Repúdio ao revide violento das forças de segurança pública no Rio de Janeiro, e às violações aos direitos humanos que vêm sendo cometidas

Desde o dia 23 de novembro a rotina de algumas regiões do Rio de Janeiro foi alterada. Após algumas semanas em que ocorreram supostos “arrastões” (na verdade, roubos de carros descontinuados no tempo e no espaço), veículos seriam incendiados. Imediatamente, as autoridades públicas vieram aos meios de comunicação anunciar de que se tratava de um ataque orquestrado e planejado do tráfico de drogas local à política de segurança pública, expressa principalmente nas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Tal interpretação nos parece questionável, em primeiro lugar porque não foi utilizado o poderio em armas de fogo das facções do tráfico, e sim um expediente (incêndio de veículos) que, embora tenha grande visibilidade, não exige nenhuma logística militar. Em segundo porque, se o objetivo fosse um dano político calculado ao governo estadual, as ações teriam sido realizadas cerca de dois meses atrás, antes das eleições, e não agora. As ações, que precisam ser melhor investigadas e corretamente dimensionadas, parecem mais típicas atitudes desorganizadas e visando impacto imediato, que o tráfico varejista por vezes executa.

Seja como for, desde então, criou-se e se generalizou um sentimento de medo e insegurança. Esta imagem foi provocada pela circulação da narrativa do medo, do terror e do caos produzida por alguns meios de comunicação. Isto gerou o ambiente de legitimação de uma resposta muito comum do poder público em situações como esta: repressão, violência e mortes. Principalmente nas favelas da cidade. Além disso, mobilizou-se rapidamente a idéia de que a situação é de uma “guerra”. Esta foi a senha para que o campo da arbitrariedade se alargasse e a força fosse utilizada como primeiro e único recurso.

Repudiamos a compreensão de que a situação na cidade seja de uma “guerra”. Pensar nestes termos, implica não apenas uma visão limitada e reducionista de um problema muito complexo, que apenas serve para satisfazer algumas demandas políticas-eleitoreiras, mas provoca um aumento de violência estatal descomunal contra os moradores de favelas da cidade.

Não concordamos com a idéia da existência de guerra, muitos menos com seus desdobramentos (“terrorismo”, “guerrilha”, “crime organizado”) justamente pelo fato de que as ações do tráficos de drogas, embora se impondo pelo medo e através da força, são desorganizadas, não orgânicas e obviamente sem interesses políticos de médio e longo prazo. Parece que, ao mencionarem que se trata de uma “guerra” ao “crime organizado”, as autoridades públicas querem legitimar uma política de segurança que, no limite, caracteriza-se apenas por uma ação reativa, extremamente repressiva (que trazem consequências perversas ao conjunto dos moradores de favelas) e que, no fundo, visa exclusivamente e por via da força impor uma forma de controle social.

As ações feitas pelos criminosos e a resposta do poder público que ocorreram nesta semana, somente reproduz um quadro que se repete há mais de 30 anos. Contudo, as “políticas de segurança pública” se produzem, sempre, a partir destes eventos espetaculares, portanto com um horizonte nada democrático. É importante não esquecer que, muito recentemente, as favelas que agora viraram símbolo do enfrentamento da “política de segurança pública” já tenham sido invadidas e cercadas em outros momentos. Em 2008, a Vila Cruzeiro foi ocupada pela polícia. Em 2007, o Complexo do Alemão também foi cercado e invadido. O resultado, todos sabem: naquele momento, morreram 19 pessoas, todas executadas pelas forças de segurança.

As consequências práticas da idéia falsa da existência de guerra é o que estamos vendo agora: toda a ação de reação das forças de segurança, que atuam com um certa autorização tácita de parte da população (desejosa de uma vingança, mas que não quer fazer o “trabalho sujo”), têm atuado ao “arrepio da lei”, inclusive acionando as Forças Armadas (que constitucionalmente não podem ser utilizadas em situações como estas, que envolvem muitos civis, e em áreas urbanas densamente povoadas). Não aceitamos os chamados “danos colaterais” destas investidas recorrentes que o poder público realiza contra os bandos de traficantes. Discordamos e repudiamos a concepção de que “para fazer uma omelete, é preciso quebrar alguns ovos”, como já disseram as mesmas autoridades em questão em outras ocasiões.

