O povo colombiano em luta e movimento

imagemPor: Jaime Caycedo (Secretário Geral do Partido Comunista da Colômbia)

O governo Duque deve ser responsabilizado pelos assassinados, pelos detidos e “desaparecidos”, pelas mulheres estupradas, pela militarização e pelo vandalismo dos policiais infiltrados. Na Colômbia, costuma-se denominar de paralisação (“paro”) uma expressão de descontentamento social que combina manifestações de protesto, as vigílias diante das entidades responsáveis pelas políticas econômicas públicas, limitações à locomoção de veículos em grandes artérias e, ocasionalmente, inclui formas de greves na produção, explicitamente decididas pelos trabalhadores em assembleias.

Essa composição social diversa do movimento inconformista, não centrado inicialmente na produção, mostra a convergência de diferentes níveis de rebelião popular, na maioria das vezes oriundas de espaços específicos de protesto que acabam sendo reconhecidos em torno da crítica às práticas do poder de classe. O efeito dessa convergência pode levar a uma paralisia da economia como um todo, com delicadas implicações e incômodos causados involuntariamente a setores que afirmam não compartilhar os objetivos do movimento, somadas ao notório descontentamento de setores da classe burguesa e também das camadas sociais intermediárias que se sentem afetadas em sua tranquilidade e assustadas com o risco de perderem seus referenciais de estabilidade, seu emprego e sua renda.

Esta é a situação na Colômbia desde 28 de abril. Na prática, um movimento de movimentos, com fraca articulação no nível das suas lideranças, de cunho principalmente reivindicativo, desencadeou o levante de categorias sociais, de idade, de gênero, transportadores, artistas e trabalhadores culturais, do campesinato afrodescendente e das mobilizações indígenas, com grande indignação por causa do tratamento de guerra e da militarização desencadeada contra o protesto cidadão, que tem levado a uma forma de greve geral contra alguns dos instrumentos de política econômica do Banco Mundial e os núcleos mais atrasados do capital financeiro e dos latifundiários.

Essa ruptura social de conteúdo popular ocorre em meio à pandemia, em um dos países periféricos com as piores estruturas de saúde: um sistema privatizado e um conceito institucional de saúde como negócio.

O POVO, EXPLORADO E EMPOBRECIDO, EXIGE JUSTIÇA SOCIAL

A reforma tributária do Ministério da Fazenda e do Banco Mundial, de caráter profundamente regressivo, intensificada com o aumento do IVA na cesta familiar e nos serviços públicos, enquanto foram mantidas isenções, subsídios e benefícios aos grandes acionistas, procurou assegurar a compra de aviões de guerra e recursos financeiros para as eleições gerais de 2022 com as quais o regime pretende garantir a sua continuidade. Enquanto o governo tem buscado desgastar a paralisação nacional por tempo indefinido através da repressão seletiva e violenta, o movimento foi ganhando apoio junto à população e incorporando novos e complexos componentes, cada um com seu rol de demandas reprimidas e não atendidas, dedicados à luta pela justiça social.

O governo, que chegou a reconhecer a Comissão Nacional de Desemprego, mantém uma tática retardadora, repressiva e violenta, impedindo a negociação, em particular sobre as garantias exigidas pelos porta-vozes do movimento: fim imediato da militarização, da repressão violenta, das detenções ilegais, dos “desaparecimentos” de jovens, do estupro de mulheres e atos de vandalismo causados por policiais infiltrados nas marchas de protesto. É necessária a suspensão da ação da ESMAD [1] e do espírito de perseguição e punição na lógica da “segurança nacional” que subordina as autoridades civis eleitas aos comandos militares dependentes do poder executivo nacional.

Além de derrotar a reforma tributária, o movimento tirou da pauta o investimento planejado para aquisição de aviões de guerra. Um projeto de lei no Congresso que acentuava a privatização do sistema de saúde foi retirado de discussão pelo próprio governo. Persistem medidas arbitrárias, como o Decreto 1.174, que introduz a contratação por hora e outras medidas de reforma trabalhista ditadas inteiramente pela esfera patronal. Na Colômbia não existe um Estatuto do Trabalho que unifique as garantias e direitos desmantelados por decretos e resoluções.

