Colômbia: reflexões sobre a sentença da Corte Constitucional
Escrito por Farc
Quarta-feira, 15 de novembro de 2017
“Por enquanto, este processo de paz só pode ser salvo pela mobilização imensa do povo nas ruas”. Mensagem do Conselho Político da FARC sobre a Jurisdição Especial para a Paz.
Com a promulgação da sentença C-17 de 2017, a Corte Constitucional declarou exequível o ato Legislativo 001 de 2017, que cria o Sistema Integral de Verdade, Justiça, Reparação e Não Repetição; tênue esperança em um cenário de grandes dificuldades do processo por descumprimento de compromissos governamentais em todas as ordens e pela obstinação de congressistas e de outros atores institucionais empenhados em destruir a JEP, a paz, a reparação às vítimas do conflito e a participação política, esta última, na contramão do que foi determinado pela Corte.
Saudamos o conceito de exequibilidade proferido pela Corte Constitucional, porém devemos dizer que existem aspectos do mesmo que geram consequências adversas para a paz:
1. Desmembra o conceito de JEP negociado em Havana, concebido para todos os atores do conflito. No sentido estrito ficou como uma justiça concebida exclusivamente para as FARC.
2. Todo esforço para construir um regime com autonomia própria ficou sepultado. A solução de recursos de tutela contra resoluções ficou nas mãos da Corte Constitucional. A solução de conflitos de competência fica nas mãos da justiça ordinária; o mesmo se aplica ao regime disciplinar dos magistrados da JEP. Na contramão do pactuado, se impede a participação de estrangeiros nas deliberações das salas e tribunais.
3. Estimulou-se o regime de impunidade. Os privilégios foram estendidos a todos os beneficiados constitucionalmente. Ficaram liberados os agentes do Estado e civis: ministros, congressistas, promotores, procuradores, governadores, constituindo uma privilegiada casta de intocáveis. E sem falar dos terceiros, que também exonerados, devem estar felizes.
4. A ideia de estabelecer a JEP não era apenas para habilitar a transição da guerrilha para a vida civil e contribuir com a solução política do conflito. O objetivo também era superar o regime de impunidade que se deriva da justiça ordinária. Ao retirar os civis e agentes do Estado, como já foi dito, se preserva a impunidade e se despreza as vítimas. Não contribui em absoluto com o esclarecimento da verdade.
5. Habilita-se a participação política em termos gerais, o que é positivo, porém, ao mesmo tempo, se estabelece um regime de condicionalidade que só se aplica aos ex-guerrilheiros. Rompe a simetria e, ao mesmo tempo, deixa-se as portas abertas para a perda fácil dos benefícios.
6. Ainda que não se refira explicitamente ao tema da extradição, se assinala que o descumprimento de qualquer das exigências do regime de condicionalidade leva “à perda de tratamentos especiais, benefícios, renúncias, direitos e garantias, segundo o caso”. Falta esperar para ver que o diz a sentença.
À exceção de conhecer nas próximas semanas o texto completo da Sentença da Corte, e a partir do respeito às resoluções imparciais e equilibradas dos tribunais de justiça em um estado de direito, queremos tornar pública nossa preocupação com os pronunciamentos da Sentença que declaram inexequíveis alguns dos conteúdos do Sistema Integral. Entendemos que dita declaração de inexequibilidade altera conteúdos acordados entre as partes e, portanto, seria contrário, tanto ao princípio geral de obrigado cumprimento dos acordos, como a norma constitucional aprovada pelo AL 002 de 2017, já declarada plenamente exequível pela Corte Constitucional. Esta norma obriga a todas as autoridades e instituições do Estado a cumprir fielmente o conteúdo dos acordos de paz; também em sua implementação normativa.
