Colômbia 2015: Um balanço necessário
por Sergio Quintero Londoño*
No fim do ano de 2014, o ambiente político da paz na Colômbia se agitava após o desfecho satisfatório com a libertação do General Alzate (detido pelas FARC-EP) e especialmente com o anúncio de uma decisão inédita por parte da insurgência: o início de um cessar-fogo unilateral e indefinido, fato que pode ser entendido como prelúdio para o término da guerra.
Naquele momento, alguns otimistas e visíveis simpatizantes da guerrilha celebravam o ocorrido com Alzate, apresentando-o como uma demonstração irrefutável da força insurgente no controle territorial. Por sua parte, os adversários mais ferrenhos não só das FARC, mas dos diálogos de paz, gritavam aos quatro ventos que essa era uma das consequências de igualar a “institucionalidade democrática” com o “narco-terrorismo”, e que a única resposta aceitável deveria ser o retorno à guerra sem quartel. Agora, sem colocar a realidade dos diálogos de paz em uma tábua monocromática, mas em seu próprio desenvolvimento contraditório, vozes cautelosas tentavam analisar o momento como uma transição de ano cheia de desafios, com mais perguntas que respostas, porém com convicções claras sobre a necessidade de dar continuidade e profundidade à Mesa de Havana [1].
Hoje o programa de paz é muito mais claro e, ainda que se encontre tão ou mais carregado de contradições que há um ano, os avanços alcançados na Mesa deixam uma boa sensação na maioria do povo colombiano, que cada vez se mostra mais decidido em apostar na paz e na construção de um novo país regido pela democracia e pela justiça social.
O ano de 2015 iniciou a Mesa de Diálogos com pré-acordo em 3 dos 6 pontos da agenda (ainda que com ressalvas de fundo em cada um deles: Desenvolvimento agrário integral, Participação política e Narcotráfico – cultivos de uso ilícito) [2]. Os estadistas mais ortodoxos pressionavam o ambiente político a exigir resultados, gerando grande expectativa frente a um quarto ponto referente a Vítimas e Justiça, no qual já tinham apresentado fatos importantes, como a visita dos 5 grupos de vítimas a Havana, e o “ato de contrição” das FARC frente à comunidade de Bojayá. Além disso, a declaração insurgente do cessar-fogo unilateral e indefinido a partir de 20 de dezembro caía como um raio de luz nas primeiras horas de um tênue amanhecer.
Nos primeiros meses do ano, se avançou com a relevante e necessária consolidação da Comissão de Gênero (formada por delegadas de ambas as partes), que ao longo do ano realizou importantes encontros com grupos representativos e organizações de mulheres, na ideia de garantir um caráter inclusivo a todo o acordado entre as FARC e o Governo. Enquanto a participação popular não se dava da maneira exigida pelas organizações sociais, as organizações que chegavam até Havana davam mostras de vontade e capacidade para superar a guerra, abrindo caminhos para a reconciliação de nosso povo. Por esse rumo se encaminhava o acordo de desminagem e descontaminação de artefatos explosivos, como uma contundente medida humanitária com vistas a reduzir a dor nos departamentos de Antioquia e Meta, dois dos mais atingidos pela violência durante tantos anos de confronto.
No campo internacional, o panorama ficava melhor com o passar dos meses, pois além da reiterada solidariedade de povos e governos vizinhos, também se expressavam setores determinantes como a Rússia e o Reino Unido, assim como as Nações Unidas, o governo dos Estados Unidos e a UNASUL, que em seu devido tempo foram nomeando seus respectivos delegados para acompanhar a Mesa. E ainda que para muitos a nomeação do delegado estadunidense representasse uma explícita ofensa à soberania nacional, frente a uma análise responsável sobre a geopolítica internacional, tais atores deveriam estar presentes nos diálogos de paz, posto que estiveram de forma permanente e ativa na execução da guerra.
Durante o primeiro trimestre, as condições objetivas ofereciam um panorama de esperança (ainda que moderado) para a maioria dos setores políticos do país, excetuando, é claro, o Centro Democrático (eufemístico nome para um partido que nem é de Centro e muito menos Democrático), que se gabava exigindo o fim da Mesa e se aproveitava, de forma oportunista, das permanentes provocações das Forças Militares estatais, que violavam em várias partes da geografia nacional o cessar-fogo insurgente.