Como explicar essa conjunção de conflitos, aparentemente resultantes de uma simples “explosão social espontânea”? A crise econômica do capitalismo periférico atinge a Colômbia desde a década anterior, com um aumento crescente do desemprego desde 2015. A eclosão da pandemia provocou a retirada de dezenas de milhares de trabalhadores do comércio informal (vendedores ambulantes), obrigados a permanecer em quarentenas, em reclusão e na rua, impossibilitados de trabalhar, depois de expulsos dos seus alojamentos por falta de pagamento. Somam-se a isso as demissões e falências, primeiro temporárias e depois prolongadas, das pequenas empresas.

A fome vem se espalhando como um fenômeno em crescimento estável, com todas as suas implicações na má nutrição e na crescente vulnerabilidade da população frente à crise de saúde. De acordo com dados do Departamento Nacional de Estatística, dois milhões e meio de lares comem menos de três porções de comida por dia e cerca de dois milhões de famílias quase não comem duas vezes por dia [2]. Os custos de educação, manutenção e conectividade levaram à desescolarização e ao abandono escolar. As medidas paliativas do governo nacional e de alguns prefeitos, como em Bogotá, estão longe de representar a renda básica exigida pelo Documento de Emergência do Comitê Nacional de Desemprego e do movimento popular organizado. A chamada ajuda solidária do governo atinge a ridícula soma de cinquenta dólares a cada dois meses para três milhões de famílias, e o município também concentra seu foco em um número fixo de famílias pobres e outras consideradas vulneráveis por períodos limitados de tempo.

A GESTAÇÃO DE UMA REBELIÃO POPULAR

Se a fome, o desemprego e a oportunidade de estudar explicam em boa proporção o que se tem mostrado como uma explosão social, há uma história recente que desencadeou novos acontecimentos na vida colombiana.

– O Acordo de Paz firmado entre as Farc-Ep e o Estado (novembro de 2016), que o atual governo de Ivan Duque tem se empenhado em reduzir a cenários de simulação de cumprimento quando não de obstrução aberta. A continuação do extermínio de ex-insurgentes, lideranças sociais populares e militantes de esquerda, com total impunidade, é a nota mais aberrante desta realidade.

– O despertar das mobilizações sociais, crescentes e continuadas ao longo do tempo, apesar da repressão criminosa perpetrada pelo governo sob a justificativa da conduta de alteração da ordem pública e da resistência popular e sindical à ofensiva neoliberal disfarçada de comunitarismo populista de direita. As iniciativas que levaram à criação do Comitê Nacional de Desemprego com as mobilizações de 21 de novembro de 2019 e dias subsequentes, promovidas a partir das bases populares em diferentes cidades do país, também deram impulso à pauta de reivindicações contra o pacote neoliberal. Naquela época, a presença do ativismo feminista e juvenil era visível nas mobilizações de massa. Como símbolo da luta, ficou o nome do jovem Dylan Cruz, assassinado abertamente por um capitão da Esmad.

– A mobilização de 9 e 10 de setembro de 2020 reivindica um Programa de Emergência, com a exigência de uma renda básica para combater a fome, a matrícula zero, o mínimo vital e a conectividade para estudantes, fim dos crimes contra as lideranças sociais, garantias para os trabalhadores da saúde, defesa do Acordo de Paz, bem como manifestou indignação com os maus tratos e a brutalidade da polícia contra o jovem advogado Javier Ordóñez em frente de sua casa, o que provocou sua morte em um Comando de Atenção Imediata (CAI [3]).