Muitos dos apartes declarados inexequíveis violam a autonomia da Jurisdição Especial para a Paz a respeito da Justiça ordinária colombiana. Não é possível esquecer que o Acordo Final foi obtido sobre a premissa de que a justiça ordinária atuou durante o conflito de forma parcial, convertendo-se em determinados momentos em uma ferramenta a mais de guerra e de impunidade do poder executivo. Sirva como exemplo o flagrante descumprimento da lei de anistia por parte de autoridades judiciais, que impediram a colocação em liberdade de todos os membros das FARC depois de mais de 10 meses de vigência. Por efeito da premeditada desfiguração do crime político, 75% dos guerrilheiros foram feitos prisioneiros, acusados de crimes comuns.
A declaração de inexequibilidade das normas que permitem que a competência da JEP se estenda sobre terceiros civis ou agentes do estado não combatentes com graves responsabilidades na comissão de crimes internacionais, contribui para manter a situação de impunidade estrutural que existiu no conflito a respeito destes setores; impunidade vastamente conhecida pela comunidade internacional e destacada em todos seus informes periódicos sobre a Colômbia pela Procuradoria da Corte Penal Internacional. Um dos eixos do Acordo Final é a necessidade de acabar com qualquer situação de impunidade, única forma de garantir plenamente os direitos das vítimas, que como bem sabe toda a Colômbia, não foram garantidos suficientemente durante o conflito, nem pela Procuradoria Geral da Nação, nem pela Promotoria, nem por nenhuma outra instituição. Aí estão como mostra as 15.000 cópias de provas sobre o paramilitarismo e responsabilidades de civis derivadas da jurisdição de Justiça e Paz que nunca foram processadas pela justiça colombiana.
Com relação ao anterior, reiteramos que nos parece preocupante a interpretação que a sentença parece fazer do Acordo Final e do objetivo da JEP, como se esta tivesse sido acordada unicamente para tratar o relativo às atuações dos combatentes do conflito e em especial o relativo às condutas da guerrilha. Nos preocupa que as condicionalidades descritas no Comunicado sejam exclusivamente a respeito dos insurgentes, obviando que o Sistema Integral tenha sido criado para examinar as responsabilidades de todos os atores do conflito. Nos parece inconveniente que entre as condicionalidades, se mencionem algumas que fazem referência a delitos anistiáveis e, portanto, não graves, e se obviem outras relativas a graves crimes internacionais cometidos por grupos paramilitares e a força pública.
Efetivamente, o Acordo Final prevê condicionalidades para disfrutar os benefícios do sistema acordado, porém em nenhum estado de direito o descumprimento das condições de um sistema jurídico faz nenhuma pessoa perder seus direitos. Dita possibilidade não pode ficar esboçada no comunicado da sentença. A proibição de extradição, tal e como ficou no Acordo Final, é um direito e não um benefício; e modular, limitar ou tornar sem efeito essa proibição, constituiria um flagrante e muito grave descumprimento do acordo, especialmente quando a constituição colombiana ou os tratados internacionais não estabelecem nenhuma obrigação de extradição para nenhuma pessoa.
A constituição colombiana estabelece uma clara divisão de competências entre o poder legislativo, ao qual corresponde acordar as leis, e o judicial, ao qual corresponde elaborar a jurisprudência. Se dita jurisprudência estabelecesse que o acordo final viola normas constitucionais, não resta dúvidas que é obrigação do Estado, para cumprir o acordado, modificar as normas constitucionais que se choquem com o Acordo Final, naquilo que não viole os tratados e convênios internacionais em matéria de Direitos Humanos e DIH.
Pedimos respeitosamente à Corte Constitucional que tenha presente que o Acordo Final foi obtido com a finalidade primordial de acabar com o conflito e com a impunidade, a derivada da atuação de qualquer ator, e que o sistema de justiça acordado ou suas condicionalidades não podem alcançar exclusivamente a um dos muitos atores do conflito, mas a todos; tenham vestido uniforme ou não, tal e como estabelece o direito internacional.
Que se respeite o conteúdo do acordado em Havana.
Por enquanto, este processo de paz só pode ser salvo pela imensa mobilização do povo nas ruas.
CONSELHO POLÍTICO NACIONAL (FARC)
Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)