontrá-lo se dá em parte precisamente porque a doença no país, no momento em que começou a ser transmitida, era desconhecida para todo o mundo, inclusive para os chineses – situação completamente diferente da que a Europa, os EUA e o Brasil enfrentam. O site LiveScience noticia no entanto que o primeiro caso identificado em retrospecto é do dia 17 de novembro, ou seja, 40 dias antes do dia 27 de dezembro, quando a doutora Zhang Jixian, chefe do departamento respiratório do Hospital Provincial de Hubei, informou às autoridades que um novo tipo de coronavírus estava causando a doença. Naquela altura, o número de infectados era de 180 – dado também só conhecido em retrospecto, já que a existência de uma nova doença sequer era conhecida.

Somente três dias depois, no dia 30, o oftalmologista Li Wenliang faz suas tão comentadas postagens no WeChat. Neste mesmo dia, amostras de lavagem broncoalveolar foram coletadas de um paciente “com uma pneumonia de etiologia desconhecida” no Hospital Wuhan Jinyintan, de acordo com um relatório de uma missão da Organização Mundial da Saúde (OMS) no país. No dia seguinte, o escritório da OMS na China foi informado dos casos de uma doença desconhecida. “De 31 de dezembro de 2019 a 3 de janeiro de 2020, um total de 44 casos com pneumonia de etiologia desconhecida foram reportados à OMS pelas autoridades nacionais da China. Durante esse período, o agente causador não foi identificado”, diz um relatório da OMS do dia 21 de janeiro, que ressalta também que o vírus só foi reconhecido como um novo tipo de coronavírus no dia 7, e que no dia 12 o sequenciamento genético do vírus foi compartilhado com outros países, para “uso no desenvolvimento de kits de diagnóstico específicos”.

Segundo Yanzhong Huang, a China possui o maior sistema digital de vigilância e notificação de doenças, que permite aos trabalhadores de base da saúde pública notificar qualquer coisa para as autoridades, mas ele argumenta que o sistema não funcionou dessa vez pela falta de protocolos para lidar com vírus, que não estava na categoria de patógenos conhecidos.

No dia 20 a informação mais importante sobre o vírus foi confirmada: ele era transmissível entre humanos. Três dias depois, o governo chinês já havia estabelecido uma rígida quarentena na cidade de Wuhan, isolando completamente seus 11 milhões de habitantes e impedindo sua a saída. De acordo com a agência de notícias NPR, naquela altura “cada lar podia enviar somente uma pessoa para a rua a cada três dias, para comprar mantimentos, e a temperatura de todos é checada antes de entrarem”. Ao longo dos dias, as restrições tornaram-se cada vez maiores, e foram impostas a outras cidades de Hubei.

O representante da OMS na China, Gauden Galea, declarou que à Reuters que a decisão de isolar as cidades não foi uma recomendação da OMS, mas disse que a decisão era “sem precedentes na história da saúde pública”. Galea disse também que as autoridades deveriam esperar para ver quão efetiva a medida seria, mas disse que o passo “é um indicativo muito importante do compromisso para conter a epidemia na região onde ela está mais concentrada.”

A estratégia chinesa consistia no seguinte mote: “Se Wuhan vencer, Hubei vence. Se Hubei vencer, a China vence”. A política chinesa de supressão completa do foco da infecção, somada a medidas de mobilização em massa de voluntários e funcionários de saúde e construção de hospitais e abertura de novos leitos em tempo recorde, foi vitoriosa – a despeito de ter sido “sem precedentes” até para a OMS. No último dia 19, o país oficialmente zerou a transmissão local do coronavírus. Essa história breve de dimensões homéricas é a história da luta por 81 mil pessoas infectadas no maior país do mundo por uma doença absolutamente desconhecida. Todo o resto do mundo poderia ter traçado seus planos a partir da luta chinesa. Já conhecíamos o inimigo, já sabíamos como ele se transmitia, já prevíamos seus perigos. Tínhamos informações do primeiro campo de batalha porque 3.249 chineses já haviam perecido nele.

A crise do liberalismo
A revista Foreign Affairs anuncia que a pandemia pode transformar a ordem global; diferente do que o grito dos chauvinistas quer sugerir, a verdade é que a China está ganhando uma vantagem geopolítica como líder na resposta à pandemia, tanto pelo exemplo de sua reação como pelo apoio concreto e articulação com os outros países que sofrem com a praga. Os Estados Unidos, por outro lado, parecem confusos, autocentrados, egoístas – perdem a legitimidade e a capacidade de oferecer bens globais e sequer estão oferecendo um modelo de reação em seu próprio país, vacilando perante o vírus com propostas de mitigação.

