As crises religiosas e sociais e suas consequências políticas
A longa década de abertura do século XXI (2000-2012) tem sido um período de repetidas e profundas crises económicas e sociais, de guerras em série e prolongadas e de queda dos níveis de vida para a grande maioria dos americanos. Como é que as pessoas reagiram a estas crises?
Não surgiu nenhum movimento em grande escala, de longa duração, para desafiar as classes dominantes bipartidárias. Durante um breve momento, o movimento “Occupy Wall Street” proporcionou uma plataforma para denunciar os 1% super-ricos mas depois desapareceu da memória.
Coloca-se a questão de se, no meio de prolongados tempos difíceis, as pessoas se viram para a religião como solução, como uma saída para a piedade espiritual. A questão que este artigo aborda é se a religião se tornou no ‘ópio do povo’ como Karl Marx sugeriu ou se as crenças e instituições religiosas também estão em crise, perdendo a sua atracção espiritual perante a sua incapacidade de resolver as necessidades materiais quotidianas de uma legião crescente de trabalhadores empobrecidos, mal pagos, desempregados e eventuais e de uma classe média que se vai afundando. Por outras palavras, as principais religiões estão a crescer e a prosperar na nossa época de crise económica permanente e de guerras perpétuas ou estão num caminho descendente e partilham do declínio do Império dos EUA?
Segundo os últimos dados de 2008, [nos EUA] o maior grupo religioso é o cristianismo com 173,402 milhões de membros representando 76% da população adulta, seguido pelo judaísmo com 2,680 milhões representando 1,2% da população adulta; seguidos pelas religiões orientais com 1,961 milhões e representando 0,9% de muçulmanos, em que 1,349 milhões representam 0,6% de adultos. O segundo grupo mais populoso depois dos cristãos é o dos adultos que afirmam ‘não terem religião’, 34,169 milhões, ou seja 15%.
População adulta e filiações religiosas, 1990-2008
Adultos 1990 milhões | Adultos 2008 milhões | Variação percentual | Proporção dos adultos em 1990 | Proporção dos adultos em 2008 | Variação da proporção do total de adultos 1990 – 2008 | |
População adulta | 175.440 | 228,182 | 30,1% | – | – | – |
Cristãos (todos) | 151,225 | 173,402 | 14,7% | 86,2% | 76% | -10,2% |
Judeus (todos) | 3,137 | 2,680 | -14,6% | 1,8% | 1,2% | -0,6% |
Orientais (todos) | 687 | 1,961 | 185,4% | 0,4% | 0,9% | +0,5% |
Muçulmanos (todos) | 527 | 1,349 | 156,0% | 0,3% | 0,6% | +0,3% |
Sem religião | 14,331 | 34,169 | 138,14% | 8,2% | 15,0% | +6,8% |
As tendências dinâmicas ao longo do tempo mostram uma percentagem decrescente de adultos que são cristãos: entre 1990-2008 caíram de 86,2% para 76%: os judeus desceram de 1,8% da população adulta em 1990 para 1,2% em 2008 e as religiões orientais estão a aumentar de 0,4% da população adulta para 0,97% da população. Do mesmo modo, a percentagem de muçulmanos na população adulta aumentou de 0,3% em 1990 para 0,6% em 2008. A percentagem de população adulta não religiosa aumentou de 8,2% em 1990 para 15% em 2008.
Enquanto os praticantes do cristianismo e do judaísmo, em percentagem da população adulta, diminuíram, há uma profunda divergência em termos de mudança numérica; entre 1990 e 2008 o número de cristãos aumentou 2,218 milhões enquanto o número de judeus diminuiu 457 mil. O judaísmo é a única das religiões, mais importantes ou menos importantes, a diminuir em número absoluto.
O número conjunto de afiliados religiosos orientais e muçulmanos, ultrapassa agora o judaísmo em 630 mil crentes, cerca de 30%. Os judeus representam hoje apenas 1,2% da população adulta dos EUA em comparação com 1,5% de muçulmanos, budistas e hindus. O fosso entre adultos cristãos e não-religiosos nos EUA diminuiu nos últimos 20 anos: de 86,2% e 8,2% em 1990, para 76% e 15% em 2008. Entre os cristãos o maior declínio está entre as ‘principais igrejas protestantes’ (os metodistas, os luteranos, os presbiterianos, os episcopalianos/anglicanos e a Igreja Unida de Cristo) de 32,8 milhões em 1998 para 29,4 milhões em 2008; e entre “protestantes não especificados”, de 17 milhões para 5,2 milhões. Os maiores aumentos são entre “cristãos não confessionais” passando de 194 mil para 8,03 milhões de crentes entre 1990-2008, entre cristãos não especificados de 8,2 milhões para 16,4 milhões e entre pentecostais de 5,7 milhões em 1990 para 7,9 milhões em 2008. Católicos e baptistas aumentaram de número mas praticamente mantêm a sua percentagem da população adulta.
Análise das tendências religiosas no contexto político-económico
Contrariamente à maior parte dos observadores e analistas, a crise económica não levou a um ressurgimento da afiliação ou identificação religiosa – a procura de ‘consolo espiritual’ numa época de desespero económico. As principais igrejas e sinagogas não atraem, nem sequer mantêm, membros porque pouco lhes têm a oferecer como soluções materiais numa época de necessidade (penhoras por hipotecas, falências, desemprego, perda de poupanças, de pensões ou de acções). Contrariamente a alguns analistas, nem mesmo as igrejas mais sobrenaturais, mais apocalípticas, a de Pentecostes, a Carismática, a do Novo Nascimento, embora aumentando o seu número, conseguiram atrair uma percentagem maior da população adulta nos últimos 20 anos; em 1990 tinham 3,5% de adultos e em 2008, 4,4%, um aumento de 0,9%.
