Natureza e persistência do Terrorismo de Estado na Colômbia
Agência Bolivariana de Imprensa
A vídeo-conferência que se apresenta ao final deste texto foi gravada e enviada a pedido da Fundação Pátria é Solidaridade, a qual, há vários anos trabalha em função de visibilizar a situação das e dos prisioneiros políticos na Colômbia e ao redor do mundo, assim como denunciar suas condições e exigir seus direitos, fundação esta que, na atualidade, coordena com o nascente partido Força Alternativa Revolucionária do Comum (FARC) na Venezuela.
Este vídeo foi apresentado no seminário “Autodeterminação popular, terrorismo de Estado e prisioneirxs políticxs” realizado no dia 22/04, na cidade de Caracas, berço do Libertador, e que foi organizado juntamente com a Fundação internacionalista Pakito Arriaran. O evento contou com a participação de oradores representantes da Euskal Herria, dos EUA e da Venezuela. O tema da luta do povo curdo também foi abordado.
Os oradores que intervêm neste vídeo são: Jesús Santrich, licenciado em Ciências Sociais da Universidade do Atlântico, com pós graduação em História, intelectual e artista, anteriormente Comandante do Bloque Caribe e membro do Estado maior central das FARC-EP (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo), na atualidade integrante do Conselho Nacional das Comunas do partido Força Alternativa Revolucionária do Comum (FARC); José Zamora, anteriormente militante das FARC-EP (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo), hoje integrante do partido FARC ( Força Alternativa Revolucionária do Comum), professor, teatrólogo e prisioneiro político há cerca de 20 anos, durante os quais liderou a luta das e dos prisioneiros políticos por seus direitos e reivindicações.
A palestra se titula “Natureza e persistência do Terrorismo de Estado na Colômbia”, e está composta pela intervenção de Jesús Santrich, que define o conceito de terrorismo de Estado e o relaciona à realidade colombiana, na qual o Estado historicamente apresenta um duplo padrão: se diz representar a “democracia mais antiga da América Latina”, ao mesmo tempo em que agentes do Estado cometem crimes de lesa humanidade contra a população, ou contribuem para que fatos como estes permaneçam sob absoluta impunidade.
Igualmente se menciona a “Doutrina de Segurança Nacional” como um elemento chave para caracterizar o Estado colombiano como terrorista. Esta doutrina concebe a própria população colombiana como o “inimigo interno” que deve ser liquidado se representar a mínima expressão organizativa ou subversiva. Isto na Colômbia tem se traduzido na perseguição e assassinato de lutadores e líderes sociais, camponeses, estudantes, sindicalistas, jornalistas alternativos, dentre muitos.
A existência de mais de oito milhões de vítimas do conflito armado interno na Colômbia é sem dúvida um dos resultados desta Doutrina, conforme expressa Santrich.
Mais adiante, explica Santrich, “o Estado mudou sua estratégia de terror para que os crimes mais graves e visíveis, como os massacres, as desaparições forçadas e as execuções extrajudiciais, não fossem mais atribuídas a integrantes da força pública, mas sim a grupos paramilitares”.
José Zamora, por sua parte, dá conta do terrorismo de Estado materializado no sistema judicial que tem provocado a existência histórica de um grande número de prisioneiros(as) políticos(as) nos cárceres da Colômbia, nas piores condições humanitárias.
Finalmente, o caráter terrorista do Estado colombiano segue presente hoje, apesar do processo de Paz de Havana, e se reflete precisamente no total descumprimento por parte do Estado quanto aos compromissos adquiridos nos marcos do dito Acordo.
José Zamora assinala, neste sentido, que ainda permanecem mais de 600 prisioneiros(as) políticos(as) nos cárceres, apesar de que a sua anistia foi firmada no ano de 2016, nos marcos do Acordo.
O companheiro Jesús Santrich apresenta, inclusive, a opinião segundo a qual este total descumprimento da parte do Estado colombiano obriga a considerar o Acordo de Paz de Havana como um acordo falido.
Fonte: https://www.facebook.co
https://www.youtube.com/watch?
Documento de apoio à apresentação ‘Natureza e persistência do terrorismo de Estado na Colômbia’
Por Jesús Santrich e José Zamora
“Assim protegido, como eu supunha, por todos os flancos, comecei a disfrutar da estranha impunidade que me conferia minha posição. / Muitos homens pagaram a outras pessoas para que estas levassem a cabo seus crimes, enquanto eles mesmos e sua reputação se encontram a salvo”.
(El extraño caso del Doctor Doutor Jekyll y Mister Hyde, Robert Louis Stevenson. Ed. Oveja Negra, pág. 201, ed. 1982).
Existe terrorismo de Estado quando são cometidos crimes de lesa humanidade por agentes estatais ou por particulares que atuam com promoção do Estado e aqueles que exercem o controle do Estado asseguram de que estes crimes fiquem na impunidade. Assim, o sistema judicial se torna cúmplice para não investigar nem sancionar ditos crimes.
