Os riscos na implantação da paz na Colômbia
É necessário um esforço de ambas partes e da comunidade internacional para evitar que o processo de paz se estanque
Enrique Santiago Romero
Conforme transcorrem os dias após a assinatura de paz entre o Governo Nacional e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC-EP), ocorrida em 24 de novembro passado, mais difícil fica o processo de implantação que deve tornar realidade o acordado e, desta forma, modernizar um país que apenas ressurge após 52 anos de cruel conflito armado interno. É necessário um esforço de ambas partes e da comunidade internacional para evitar que o processo de paz se estanque, com as nefastas consequências que isso teria.
Os atrasos na construção das 26 Zonas Veredais Transitórias de Normalização (ZVTN) foram o primeiro problema encontrado no processo de implantação. As ZVTN deviam estar construídas antes de 1° de dezembro de 2016, dia D. Nesse dia, as FARC estavam reunidas nos pontos prévios de concentração designados. Concordaram em entrar nas ZVTN sem que tivessem construído as infraestruturas mínimas acordadas: alojamentos, rede elétrica, serviço de saneamento básico e higiênico, água corrente e conectividade. Até a data de hoje é exceção a ZVTN que tenha construído ao menos 50% das infraestruturas. Visitei seis delas. Só em uma havia serviços sanitários-higiênicos instalados. Em nenhuma existia alojamentos construídos. Não há atendimento médico para além dos primeiros socorros, muitas vezes prestados pela própria guerrilha.
Nas ZVTN existem filhos de guerrilheiras, alguns recém-nascidos, e também dezenas de guerrilheiras grávidas. Por conta das demoras, as FARC acordaram com o Governo que pusesse à sua disposição materiais de construção para que eles mesmos façam as obras. Este compromisso está sendo cumprido apenas parcialmente. Não é que a guerrilha tenha problemas em viver em más condições. Estão acostumados. Porém, se a primeira obrigação do Governo no cronograma de implantação está sendo cumprida tardia e deficientemente, envia-se um péssimo sinal sobre a capacidade real das instituições colombianas a respeito do cumprimento do acordado. Vem à memória a histórica tradição dos diferentes governos do país de descumprir acordos de paz assinados, descumprimentos que, em inúmeras ocasiões, incluíram o posterior assassinato dos guerrilheiros que tinham assinado os acordos.
No Acordo Final se estabeleceu a aprovação urgente de uma Lei de Anistia que anistiasse os crimes de rebelião e conexos, conforme as leis em vigor na data de assinatura do termo final. À data de assinatura do acordo de paz, existiam aproximadamente 3.500 pessoas encarceradas por vínculos com as FARC-EP. Em torno de 700 podem ter direito à anistia estabelecida pela lei. O restante tem direito a ser solto em diferentes condições: liberdade condicional ou transferência para a ZVTN. Também existem uns 5.000 membros da Força Pública que são potenciais beneficiários dessa lei.
Em 30 de dezembro se aprovou a Lei de Anistia, que contempla sua aplicação de ofício ou a instância do solicitante. No entanto, os juízes não vêm aplicando tal lei. No início de fevereiro, apenas tinham outorgado 8 anistias e nenhuma liberdade condicional. Os juízes alegaram que a lei era deficiente e que eram necessárias algumas normas de procedimento para aplicá-la. Em 17 de fevereiro foi aprovado um Decreto presidencial que incluía o procedimento de aplicação elaborado pelos próprios juízes colombianos. No dia 6 de março passado, os juízes de execução de penas, os competentes na aplicação da anistia, se declararam em greve alegando falta de meios para aplicar a anistia. Até a data de hoje, foram aprovadas algo em torno de setenta anistia a guerrilheiros, cinco autorizações de transferência para ZVTN e nenhuma liberdade condicional. Não se tem notícias da aprovação de alguma medida equivalente a respeito dos membros da Força Pública.
A negativa dos juízes colombianos em cumprir a lei de anistia – salvo as muito dignas exceções indicadas –, além de ser inédita com relação aos anteriores processos de paz realizados na Colômbia ou em outros lugares do mundo, está gerando uma situação muito perigosa entre as bases guerrilheiras. Aumenta a desconfiança ante as instituições e o Governo que assinou o Acordo de Paz e, portanto, cresce a desconfiança sobre o descumprimento do acordado. Pode provocar uma situação de desconfiança e descontentamento com relação aos dirigentes da guerrilha, a partir do momento que os guerrilheiros podem interpretar que também estão sendo enganados por estes, já que tinham garantido um tratamento especial da justiça além da anistia. Esta situação pode estimular dissidências no seio das FARC-EP, dissidências que até hoje estão sendo muito reduzidas (menos de 4%, quando a média nos processos de paz com grupos rebeldes é de cerca de 20%).
