A Rocinha como balão de ensaio
Muniz Ferreira*
Por uma destas coincidências que desafiam todas as probabilidades estatísticas, na mesma quinzena em que representantes da alta oficialidade militar saíram a público para defender propostas de uma intervenção saneadora e redentora das forças armadas na sociedade brasileira, consuma-se uma escalada quase sem precedentes do exército no Rio de Janeiro, em tempos de suposta “normalidade”, com a ocupação da comunidade da Rocinha.
Recorrendo-se a chavões discursivos, tomados de empréstimo das agências hegemônicas de preservação da “ordem” política e social, esgrimem-se argumentos que apregoam a existência de “um estado paralelo”, captura de territórios pelas “forças do crime” e corrupção do poder público pelo dinheiro do narcotráfico. Nem é necessário ser muito versado nos procedimentos da semiótica, da análise discursiva e da psicanálise para perceber as notórias inversões que aqui se realizam. Como num passe de mágica, forças militares de ocupação e repressão convertem-se em agentes “libertadores”, a organização autônoma da comunidade é esmagada em nome do “restabelecimento da ordem”, as forças de choque do poder político mais corrompido e dissoluto de que sem tem notícia na história recente do país e do estado, são instituídas em personagens moralizadores…
Laboratório de experiências autoritárias desde os tempos da ditadura militar, o Rio de Janeiro converte-se a cada dia em uma melancólica caricatura de si mesmo. De cidade diversa a cidade loteada. De centro cosmopolita à cidade leiloada nos pregões do capital internacional. De pólo da convivência e resistência democrática a campo de trabalhos precarizados, sub-remunerados e de extermínio de jovens negros e proletários.
Antes que a consciência socialista, democrática e progressista brasileira tenha concluído seu diagnóstico sobre o que se passa neste estado no momento presente, respondendo as indagações sobre quais são as causas do problema e quais as soluções efetivas, que tipo de estado temos e quem deve exercer o poder soberano no processo de reconstituição do tecido social brutalmente dilacerado, homens e mulheres da Rocinha, pais e mães, filhos e filhas, trabalhadores e trabalhadoras, muitos de origem nordestina e quase todos pretos, fitando a sociedade brasileira, através do espelho em que se reflete nossa própria imagem, proferirão a sentença: NÓS SOMOS VOCÊS AMANHÃ.
*Membro do Comitê Central do PCB