A impunidade jurídica é acompanhada também da impunidade midiática e da impunidade política. Os assassinos são premiados pelo Estado. Caso se trate de militares ou de policiais, recebem o rótulo de herois, são dadas condecorações, são promovidos aos mais altos cargos do escalão das forças militares e o aparato judicial que, por sua vez, gera impunidade para eles, é utilizado de forma implacável para reprimir o povo, seus líderes sociais, para criminalizar as lutas de reivindicação de direitos humanos.
O terrorismo de Estado não necessariamente se identifica com uma ditadura militar. É o caso da Colômbia, onde aqueles que exerceram e continuam exercendo o terrorismo estatal contam com poder econômico político e militar.
O Estado colombiano se apresenta como a democracia mais antiga e estável da América Latina[1], com instituições como a Procuradoria Geral da Nação, a Defensoria do Povo ou a Corte Constitucional e com “o catálogo de direitos humanos mais amplo do mundo”. “Bondades institucionais, sem dúvida, respaldadas por funcionários de altas capacidades e com vocação de democratas”.
A máscara do terrorismo de Estado
O trecho do relato de Stevenson que me serve de epígrafe nos permite fazer uma comparação sobre a disfuncionalidade do Estado colombiano a respeito da violação ou proteção dos direitos humanos, sobre a busca da justiça ou a consagração da impunidade, sobre a busca da paz ou a afirmação do terrorismo.
Como no caso de Harry Jekyll e de Edward Hyde, no qual uma só pessoa era, por sua vez, uma figura respeitável e um assassino sem escrúpulos; o Estado conjuga um lado “amável, civilizado e democrático”, com um lado obscuro que propicia a barbárie e o terror.
Porém, o tempo todo o Estado tem sido funcional aos interesses de dominação e de exclusão[2], instrumentalizado por aqueles que exercem o controle sobre os principais recursos econômicos do país, e com o sustento de uma classe política profundamente corrupta e de umas Forças Armadas que consideram sua principal missão defender a ‘gente de bem’ e combater o inimigo interno[3].
O surgimento, desenvolvimento e expansão dos grupos insurgentes na Colômbia, vai consolidar o papel das Forças Armadas como garantidores do status quo. Estas últimas adquiriram tal autonomia no controle da “ordem pública”, que lhes possibilitaram converter-se em um fator real de poder acima da institucionalidade democrática[4].
Os mais de oito milhões de vítimas do conflito armado interno na Colômbia, mais além da degradação da guerra, são o resultado da aplicação da chamada Doutrina de Segurança Nacional, cujas sequelas persistem apesar do fim Guerra Fria, como a promoção ou conivência com tais crimes por parte daqueles que detém o poder político e econômico. O que permitiu qualificar ditas práticas como o exercício do Terrorismo de Estado na Colômbia: “O terrorismo, sobretudo quando assume formas institucionais ou sistemáticas a partir das instâncias de poder, vai moldando uma sociedade sem alternativa, curvada aos interesses aos quais serve. Este é o verdadeiro fim do terrorismo, que alcança sua expressão mais acabada no Terrorismo de Estado: chantagear, mediante a ameaça de perder a vida, a integridade ou a liberdade, todo cidadão indiscriminadamente, para que aceite o modelo de sociedade e de Estado que é oferecido. Se não o faz, seus valores mais essenciais de ser humano vão correr riscos progressivos, não delimitados por espaços ou regras de jogo definidas ou precisas”[5].
O Terrorismo de Estado se alimentou de medidas legais, coercitivas abertamente violadoras das liberdades fundamentais, através das declaratórias de Estado de Sítio, assim surge o Estatuto de Segurança do governo de Turbay Ayala em 1978, e a legislação da Ordem Pública em 1988. Também se facultou legalmente as Forças Armadas para envolver os civis em ações militares – formação de grupos de “autodefesa” ou paramilitares – ou em atividades de inteligência – Decreto 3.398, de 1965, Lei 48, de 1994, por meio do qual se criam as Convivir.
A diminuição das faculdades legais ao Estado para restringir, desconhecer ou violar os direitos humanos;; se acompanhou de uma pressão crescente da comunidade mundial para que o Estado cumpra suas obrigações internacionais em matéria de direitos humanos e do direito internacional humanitário. Neste contexto, o Estado não pode aparecer mais como um instrumento de terror e necessita ao menos demarcar formalmente o campo com os executores da guerra suja.
O terrorismo de Estado pode ser definido também como o transbordamento da institucionalidade ou da legalidade por parte de atores estatais através operações sigilosas ou de particulares que atuam sob a aquiescência de diferentes autoridades, com o objetivo de violar os direitos mais fundamentais da pessoa humana, considerados como parte do “inimigo interno” ao qual se quer destruir[6].
Já em 1963, um Manual do Exército da Colômbia estabelecia que “Na Guerra moderna, o inimigo é difícil de ser definido… o limite entre amigos e inimigos está no próprio seio da nação, em uma mesma cidade, e algumas vezes, dentro da mesma família… Todo indivíduo que de uma ou outra maneira favoreça as intenções do inimigo, deve ser considerado como traidor e tratado como tal”[7].