Até os liberais da Foreign Affairs entendem: apesar dos racistas, dos chauvinistas e dos guerristas, a China ganha legitimidade – não uma Chernobyl, mas uma vitória. A China oferece materiais necessários e conhecimentos sem fazer exigências e imposições políticas: a dureza em suas palavras é só sobre a necessidade de uma política de supressão, de quarentena de verdade. Abordagem direta ao problema, honesta. Isso contrasta com a política intervencionista dos Estados Unidos em particular e do atlantismo em geral, cuja mentalidade se apresenta em todos os seus discípulos e nos ataques contra a China: toda relação é enquadrada como parte de um conjunto de exigências de liberalização, afirmando os princípios do que alguns ainda se prestam a chamar de “Ocidente”.

De forma muito sugestiva, ao lado do auxílio chinês ao povo italiano, nós vemos a chegada do contingente de médicos enviados por Cuba, que, mais uma vez, envia uma vanguarda militante para a linha de frente enquanto um outro país dirigido por comunistas exerce uma influência global.

A Foreign Policy diz que “a pandemia vai mudar o mundo para sempre”: dentre os doze pensadores solicitados para comentar, nós vemos os temas constantes da crise da hegemonia dos Estados Unidos e da morte abrupta da globalização.

Os liberais sentem esse processo e a própria fraqueza perante a pandemia. A frustração é muito grande e pode virar raiva, ou uma imensa vontade de sobreviver – não são eremitas procurando uma caverna para morrer, mas procuram a todo custo se agarrar à vida. Por isso os ataques irracionais. Não mentem por mera estultice.

A humanidade se enfrenta com uma praga, não pela primeira vez na história, e como eles reagem? – Procuram um culpado e fecham os olhos para o que não querem ver.

Não por acaso, a histeria chauvinista é acompanhada por histeria anticomunista. O racismo entra em campo como força auxiliar: não um mero produto da ignorância das pessoas, mas uma excrescência ideológica baseada na comunicação irresponsável. Assim, tanto militantes insignificantes como elementos agressivos e ignorantes no meio de um povo são usados como armas em jogos de guerra.

O “liberal respeitável”, pacifista, vira um soldado e um propagandista dedicado a fundamentar a hostilidade internacional contra a República Popular da China. A única preocupação destes celerados é agitar o ódio dos ignorantes e dar motivos para uma guerra contra a China. O desinformador com pose de intelectual é pior do que o desinformador que se arrasta nas redes sociais falando absurdos.

Uma série de pretensos iluministas liberais, progressistas e social-democratas se revelam chauvinistas e colocam facas entre os dentes tão logo começam a balbuciar o discurso da “ameaça chinesa” – se convertem em brutais “guardiões da civilização”.

Na esquerda, já não são apenas intelectuais preguiçosos, deitados em suas camas de títulos, mas sicofantas imorais associados a este movimento chauvinista e racista contra os chineses. É típico: assim como no passado vários esquerdistas se uniram aos elementos mais reacionários de seus países contra a “ameaça soviética” e assim como o Partido Democrata nos Estados Unidos usou a histeria antirrussa, agora o movimento natural dos oportunistas é se juntar ao arregimentamento das fileiras contra a China.

Os gritos das falanges raivosas não podem mudar a verdade: as bases do liberalismo foram profundamente abaladas pela pandemia. O radicalismo neoliberal tem seus princípios ainda mais expostos como absurdos e até seus sacerdotes são obrigados a ceder. Isolados em nossas casas, testemunhamos nossa interdependência, a necessidade de organização e a exposição de alguns sistemas de poder, a começar pelas diferenças de classe. A coletividade existe.

Estão ridicularizados os que defendem o individualismo absoluto e questionam a própria ideia de coletividade, de interesses coletivos e de atuação coletiva – até ideias como as de interesse público e interesse nacional mostram sua relação com a realidade.

Mesmo um mercado tão poderoso, com corporações tão grandes, se mostra incapaz de enfrentar uma crise causada por um vírus. O mundo não se explica por “cada um cuidando de sua vida, vendendo e comprando aquilo que quiser”; as formas de organização da ação humana estão em primeiro plano, e a organização baseada no interesse financeiro expõe suas fragilidades.

Acima de tudo, e com o exemplo máximo na República Popular da China – dentre os vários exemplos inferiores que se espalham pelo mundo -, vemos a afirmação do princípio do político contra o princípio da economia e do comércio. A ação política por excelência mostra seu poder: não só na atuação de um estado forte, mas nas figuras de militantes voluntários do Partido Comunista em Wuhan.

Essa ação política não só se contrapõe ao fundamentalismo de mercado, mas também aos preceitos de moderação do liberalismo político, afirmando a necessidade da ação política decisiva no momento excepcional. A primazia do político também aparece, infelizmente, em sua face política, em dirigentes irresponsáveis que se recusam a enfrentar a doença de forma decisiva e se agarram ao liberalismo, que falam de liberdade enquanto o povo periga morrer tossindo e de fome – não existe ciência, nem saúde pública, nem medicina que cure os males de um péssimo líder.

