Rafael Braga e a luta de classe no Brasil: o “símbolo” incômodo
por Jones Manoel*
Esse texto é sobre a luta pela liberdade de Rafael Braga e, é claro, não pode deixar de comemorar sua recente prisão domiciliar para se tratar de uma tuberculose. Mas, para compreendermos de verdade o significado político e ideológico da luta pela liberdade da Rafael Braga, precisamos retroceder um pouco no tempo. Em fevereiro de 2015, Paulo Malvezzi, assessor jurídico da Pastoral Carcerária, concedeu uma importante entrevista à Revista Carta Capital. Nesse entrevista, Paulo, insuspeito de “antipetismo” dado às ligações históricas da Pastoral Carcerária com o PT, critica duramente a política penal dos anos do petismo no governo federal afirmando que esse partido continuou e ampliou a desastrosa política penal e carcerária dos governos anteriores (FHC, Collor, Sarney etc.), chama o governo Dilma de “extremamente repressivo” e assim define o petismo: “então, o governo federal do PT, na verdade, se caracterizou como o governo do encarceramento em massa” (grifos nossos).
Voltando ainda mais no tempo. Em 2010, durante a campanha eleitoral, o ex-presidente Lula disse, num discurso proferido no Rio de Janeiro, em palanque do PMDB, o seguinte: “Não vamos mandar polícia apenas para bater. A polícia vai lá bater em quem tem que bater. Proteger quem tem que proteger” (grifos nossos). Esse discurso de Lula é uma das expressões do apoio total e absoluto que o petismo, em âmbito federal e estadual, deu ao projeto de militarização das favelas cariocas via UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), criando zonas de exceção com lógica de guerra para garantir primeiramente os megaeventos e toda a especulação imobiliária correlata.
Mas por que começar um texto sobre Rafael Braga lembrando da política penal e carcerária do petismo? O desastre do atual governo Temer, infelizmente, está debilitando elementos importantes de nossa memória política recente. Os anos do PT no Governo Federal enquanto um projeto político de conciliação de classes em prol da burguesia, além de não buscar realizar qualquer reforma popular importante, não poderia atacar nenhum meio fundamental de dominação de classe no Brasil, antes fortalecê-lo. A política de “encarceramento em massa” dos governos Lula e Dilma não foi um erro de política governamental, mas um elemento indispensável do conteúdo político desse projeto, uma opção consciente de gestão da ordem dominante.
Desde Antônio Gramsci temos compreensão de que a classe dominante atua, basicamente, em duas frentes: na busca do consenso dos dominados através dos “aparelhos privados de hegemonia” como escolas, partidos políticos, jornais, redes de televisão, igrejas etc. e da repressão pela polícia, exército, direito penal, sistema carcerário etc. Em um país de capitalismo dependente como o Brasil, onde a superexploração da força de trabalho é a tônica da acumulação capitalista, é necessário para dominação de classe um Estado penal ampliado que pratique uma política de extermínio sistemática como forma de controlar os explorados e oprimidos. Combater a violência e o extermínio da política penal e carcerária, ou seja, dos aparelhos repressivos do Estado, seria uma forma de debilitar a ordem dominante, enfraquecer sua capacidade de conter os explorados e oprimidos. É claro que esse é um “limite” que a esquerda do capital (isto é, a esquerda que busca fazer a gestão “humanizada” do capitalismo) não pode transpor.
É por isso que, a despeito de todas e cada uma das diferenças entre os governos Sarney, Collor, Itamar Franco, FHC, Lula e Dilma, na política penal e carcerária, a semelhança é o que reina: militarização sempre crescente, encarceramento em massa, legitimação do extermínio da população negra e de indígenas, camponeses e quilombolas, violação sistemática dos direitos humanos, etc.
Agora podemos voltar para o “caso” Rafael Braga. Homem negro, trabalhador desempregado em situação de rua, nunca teve acesso aos direitos básicos e fundamentais “garantidos” no artigo quinto da constituição brasileira. Braga foi preso em junho de 2013 durante as grandes mobilizações de massa que acabaram com o sonho burguês do “país de classe média” sem problemas, acusado de portar material explosivo (coquetel molotov). Na verdade, como sabemos, o único condenado das manifestações de junho de 2013 estava com pinho sol na sua bolsa.
A partir disso, o nome de Rafael Braga ganhou o Brasil, mesmo com todo bloqueio dos monopólios de mídia que nunca dedicaram qualquer atenção ao caso. Rafael Braga se tornou um símbolo de Junho de 2013: o marco emblemático do primeiro grande movimento de massas não controlado pelo petismo em décadas que passou a clara mensagem de que o “neodesenvolvimentismo” não era capaz de satisfazer as necessidades dos trabalhadores – especialmente os jovens com dupla jornada de trabalho e estudo – e que sua crise estava no horizonte.
Como único preso das jornadas de junho, Rafael Braga também é um símbolo síntese do perfil dos encarcerados nas cadeias brasileiras. Segundo os dados disponíveis, dos mais de 600 mil presos no Brasil, 67% são negros, 53% tem ensino fundamental incompleto, 56% são jovens entre 18 e 29 anos (Rafael Braga tem 29) e a imensa maioria, quase a totalidade, são pobres. O sistema carcerário funciona como um depósito com função de controle e extermínio para a superpopulação relativa – ou seja, aqueles trabalhadores em situação de desemprego estrutural. A luta em torno da liberdade de Rafael Braga acaba jongando luz sobre a função sociopolítica desse sistema carcerário. O Racismo, o caráter de classe e a ausência de quaisquer resquícios de “Estado de direito” exibem suas entranhas.
Por tudo isso, Rafael Braga é um “símbolo” mais que incômodo. Ele é a expressão doo que a ordem dominante não pode tolerar, pois desnuda toda lógica de exploração, repressão e extermínio que fundamenta a sociedade brasileira. O silêncio assustador dos monopólios de mídia sobre o único preso das jornadas de junho tenta manter oculta a guerra civil não declarada contra os “favelados”, os trabalhadores pobres e negros desse país. Para a esquerda da ordem, os “humanizadores” do capitalismo, Rafael Braga é incômodo porque lembra que o petismo e seus satélites (PcdoB, UJS, Levante Popular, CUT, CTB etc.) garantiram a manutenção e ampliação da política penal e carcerária no interesse da classe dominante, o desastre para o país e os trabalhadores que foram os megaeventos (não nos esqueçamos do slogan “saúde e educação padrão FIFA”) e como Dilma, enquanto presidenta, nada fez pela liberdade de Rafael Braga.
Para os comunistas, a luta pela liberdade de Rafael Braga é uma marca no combate constante à militarização da vida e às formas de repressão e criminalização da classe dominante aos trabalhadores e suas organizações. É também um retrato do racismo brasileiro e da função sociopolítico do sistema penal e carcerário, bem longe da ideologia de garantir segurança a todos. Lutamos e vamos continuar lutando pela liberdade de Rafael Braga para que o sistema social que produziu essa dramática história seja destruído e substituído por uma sociedade verdadeiramente humana, emancipada, socialista. Uma sociedade sem exploração, opressão e sem prisões!
*Jones Manoel é formado em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Milita na União da Juventude Comunista (UJC).