As Garantias de Segurança – leia-se desmantelamento do paramilitarismo – são uma das mais importantes conquistas deste processo de paz. Não podemos esquecer que o Acordo Final foi obtido em um contexto no qual continua existindo violência de grupos paramilitares de extrema direita, permanece o enfrentamento do Estado com outros levantes armados – ELN – e seguem existindo importantes economias ilícitas. Tudo isso torna mais meritório o Acordo Final, que contém fortes compromissos para acabar com o paramilitarismo, fenômeno estrutural na Colômbia de longa data. O compromisso do Governo não é unicamente garantir o monopólio legítimo do Estado no uso da força e das armas, mas desmantelar as estruturas civis que durante décadas organizaram, financiaram, instigaram e aproveitaram política e economicamente os grupos paramilitares. Uma das medidas mais importantes é a criação de uma Unidade de Investigação especializada no desmantelamento de organizações paramilitares, com competência para desativar as estruturas políticas de apoio a estes grupos e suas estruturas econômicas de financiamento. A atual Procuradoria Geral da Nação (FGN, sigla em espanhol), ignorando o acordo de paz alcançado, tenta impedir a colocação em marcha desta Unidade Especial, uma vez que tenta modificar o acordo de Jurisdição Especial para a Paz (JEP), aproveitando o processo de implantação legislativa atualmente em curso e que também está resultando sumamente complexa devido à instável maioria parlamentar que apoia o Governo do presidente Santos. As propostas que formula a FGN têm sempre os mesmos dois objetivos: subtrair os civis pretensos financiadores, organizadores ou instigadores do paramilitarismo da JEP e mantê-los na jurisdição ordinária – onde sempre disfrutaram e disfrutam de impunidade – e também retirar da JEP o maior número possível de ações realizadas pelas FARC EP, tentando manter a competência da jurisdição ordinária, e da FGN, sobre elas, o que viola o estabelecido no acordo parcial que resultou ser o mais difícil de acordar, o relativo a Vítimas e Justiça. Por sua vez, a FGN não apresenta resultados importantes na investigação e punição dos crimes cometidos contra defensores dos direitos humanos, dirigentes políticos, sociais e campesinos que vem apoiando o processo de paz. O ano de 2016 e os primeiros meses de 2017 somam mais de 130 assassinatos. Desde a assinatura do Acordo de Paz de 24 de agosto de 2016, são quase 80 o número de pessoas pertencentes aos anteriores coletivos que foram assassinadas. A FGN nega constantemente a existência de um plano sistemático para atacar o processo de paz e as pessoas que o apoiam. Todo o anterior deteriora seriamente a confiança das FARC-EP acerca do cumprimento do acordo de Garantias de Segurança, supondo grave impotência com relação à segurança pessoal e integridade física que requer qualquer guerrilha para concluir um processo de abandono de armas.
Atualmente, não existe concretização nem colocação em marcha das políticas de reincorporação política e social das FARC-EP, uma vez abandonadas as armas. Após a realização do plebiscito de 2 de outubro, que repudiou o Acordo de Paz de 24 de agosto de 2016, se produziu um processo de renegociação no qual as FARC assumiram importantes modificações no sistema de Justiça Especial para a Paz, maiores limitações no regime de anistia e, sobretudo, reduções dos programas de reincorporação à vida civil dos antigos guerrilheiros, em especial redução das quantias econômicas destinadas a estes programas, mesquinha exigência dos defensores do não. O total do orçamento finalmente acordado para a reincorporação econômica e social das FARC-EP, é equivalente ao gasto de 10 dias de guerra.
Até a presente data, existe um atraso substancial no plano dos programas de reincorporação social e uma perigosa falta de recursos econômicos. Nenhum dos programas de reincorporação econômica e social começou a ser colocado em marcha, apesar de apenas em três meses, em 31 de maio, estar previsto que se conclua a existência das ZVTN, desapareçam as FARC-EP, surja o novo partido político sucessor da anterior organização e, desta forma, se dê o passo definitivo à reincorporação na vida social. Não é possível que até essa data os guerrilheiros se transfiram para seus lares, porque estes não existem após 52 anos de guerra ou décadas de permanência nas FARC-EP. Salvo exceções, não existem condições de segurança para que os antigos guerrilheiros voltem a residir nos lares de seus familiares, e isso no caso de suas famílias, em sua maioria campesinos em precárias condições de vida, terem à sua disposição os meios materiais para acolhê-los. Tampouco foram definidos os programas de acesso ao emprego, projetos produtivos, de desenvolvimento agrário ou de substituição de cultivos ilícitos.