Mais do que a esquerda, os liberais estão a contemplar assustados “a vitória das ideias imortais do comunismo”. Não a foice e o martelo, não o movimento comunista em sentido estrito, mas algo maior, mais profundo, uma lógica presente dentro dos seres humanos quando se deparam com sua existência coletiva. No limite, o comunismo como a consciência das necessidades humanas como o caminho para a liberdade, como representação ideal máxima dessa afirmação da vida contra o capital, da existência coletiva que se afirma através de uma atuação política consciente.

Isto é algo maior que o modelo chinês ou o Partido Comunista da China, ainda que eles expressem em alguma medida precisamente o triunfo da política e da planificação contra a anarquia de mercado.

No limite, é o princípio filosófico que esmaga os princípios liberais. Ao mesmo tempo, a confiança liberal na sua supremacia intelectual ou mesmo na supremacia do capitalismo é abalada enquanto as contradições dos interesses do trabalho com aqueles do capital se tornam uma fratura exposta em uma Europa que era tida como muito estável. Os liberais se revoltam ao perceber o comunismo como algo subjacente ao contato humano com essa realidade.

Tudo que é sólido desmancha no ar. E eles têm medo do ar, não por conta do vírus da doença, mas por medo de um outro tipo de vírus, um fantasma que ronda o mundo: o fantasma do comunismo. É um fantasma precisamente por ser muito maior do que o movimento comunista organizado, consciente, mas ainda assim capaz de assombrar a partir das reivindicações dos povos que exigem ação.

Se sentem ameaçados os liberais, quando veem o individualismo e o mercado sendo engolidos na avalanche, mas isso não quer dizer que a ameaça vá se concretizar. Não veremos uma utopia no ano que vem.

O liberalismo não está morto de uma vez por todas – as dinâmicas de transformação são mais complexas que isso. Se, apesar disso, nos atermos à metáfora da morte, veremos que ele caminhará entre nós em formas de morto vivo e não só na marcha de zumbis fascistas, mas também surgindo em roupagens social-liberais mais arrojadas. Haverá uma reação liberal saída de burguesias internacionais e baseada na defesa da globalização – possivelmente ligada a governos europeus -, que reforçará os discursos de tecnocracia e cooperação global arranhando “críticas ao capitalismo” no estilo do manifesto de Davos em 2019, com Klaus Schwab defendendo “um novo tipo de capitalismo”, objetivo reafirmado pelos dirigentes empresariais em 2020. Afinal, até Macron discursou sobre a necessidade de se rever os princípios do neoliberalismo e preservar certos fundamentos da participação estatal na economia. É a alternativa do centro sistêmico tentando se reformar e conduzir os destinos da mudança.

Para além da filosofia, que também faz parte da realidade, os liberais e chauvinistas gritam por causa de uma realidade mais imediata: o sucesso da China em responder à crise pandêmica. Adiantam-se querendo lidar com isso, enquanto o povo italiano, com auxílio chinês, tenta lidar com a cruz de seu calvário.

No país onde nasceu Michelangelo, com uma população do tamanho da de Hubei, as Pietás de um mundo globalizado sequer veem os corpos de seus filhos, que são levados em caminhões militares e cremados fora da cidade, enquanto os velhos são deixados em casa para morrer com os pulmões cheios d’água.

A Itália é em si uma espécie de Pietá, mais jovem que o filho a quem deu à luz, abatida pela morte que carrega no colo e que agora – já é tarde – deverá carregar para sempre. Já morrem mais que na China: confirmaram-se 3.405 italianos mortos no mesmo dia em que os chineses comemoravam o fim da transmissão local.

É para esse caminho que rumam todos os países cujos líderes preferem preservar mercados a salvar vidas, que riem da morte de seu povo, que querem mais a batalha no meio da pandemia do que a batalha contra a pandemia. Marias, que de antemão sabiam do destino de seus filhos, se tornam Pilatos em busca de um novo Jesus, pregando-o com estrelas amarelas em um fundo vermelho.

82 são os países a quem a China ofereceu ajuda no combate ao coronavírus. Em caixas de suprimentos enviadas à Itália há folhas de papel com a seguinte inscrição: “Somos ondas do mesmo mar, folhas da mesma árvore, flores do mesmo jardim”. Nos Estados Unidos, manchetes buscam culpados no distante Oriente; escaramuça dentro de uma guerra. No Brasil, um deputado, feito um cão, late com o pescoço apertado pela coleira de seu mestre, e seus filhotes estendem faixas: “Xi Jinping – Son of bitch – China virus”. Se “liberdade é a solução”, tomaremos ela como régua para medir a fila de cadáveres brasileiros ao final dessa dura jornada. Se nos faltar alguns metros, sabemos onde cobrá-los. E não será na China.

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