Dessa maneira, na época, a Frente Ampla pela Paz já brilhava com luz própria no papel assumido de supervisão e acompanhamento do Cessar-Fogo unilateral. Além disso, recarregaram de energia (e trabalho!!!) esta importante expressão de unidade popular, que colocando no centro do debate o fim da guerra, também chamava a atenção sobre a justiça social e a democratização do país, alcançável (não só, porém fundamentalmente) através de uma Assembleia Nacional Constituinte de caráter popular. E se a Frente Ampla assumia um papel relevante no que concerne à Mesa de Diálogos, por sua vez a Cúpula Agrária, Campesina Étnica e Popular lembrava ao governo que nos campos colombianos se articulavam importantes setores sociais, que reconheciam e apoiavam determinantemente os diálogos de paz, deixavam claro que com o acumulado de sua própria experiência e por sonhos coletivos pensavam no desenvolvimento agrário não como o desenvolvimento capitalista sustentado no latifúndio, mas como um cenário de convivência, baseado na soberania alimentar e na produção para a vida.
Com a entrada do segundo trimestre, as expectativas cresciam em todos os segmentos da sociedade; desde os mais de 6 milhões de deslocados, até os grandes empresários; desde as vítimas de desaparecimentos e falsos positivos, até seus carrascos criminosos (a grande maioria dos quais desfrutam de impune liberdade). Não era menor a expectativa entre as partes sentadas na Mesa, que apesar dos obstáculos continuava buscando saídas consensuais à guerra fratricida.
Tais expectativas só poderiam ser traduzidas em conquistas na medida em que ficasse clara a origem, prolongamento e população vítima da guerra, para poder pensar em sua possível superação. É assim que a “Comissão Histórica do Conflito e suas Vítimas” oferece uma grande contribuição ao entregar à Mesa de Diálogos e ao país inteiro, um documento amplo e profundo sobre as causas que originaram o conflito e permitiram seu prolongamento, assim como o reconhecimento de vítimas e assassinos [3]. Não é necessário ser um grande analista político para entender que tal documento deixou em apuros o bloco hegemônico de poder (Estado, paramilitarismo e grupos de poder conservador), apontado como o principal responsável pela guerra e suas consequências. Aparentemente, a verdade pura e simples assustou não só o governo (sempre acompanhado pela grande imprensa hegemônica), mas também setores acadêmicos e políticos que se negavam a baixar o dedo inquisidor com o qual durante tanto tempo apontaram a insurgência.
Outros tipos de expressões foram abrindo o caminho da reconciliação. Uma mostra cristalina de acompanhamento popular em favor da paz se apresentou na massiva mobilização de 9 de abril, que encheu como um rio de esperança as principais ruas de Bogotá e algumas cidades capitais. A esta clara mensagem lançada em tão emblemática data, se soma a partida de futebol “Um gol pela paz”, organizada pela liderança de Diego Armando Maradona, da qual participaram jogadores nacionais e estrangeiros, que demonstraram condições e compromisso ao suar a camisa pela unidade de nosso povo.
No entanto, as constantes provocações por parte dos inimigos da paz e as posições ambíguas do presidente Santos, geraram outro forte tremor na Mesa (tão ou mais forte que o do general Alzate), desdobrando em vários acontecimentos de caráter político e militar durante os meses de abril e maio. Produto de hostilidades e avanços terrestres por parte das Forças Militares contra as FARC, em 14 de abril se apresenta um enfrentamento militar no departamento do Cauca, onde se tem como lamentável resultado 11 soldados mortos e outros 17 feridos. A resposta governamental não se fez esperar e decretou uma nova arremetida de bombardeios aéreos contra acampamentos insurgentes, que há pouco mais de um mês tinham sido suspensos, como medidas para a diminuição do conflito. As operações conjuntas da polícia, do exército e da força aérea, em 21 de maio, causaram a morte de 27 guerrilheiros, fato que pressionou o fim do cessar-fogo unilateral sustentado pelas FARC desde dezembro do ano anterior. E como se fosse pouco, o presidente Santos, através de seu ministro da guerra, Juan Carlos Pinzón, ordenou a intensificação dos ataques, causando a morte de 10 guerrilheiros em Antioquia, em 23 de maio, e outros 4 em Chocó (inclusive de um integrante do Estado Maior Central das FARC), no dia 25 do mesmo mês.