Esta situação de indefinição de seu futuro imediato também provoca uma importante angústia entre a “guerrillerada”, que pode estimular a desconfiança interna no processo de paz e, portanto, as dissidências. Aproveitando esta situação, diferentes grupos criminosos desejosos de contar com pessoas experientes no manejo de armas, estão oferecendo aos guerrilheiros elevadas quantidades de dinheiro para cooptá-los.
As Nações Unidas vêm alertando sobre a alta porcentagem de fracasso que tiveram os programas de reincorporação à vida social dos grupos guerrilheiros que nas últimas décadas efetuaram o abandono de armas após assinar acordos de paz. Estes fracassos têm habitualmente como consequência o aumento da violência, da delinquência e das economias ilegais.
O processo de abandono das armas das FARC-EP começou no dia 1° de março de 2017 (D+90) e se concluirá no próximo dia 31 de maio (D+180). Apesar das dificuldades que vem atravessando o processo de implantação, as FARC-EP procederam ao início do abandono de 30% de suas armas no D+90. Uma segunda fase de abandono de outros 30% das armas se iniciará em 1° de abril e a fase de abandono do restante 40% de armas se iniciará em 1° de maio, devendo ser concluído todo o processo no dia 31 desse mês. O Acordo Final estabelece uma serie de garantias para as FARC-EP de índole Jurídica, de Segurança Pessoal e de Segurança Econômica e Social. Evidentemente, o cumprimento do acordado é uma obrigação recíproca para os assinantes de qualquer acordo. Da mesma maneira com que as FARC-EP estão cumprindo o processo de abandono das armas, o Governo e as instituições competentes deveriam cumprir com os conteúdos de segurança jurídica que lhes incumbem – aplicação da anistia e aprovação no Congresso das leis que ponham em marcha o Sistema Integral de Verdade, Justiça, Reparação e Não Repetição –, com os compromissos sobre segurança pessoal – desmantelamento do paramilitarismo e detenção dos responsáveis pelos crimes contra os defensores do processo de paz que vem ocorrendo –, assim como ao menos definir os programas de reincorporação econômica e social que necessariamente devem ser colocados em marcha antes de 31 de maio. Em caso contrário, em 1° de junho o processo de paz se verá arrastado para uma séria crise de implantação que, na prática, pode fazer fracassar todos os esforços deslocados por ambas partes desde o início do processo exploratório em fevereiro de 2012.
A Verificação e o Acompanhamento Internacional são, neste momento, uma necessidade urgente para o processo de paz. Até a presente data, o único mecanismo de verificação e monitoramento internacional do Acordo de Paz que funciona é o encarregado de monitorar e verificar o processo de Abandono de Armas – o Mecanismo de Monitoramento e Verificação das Nações Unidas (MMV), criado em janeiro de 2016. Ou seja, atualmente só está sendo monitorado e verificado o cumprimento das obrigações que incumbem às FARC-EP. No Acordo Final, unicamente se contemplam mecanismos de verificação dos pontos 3 “Garantias de Segurança” e 6 “Reincorporação da vida civil”, também a cargo das Nações Unidas. Hoje, o Governo colombiano não concretizou na ONU a forma de colocação em marcha deste mecanismo. Se prevê no Acordo Final um acompanhamento internacional na implantação de todos os pontos acordados, porém esses mecanismos internacionais de acompanhamento à implantação não foram postos em marcha, apesar das sucessivas petições das FARC-EP.
É evidente que em um acordo de paz que coloca fim aos 50 anos de conflito armado não resulta procedente que uma das partes pretenda que só se verifique, monitore ou acompanhe a implantação a respeito das obrigações que correspondam à outra parte, neste caso, relativas ao abandono das armas pelas FARC-EP. Para garantir a muito necessária implantação de todo o acordado ou ao menos parte do mais importante é imprescindível a presença ativa em ditos mecanismos da comunidade internacional. Também seria conveniente maior agilidade na implantação e um claro respeito ao acordado por parte de todas as instituições implicadas, não unicamente pelo Governo.
Enrique Santiago Romero é assessor das FARC-EP da Comissão de Prosseguimento, Incentivo e Verificação da Implantação do Acordo Final (CSIVI)
Fonte: http://internacional.elpais.com/internacional/2017/03/11/colombia/1489270999_052282.html