– O Comitê Nacional convocou uma greve de 24 horas no dia 28 de abril que afetou a produção da Ecopetrol por parte da União Sindical Operária (USO) e uma jornada de 48 horas de protesto dos professores. Após as ações planejadas e as enormes comemorações do 1º de maio, começa uma nova situação, determinada pela juventude e expressões populares nos pontos de resistência à brutalidade repressiva, onde se estabelecem as limitações à locomoção nas artérias urbanas (os bloqueios), nas rodovias e eixos rodoviários nacionais e se concentra a origem das grandes mobilizações, principalmente na cidade de Cali, maior capital do sudoeste. A eclosão social tornou-se muito mais do que um movimento de protesto e indignação que paralisou um país cujo governo se recusa a fornecer soluções através do diálogo e da negociação e visa o esmagamento brutal das manifestações. Expressa um autêntico sentimento de indignação contra a opressão e violência do Estado após o Acordo de Paz, com a necessidade de abrir e aprofundar a democracia.

A NECESSIDADE DE MUDANÇAS DEMOCRÁTICAS PROFUNDAS

Essa cronologia de acontecimentos indica a disposição crescente da resistência popular e operária localizada territorialmente nos cinturões suburbanos, na rodovia Pan-americana em seu percurso pelo departamento de Cauca, no sul de Cali, ladeada por comunidades indígenas organizadas para a mobilização e bloqueio ao transporte, a que se soma a mobilização múltipla nas cidades que vai além do conceito tradicional de manifestações de rua para se tornar a apropriação e ocupação dos espaços urbanos. Esse modo de ação, liderado pelos chamados núcleos de linha de frente, tem se reproduzido em todo o país como uma forma inicial de organização popular e direção localizada do movimento.

Outra cronologia, a dos acontecimentos políticos, indica que com o recrudescimento da violência do poder, que reflete sua evidente fragilidade e incapacidade de dar solução às demandas, se amplia a disposição das confluências entre correntes democráticas ávidas por uma mudança contra a violência do Estado. Em 2022 haverá eleições gerais e as pesquisas mostram o colapso de Duque e Uribe, a falta de uma figura de Uribe para a sucessão, a grande simpatia por Gustavo Petro e a extrema diversidade de pré-candidaturas presidenciais que se proclamam “centrais”.

O Pacto Histórico surgiu como um processo de reagrupamento das forças que em 2018 lançaram a candidatura da Colômbia Humana, encabeçada por Gustavo Petro, com um resultado de mais de 8 milhões de votos, a que se somaram personalidades desprendidas das correntes representativas do establishment, mas identificadas na defesa do Acordo de Paz de 2016.

Todas as táticas do regime no tratamento violento da paralisação nacional popular respondem ao cálculo perverso de cortar o caminho para uma mudança democrática que leve à culminação do Acordo de Paz e das reformas necessárias para enfrentar o que chamamos de crise nacional em desenvolvimento. A demora em dar garantias para uma negociação com o movimento social e no estabelecimento de medidas que atendam às demandas mais críticas da sociedade reforçam a intenção do governo de impor um estado de choque e continuar atacando as conquistas e direitos da população. O grito pela defesa do direito à vida e de soluções efetivas para o combate à fome e ao desemprego, em um contexto de aguda emergência sanitária, mostra a profundidade da crise social, econômica, cultural, moral e política que está na origem da realidade nacional.

Agora a solidariedade internacionalista com o povo colombiano tornou-se um autêntico fator material que pressiona o regime e os organismos internacionais a favor de uma solução política urgente que acabe com o massacre de ex-guerrilheiros e lideranças sociais e populares, um genocídio político que é a característica do sistema de governo dominante na Colômbia, cujo prolongamento não tem outro projeto que a destruição de todas as formas de democracia e é também uma ameaça para a paz na América Latina e no Caribe.

É também uma crise de soberania devido à forte dependência do sistema político frente à política externa permanente dos Estados Unidos. As forças militares dos Estados Unidos ocupam várias bases na Colômbia e destacamentos armados daquele país, como a chamada Brigada de Segurança. Treinam e preparam as forças especiais colombianas para uma eventual intervenção militar na Venezuela.

A interrupção da ordem institucional por meio do estado de choque ou de um autogolpe, que para o caso são sinônimos, pode desatar novidades superlativas que é necessário descartar.