Desde o começo do revide violento e arbitrário das polícias e das forças armadas, há apenas uma semana, o que se produziu foi uma imensa coleção de violações de direitos humanos em favelas da cidade: foram mortas, até o momento, 45 pessoas. Quase todas elas foram classificadas como “mortes em confronto” ou “vítimas de balas perdidas”. Temos todas as razões para duvidar da veracidade desse fato. Em primeiro lugar, devido ao histórico imenso de execuções sumárias da polícia do Rio de Janeiro, cuja utilização indiscriminada dos “autos de resistência” para encobrir tais crimes de Estado tem sido objeto de repetidas condenações, inclusive internacionais. Em segundo lugar, pelo que mostram as próprias informações disponíveis, o perfil das vítimas das chamadas “balas perdidas” não é de homens ou jovens que poderiam estar participando de ações do tráfico, e sim idosos, estudantes uniformizados, mulheres, etc. Na operação da quarta-feira (24/11) na Vila Cruzeiro, por exemplo, esse foi o perfil das vítimas, segundo o detalhado registro do jornalista do Estado de São Paulo: mortes – uma adolescente de 14 anos, atingida com uniforme escolar quando voltava para casa; um senhor de 60 anos, uma mulher de 43 anos e um homem de 29 anos que chegou morto ao hospital com claros sinais de execução. Feridos – 11 pessoas, entre elas outra estudante uniformizada, dois idosos de 68 e 81 anos, três mulheres entre 22 e 28 anos, dois homens de 40 anos, um cabo da PM e apenas dois homens entre 26 e 32 anos.

Além disso, a “política de guerra” produziu, segundo muitas denúncias feitas, diversos refugiados. Tivemos informações de que moradores de diversas comunidades do Complexo da Penha e de outras localidades não puderam retornar às suas casas e muitas outras ficaram reféns em suas próprias moradias. Crianças e professores ficaram sitiados em escolas e creches na Vila Cruzeiro, apesar do sindicato dos professores ter solicitado a suspensão temporária da operação policial para a evacuação das unidades escolares. As operações e “megaoperações” em curso durante a semana serviram de pretexto para invasões de domicílios seguida de roubos efetuadas por policiais contra famílias. Nos chegaram, neste sábado 27/11, depoimentos de moradores da Vila Cruzeiro que informavam que, após a fuga dos traficantes, muitos policiais estão aproveitando para realizar invasões indiscriminadas de domicílios e saquear objetos de valor.

Não bastasse tudo isso, um repertório de outras violações vêm ocorrendo: nestas localidades conflagradas, os moradores se encontram sem luz, água, não podem circular tranquilamente, o transporte público simplesmente deixou de funcionar, as pessoas não podem ir para o trabalho, escolas foram fechadas e quase 50 mil alunos deixaram de ter aulas neste período, e até toque de recolher foi imposto em algumas localidades de UPP, segundo denúncias. As ações geraram um estado de tensão e pânico nos moradores destas localidades jamais vistos. As favelas do Rio, que são verdadeiros “territórios de exceção” onde as leis e as garantias constitucionais são permanentemente desrespeitadas, em primeiro lugar pelo próprio Poder Público, vivem hoje um Estado de Exceção ainda mais agravado, que pode ser prenúncio do que pretende se estabelecer em toda a cidade durante a Copa do Mundo e as Olimpíadas.

Repudiamos, por fim, a idéia de que há um apoio irrestrito do conjunto da população às ações das forças de segurança. De que “nós” é esse que as autoridades e parte dos meios de comunicação estão falando? Considerando o fato de que a cidade do Rio de Janeiro não é homogênea e que existem diversas versões (obviamente, muitas delas não são considerados por uma questão política) sobre o que está acontecendo, como é possível dizer que TODA a população apóia a repressão violenta em curso? Certamente, esse “nós”, esse “todos” não incluem os moradores de favelas da cidade. E isso pode ser verificado a partir das inúmeras denúncias que recebemos de arbitrariedades cometidas por policiais.

Diante de tudo isso, e para evitar que mais um banho de sangue seja feito, e para que as violações e arbitrariedades cessem imediatamente:

* Exigimos que seja feita uma divulgação dos nomes e laudos cadavéricos de todas as vítimas fatais, bem como dos nomes das vítimas não fatais e suas respectivas condições neste momento;

* Exigimos também que seja dada toda publicidade às ações das forças de segurança, permitindo que estas sejam acompanhadas pela imprensa e órgãos internacionais;

* Exigimos que sejam dadas amplas garantias para efetivação, acompanhamento e investigação das denúncias de arbitrariedades e violações cometidas por agentes do Estado nas operações em curso;

* Exigimos que estas ações sejam acompanhadas de perto por órgãos públicos como o Ministério Público, Defensoria Pública, Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa e do Congresso Federal, Secretaria Especial de Direitos Humanos – SEDH, Subsecretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro, além de outras instituições independentes como a OAB (Federal e do Rio), que possam fiscalizar a atuação das polícias e das Forças Armadas.

Rio de Janeiro, 27 de Novembro de 2010.

Fonte: http://www.redecontraviolencia.org/Documentos/764.html