O que parecia ser um amanhecer entusiasta para um futuro de paz, em poucas semanas se converteu na penumbra mais escura de uma longa noite de guerra.
Ao recrudescimento do enfrentamento militar se agregava uma forte contradição política. Algumas visões encontradas frente ao tema de Vítimas e Justiça pareciam esconder o bom ritmo que durante os dois anos anteriores tiveram os diálogos, pois enquanto o governo pretendia focar seus esforços no debate jurídico que levou ao encarceramento dos insurgentes; por sua parte, as FARC priorizavam uma leitura política na qual se colocava em primeira ordem a verdade e a justiça. Somado a isso, no território colombiano se apresentava um evidente crescimento do paramilitarismo e um enfrentamento cada vez mais intenso entre algumas organizações rurais e o exército governamental (tal e como aconteceu em El Mango e Inzá – Cauca, onde o campesinato desalojou os militares das bases que tinham sido instaladas em meio à população civil) [4].
Entrado o terceiro trimestre, as partes conseguiram direcionar a convulsionada Mesa. Analisando de forma objetiva e com a necessidade de atuar de forma consequente (ainda que essa não faça parte de suas características), o governo reorientou sua ação militar e acordou com a guerrilha algumas medidas para baixar a intensidade do confronto, tornando público um documento intitulado “Agilizar em Havana e diminuir na Colômbia”. A partir deste acordo, as partes tomaram medidas eficazes para melhorar o ambiente de diálogo e alcançar no menor tempo possível um acordo sobre os pontos restantes da agenda. As medidas das FARC foram implementadas, quase que de forma imediata, ao decretar (pela sexta vez) um cessar fogo unilateral (que se estendeu até os dias atuais). No entanto, as ações governamentais não estiveram orientadas para o mesmo caminho, pois tal e como feito historicamente, ativou seu aparato repressor contra os movimentos sociais, primeiro contra o Congresso dos Povos, que sofreu a detenção de vários de seus integrantes através das já conhecidas montagens judiciais, e posteriormente contra a Marcha Patriótica. Na figura do professor Miguel Ángel Beltrán e do líder indígena Feliciano Valencia, a repressão exercida por parte do Estado contra o pensamento crítico e as organizações sociais de caráter progressista e revolucionário se refletiam. Também neles se mostrava o espírito daqueles que não param, nem sequer nas circunstâncias mais adversas, quando se trata de obter a paz.
O último trimestre veio carregado de tensões e esperanças. Um ator político cobrava reconhecimento adotando as expressões mais desesperadas para chamar a atenção da Mesa de Diálogos e do povo colombiano. Centenas de presos políticos de diferentes cárceres (que já alcançam o preocupante número de 10 mil) arriscavam sua integridade física mais uma vez durante uma greve de fome, em que exigiam mínimas condições de assistência médica e tratamento digno dentro dos centros penitenciários. Corpos dilacerados à beira da morte e bocas costuradas como expressão de protesto, foram imagens escandalosas que circularam em diferentes redes sociais, tanto na Colômbia como no exterior. Não existia escapatória: ou o Estado tomava as rédeas no assunto, ou as pressões exercidas pelos presos aumentaria até adquirir a magnitude de um escândalo internacional… Como os povos do mundo poderão entender que na suposta democracia mais antiga da região se prende aos milhares os dirigentes sociais, que são submetidos a cruéis torturas no interior dos cárceres? [5]
O que para alguns era um gesto de paz, para outros era uma medida calculada com o objetivo de acalmar os ânimos em um ponto específico do debate político. O caso é que um de seus resultados foi o compromisso governamental de indultar 30 guerrilheiros das FARC, declaração que causou todo tipo de opinião na grande imprensa.