A necessidade de uma solução democrática para esta crise faz parte do horizonte imediato como tarefa da mais ampla convergência de forças e papel das forças democráticas que dele participam. O compromisso vital consiste em unir forças, em juntar acumulações, em expandir as coincidências possíveis e indispensáveis para parar o projeto de inspiração fascista que tenta se perpetuar na liderança do país. O bloco de forças alternativas exige decisão e sucesso na conjuntura porque um projeto de mudança democrática real também tem a opção de engajar e incluir a base social profundamente interessada em realizar transformações em prol da igualdade, superando a crise em prol do benefício coletivo e do exercício pleno da liberdade política.

Notas:

1. Esmad: Esquadrão Móvel Antidistúrbios, criado mediante simples resoluções da Direção da Polícia, sob o governo de Andrés Pastrana, em 1999. É um corpo repressivo que utiliza as mais modernas armas chamadas “não letais”, treinado segundo as normas ultra conservadoras da polícia estadunidense, que se guia por uma doutrina de “inimigo interno” contra as e os jovens no manejo da chamada “ordem pública”. Se lhe atribuem numerosos homicidios no uso desproporcional da força.

2. Portafolio, 25 de março de 2021, DANE, Encuesta Pulso, https://www.portafolio.co

3. CAI, Comandos de Atenção Imediata, criados originalmente em Bogotá en 1987, em localidades e bairros, dependem das Estações de Polícia. Foram fonte de irregularidades e concentraram a ira popular contra os abusos policiais.

Fonte: https://jaimecaycedo.blogspot.com/2021/06/el-pueblo-colombiano-en-movimiento.html

Colômbia: crise social, repressão e protestos

Jaime Caicedo (PC da Colômbia) analisa a grave crise social, a repressão e os massivos protestos populares

O secretário geral do Partido Comunista da Colômbia, Jaime Caicedo, em entrevista à Rádio Nuevo Mundo, assinalou que as distintas expressões do protesto popular são produto da imposição de uma reforma fiscal em meio à pandemia e à crise econômica do modelo neoliberal imperante.

Jaime Caicedo denunciou que, a partir da paralisação nacional, foi criado um ambiente de ampla repressão estatal, com ataques sistemáticos aos Direitos Humanos.

Desde 28 de abril, toda Colômbia virou cenário de manifestações multitudinárias e greves convocadas por diversas organizações sociais e políticas em princípio contra o projeto de reforma tributária do governo de direita de Iván Duque, um projeto que foi retirado em decorrência da pressão dos manifestantes, que advertiam que os novos impostos iam afetar as camadas médias e os setores mais vulneráveis da população, ao que se somaram outras denúncias e reivindicações, como o pleno cumprimento do acordo de paz de 2016 e o fim dos assassinatos de líderes sociales e defensores dos direitos humanos, dentre outras.

O dirigente comunista acusou uma contradição muito forte do governo de Duque nas estatísticas de assassinatos que foram dadas a conhecer, em comparação com as divulgadas pelas diversas entidades de Direitos Humanos.

Jaime Caicedo afirmou que estes crimes por razões políticas obedecem à campanha de terror promovida por Iván Duque, com o propósito de garantir uma falsa estabilidade social.

O secretário geral do PC da Colômbia detalhou que o governo de Duque está transitando para um regime de Ditadura Civil, pois tem recorrido a uma série de medidas através de decretos ordinários, para adotar ações de controle militar nas principais cidades do país.

Finalmente, Jaime Caicedo assegurou que esta militarização tem um caráter profundamente repressivo, e que busca promover o ocultamento dos crimes de Estado, para tentar vitimizar-se diante da comunidade internacional.

De acordo com os dados divulgados por fontes locais, a repressão policial deixou 39 vítimas mortais e dezenas de desaparecidos e detidos. Entretanto, o presidente colombiano, Iván Duque, é alvo de múltiplas críticas por haver ordenado a militarização das cidades do país para reprimir violentamente os protestos pacíficos.

Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)

Fonte: Portal Radio Nuevo Mundo

https://www.pacocol.org/index.php/noticias/nacional/15374-audio-jaime-caicedo-pc-de-colombia-analiza-la-grave-crisis-social-la-represion-y-las-masivas-protestas