Assim visto, qualquer forma de oposição social, política ou, inclusive, de controle ou julgamento sobre aqueles ultrapassarem os limites legais na luta contrainsurgente, serão considerados como consubstanciais à “guerra jurídica e política da subversão”. Outro manual do Exército, editado pelo Comando Geral em 1987, considera que a guerrilha composta pela “população civil insurgente e grupo armado”, onde os primeiros estariam integrados aos “movimentos sindicais, estudantis, camponeses, políticos…” –teriam como missão – “executar ações de tipo civil dentro das estruturas formais da sociedade para desgastar, desmoralizar, deslocar e, finalmente, eliminar as “instituições fundamentais da Nação”[8].
Assim, são as coisas na Colômbia. O Estado mudou sua estratégia de terror para que os crimes mais graves e visíveis, como os massacres, os desaparecimentos forçados e as execuções extrajudiciais, já não fossem atribuídos a integrantes da força pública, mas a grupos paramilitares.
O paramilitarismo, eufemisticamente chamado e justificado como grupos de “autodefesas”, é basicamente um projeto de terror, utilizado também pelo Estado para apresentar-se como vítima do confronto entre a extrema esquerda e a extrema direita. Afirmou-se, assim, um discurso que gera impunidade política, no qual o Estado resultaria sendo uma vítima e não vitimizador principal.
Por outro lado, e apesar do processo de paz, e ainda que se reconheça avanços importantes na diminuição da violência política, existem traços do terrorismo estatal que persistem em setores importantes do estado e da sociedade colombiana. A subcultura do extermínio e do ódio impedem que se materialize os espaços democráticos que demanda o povo colombiano. Assim, por exemplo, existem mais de 600 ex-combatentes das FARC que continuam privados de sua liberdade, apesar da lei 1.820, de dezembro de 2016, que deveria ter sido aplicada plenamente em relação à anistia e indulto. Juntamente com o citado anteriormente, foram assassinados mais de 40 integrantes do novo partido político, o que gerou novas desconfianças no processo de implementação dos acordos de paz, as garantias para a participação democrática foram nulas até o ponto de forças a retirada da candidatura presidencial do partido.
Fonte: http://www.abpnoticias.org/images/pdf/documento_apoyo_trichi.pdf
Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)
[1] Uma análise relevante sobre o particular, e o desenvolvimento do paramilitarismo como “o trabalho sujo da contrainsurgência e contra-delinquência” alentada pelo Exército unido aos interesses de máfias, latifundiários, políticos tradicionais, pode ser lido no artigo de Estanislao Zuleta ‘’La Violencia Política en Colombia’’ Revista Foro, No. 12, Junho de 1990, págs. 11-21.
[2] Na Colômbia, “O papel do Estado tem sido, acima de tudo, o de garantir as condições para o crescimento dirigido pelo setor privado. \ A relação do Estado com o povo é, em consequência, de descuido e, em muitas regiões, de abandono. A modernização e expansão de um setor da economia foram feitas sem consideração alguma com os direitos e as necessidades da maioria da população”. (PEARCE Jenny, Colombia dentro del Laberinto, Altamir Ediciones, 1992, pág. 115.
[3] Desde antes de surgirem e se consolidarem os movimentos insurgentes na Colômbia, as Forças Armadas já estavam imbuídas de um profundo espírito anticomunista e de serviço ao capital nacional e transnacional. Um exemplo disso foi o Massacre das Bananeiras, em 1928, no qual o General Cortés Vargas, seguindo ordens do governo central, massacrou centenas de trabalhadores que, em greve, reclamavam melhores condições trabalhistas à United Fruit Company.
[4] A emergência de uma nova ordem constitucional em 1991, produto dos acordos de paz com alguns movimentos insurgentes reinseridos, possibilitou a consagração do Estado Social de Direito e de mecanismos expeditos para tornar viável a reivindicação dos direitos fundamentais e a participação cidadã – habeas corpus, ações de tutela, ações populares, iniciativa popular, legislativa, revogação do mandato, etc. – Mas, no entanto, não se alterou no fundamental as prerrogativas da Força Pública, e muitos decretos nascidos das declarações de Estados de Sítio se mantiveram como legislação permanentes; ao mesmo tempo, se sentaram as bases do aprofundamento do modelo neoliberal.
[5] GIRALDO Javier S.J., El Terrorismo de Estado, en Justicia y Paz, Revista de Derechos Humanos, janeiro-março de 1997, pág. 14.
[6] A guerra irregular que empreendem os grupos insurgentes quando superam os mínimos humanitários contemplados no art. 3º, comum dos Convênios de Genebra e o Protocolo II, contribui com a degradação do conflito armado, servindo como pretexto para o desenvolvimento da guerra suja.
[7] La Guerra Moderna, Ejército de Colombia, Biblioteca del Ejército, Bogotá 1963, págs. 32 –33.
[8] Citado em Tras los Pasos Perdidos de la Guerra Sucia, Paramilitarismo y operaciones encubierta en Colombia. Ediciones NCOS, 1995, Bruxelas, pág. 18.