E ainda que parecesse surgir outro nó górdio em torno da proposta insurgente dos Territórios pela Paz (TERREPAZ), rapidamente apareceram sinais indicando que os esforços realizados durante quase um ano e meio, apontavam resultados concretos em matéria de Vítimas e Justiça. A imagem de Santos e Timochenko apertando a mão sob o apadrinhamento de Raúl Castro, rapidamente deu a volta ao mundo, sendo expressivo o apoio ao processo de paz pelas diferentes latitudes.
Não obstante, a alegria da imagem de Santos e Timochenko parecia se diluir poucas horas depois. Tensões, contradições e mal entendidos se apoderaram do comunicado conjunto da Jurisdição Especial pela Paz, e foram necessários quase dois meses de discussão entre as partes e suas comissões de assessores jurídicos para destravar o ponto que tanta expectativa tinha criado. Enquanto o governo expressava que o documento assinado pelo presidente Santos em 23 de setembro em Havana era um documento em desenvolvimento, as FARC insistiam que o citado documento já tinha sido acordado e, inclusive, legitimado pelos países garantidores e acompanhantes.
Finalmente, o ano de 2015 se encerra com a tão ansiada notícia apresentada em 15 de dezembro pelos chefes das duas delegações de paz, que apresentaram ao mundo o pré-acordo sobre Vítimas e a jurisdição especial para a paz. Não poderia ser de outra forma. As partes se comprometem a esclarecer todos os acontecimentos que originaram e prolongaram o conflito, a garantir os direitos das vítimas e a gerar as condições sociojurídicas para uma efetiva participação da insurgência na atividade política legal. E ainda que não faltassem vozes dissidentes, como as do Centro e do conhecidíssimo procurador Ordoñez, o pré-acordo novamente acende os ânimos do povo colombiano, ambientando um final de ano protagonizado pela paz e fraternidade.
Se 2015 se encarregou de mostrar mais próxima a possibilidade de paz, esperamos que o ano de 2016 seja o momento real em que o futuro de nosso povo se direcione por um novo caminho. Nesta nova rota a justiça social deve funcionar como bússola, sendo nosso horizonte uma nova Colômbia, que procure superar as condições do capital.
Rio de Janeiro, 23 de dezembro de 2015.
OBS: Na presente data, são de conhecimento os avanços sobre o ponto Fim do Conflito, pois, há vários meses, uma comissão técnica vem trabalhando no assunto, obtendo alguns acordos prévios e, inclusive, iniciando a implementação de importantes medidas. Restaria o polêmico ponto de Referendo e Implementação, que parece, reflete as posições controversas na Mesa de Havana. Enquanto o governo joga sua última carta em matéria de referendo através de um Plebiscito, as FARC consideram que a melhor saída é uma Assembleia Nacional Constituinte… Amanhecerá e veremos.
*Militante da Marcha Patriótica.
[1] Na época, tive a oportunidade de expressar algumas ideias que ainda hoje se encontram vigentes. Ver http://pcb.org.br/portal2/7267
[2] Os documentos de pré-acordos podem se consultados na página da Mesa de Diálogos. https://www.mesadeconversaciones.com.co/documentos-y-comunicados
[3] Na Colômbia, pelo menos dois editoriais se encarregaram de difundir o documento (Gentes del Común o fez de maneira parcial e Desde Debajo de maneira integral). Para uma consulta na internet, ver http://www.altocomisionadoparalapaz.gov.co/oacp/Pages/informes-especiales/resumen-informe-comision-historica-conflicto-victimas/el-conflicto-y-sus-victimas.aspx
Também pode ser consultado o vídeo publicado pelas FARC-EP https://www.youtube.com/watch?v=GxjBAULRJKQ
[4] Um pouco antes de acabar o segundo trimestre, e em meio ao ambiente mais complexo, em uma entrevista realizada na Universidade de Santa Catarina (Brasil), tentei explicar alguns pontos de análise sobre o avanço do processo de paz e da conjuntura. Ver https://www.youtube.com/watch?v=wQEpfMDLyc8
[5] Na época, a Delegação de Paz da FARC-EP tornou público um documentário onde chamam a atenção sobre os presos políticos e, especialmente, sobre os prisioneiros de guerra. Ver https://www.youtube.com/watch?v=h2vJTNXLSy0
Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)