A década de crises tem tido diversos impactos importantes – enfraqueceu fortemente a identidade religiosa, qualquer que seja a sua denominação específica, aumentou a incerteza religiosa e aumentou fortemente o número e a percentagem de americanos adultos que deixaram de ser religiosos. Entre 1998 e 2008, a percentagem de adultos de ambas as categorias duplicou de 10,5% para 20,2%; os números aumentaram de 18,34 milhões para 46 milhões. Segundo parece, a maior parte dos ‘não-religiosos’ provém da maioria de cristãos e de judeus.
O aumento de adultos não religiosos entre 1990-2008 não pode ser relacionado com uma maior educação, urbanização e exposição ao pensamento racionalista que se manteve mais ou menos o mesmo durante as duas décadas. O que mudou é o descontentamento crescente em relação aos rendimentos decrescentes dos trabalhadores assalariados, os grandes aumentos de desigualdade, as guerras perpétuas e o descrédito público das principais instituições políticas e económicas – o Congresso é encarado negativamente por 78% dos americanos, tal como os bancos, em especial a Wall Street. As instituições religiosas e a fé religiosa são crescentemente encaradas no mínimo como irrelevantes, mas também como cúmplices na decadência dos níveis de vida e das condições de trabalho nos EUA. Apesar do aumento acentuado de americanos ‘não religiosos’, cerca de 75% continuam a afirmar-se como crentes de uma qualquer versão de cristianismo.
A crise no judaísmo é muito mais grave do que a das ‘principais’ igrejas cristãs. Nos últimos 20 anos o número de judeus adultos diminuiu em 15%, mais de 450 mil antigos judeus deixaram de se identificar como tal. Algumas das causas político-económicas para a fuga do judaísmo podem ser idênticas às dos cristãos. Outras podem ser mais específicas dos judeus: mais de 50% de judeus casam-se fora da sinagoga com não judeus, causa e consequência da “defecção’. Há quem se converta a outras religiões – orientais ou cristãs. Alguns rabis judeus e ideologias neo-conservadores, clamam contra a ameaça de ‘assimilação’ que comparam a um ‘genocídio’. Muito provavelmente, a maior parte de antigos judeus tornaram-se ‘não-judeus’ ou seculares e as razões para isso podem variar. Para uns, as histórias sangrentas do Antigo Testamento e as regras talmúdicas não se encaixam no pensamento racional moderno. Considerações políticas também podem contribuir para o profundo declínio na identidade dos judeus: os elos cada vez mais fortes e a identidade de Israel com as instituições religiosas judaicas, a bandeira de Israel anunciando um apoio incondicional aos crimes de guerra israelenses, afastaram muitos antigos paroquianos que se retiram discretamente em vez de se envolverem numa luta pessoal, com custos espirituais, contra o formidável aparelho pro-Israel inserido nas redes religiosas-sionistas interligadas.
Conclusão
As crises religiosas, o declínio na crença e na afiliação institucional, estão intimamente ligadas com a decadência moral nas instituições públicas dos EUA e o súbito declínio dos níveis de vida. Entre os cristãos, o declínio é crescente mas regular; entre os judeus é mais profundo e mais rápido. Não se perfila no horizonte nenhuma ‘alternativa religiosa’. Os grupos cristãos mais fundamentalistas reagiram tornando-se mais envolvidos politicamente em movimentos extremistas como o Tea Party, demonizando as despesas públicas para melhorar as desigualdades sociais, ou aderiram a movimentos islamofóbicos pró-Israel – aumentando assim o número do afastamento de ex-judeus!
A população adulta secular ou não-religiosa ainda tem que organizar e articular um programa em contraste com os fundamentalistas, talvez porque sejam uma categoria social muito díspar – em termos de interesses socioeconómicos e de classe. ‘Não religioso’ diz-nos muito pouco quanto à alternativa. A percentagem em redução de crentes religiosos pode ter diversos resultados: nalguns casos pode levar ao endurecimento da doutrina e das estruturas organizativas, ‘para manter em linha os fiéis’. Noutros levou a uma maior politização, na sua maioria na extrema-direita. Entre os cristãos significa insistir nas leituras literais da Bíblia e no anti-evolucionismo; entre os judeus, os números em redução estão a intensificar as fidelidades tribais e uma angariação de fundos mais agressiva, o aumento da pressão e do apoio incondicional a um “Estado Judeu”, purgado de palestinos, e com uma punitiva caça à bruxas contra os críticos de Israel e do sionismo.
O que é necessário é um movimento que ligue a crescente massa de pessoas racionais não religiosas à grande maioria dos trabalhadores assalariados que estão a sofrer a deterioração do nível de vida e dos crescentes custos (materiais e espirituais) das guerras imperialistas. Alguns indivíduos e até confissões religiosas sentir-se-ão atraídos por esse movimento, outros atacá-lo-ão por razões sectárias e políticas. Mas, assim como a moral não-religiosa liga as crises individuais e políticas à acção social, também a comunidade politica cria as bases para uma nova sociedade construída sobre necessidades seculares e ética pública.
O original encontra-se em http://petras.lahaine.org/?p=1925.
Tradução de Margarida Ferreira.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .