O ponto de vista comunista sobre o segundo turno
Por Gabriel Landi Fazzio
O “mal menor” é a palavra de ordem permanente da esquerda liberal. Essa é a própria essência daquilo que se chama “oportunismo” na esquerda. Mas se os comunistas realmente acreditam que haja o perigo do fascismo e estão sinceramente combatendo-o; neste caso irão votar até mesmo em um liberal, sem qualquer barganha, a fim de evitar que os reacionários fortaleçam suas posições na luta contra a classe trabalhadora e as camadas oprimidas do povo!
O segundo turno das eleições costuma ser o momento em que toda a podridão do sistema eleitoral burguês fica mais evidente. Os discursos dos candidatos se flexibilizam, quando não se descaracterizam completamente, em nome de atrair novos eleitores. Adversários políticos trocam apoio mediante negociatas envolvendo os futuros ministérios. É a época das fotografias mais cínicas, dos apertos de mãos mais hipócritas, das publicidades mais apelativas. Toda a esquerda reformista (ou, como ela gosta de se chamar em nossa época, “democrático-popular”, uma fórmula na qual por ‘popular’ deve-se entender ‘social’ e por ‘democrático’ deve-se entender ‘liberal’) se mete nesse pântano sem pensar duas vezes – seja trocando cargos por apoio ou trocando apoio por cargos, e fazendo significativas concessões à direita no programa de seus candidatos que concorrem em segundo turno. A esquerda revolucionária, por sua vez, raramente vê suas candidaturas próprias nestas rodadas eleitorais. É obrigada, então, a definir qual a sua tática perante o segundo turno.
A militância comunista, como toda a população eleitora (em especial as pessoas que apoiaram as candidaturas menos votadas), é cobrada publicamente a se reposicionar: é interpelada pela afirmação de que, caso não mude seu voto, será tão responsável pela vitória do adversário quanto os próprios apoiadores deste! Um bom indicador dessa pressão em todo o eleitorado é o número de abstenções e votos nulos e brancos em cada um dos dois turnos. Nas últimas décadas, algumas vezes oscilou para cima, mas raramente em grande proporção; outras vezes, tais cifras de abstenções reduziram significativamente, sob a maré desesperada dos realinhamentos gerais e das campanhas eleitorais catastrofistas em segundo turno.
Desde 1988, a Constituição brasileira estabelece a possibilidade de segundo turno em eleições para a Presidência, o Governo e as Prefeituras de cidades com mais de 200 mil habitantes. Caso nenhuma candidatura tenha mais da metade dos votos válidos em primeiro turno, uma nova votação é realizada entre as duas mais votadas. O argumento a favor desse sistema é que, supostamente, ele evitaria a eleição de uma candidatura que não represente a “vontade da maioria”. Mas uma observação atenta coloca em dúvida esse argumento: a “maioria” que o segundo turno gera não é realmente “a vontade da maioria”. Na verdade, a própria existência de um segundo turno comprova que não pode se firmar uma maioria absoluta no primeiro momento, quando as vontades podem se expressar mais amplamente. Essa “segunda chance” à maioria para formar uma vontade comum é acomodação geral da vontade das minorias em torno das vontades de uma ou outra minoria relativamente maiores – minorias estas que, também, não foram por si próprias majoritárias no primeiro turno. Visto desse modo, se evidencia a limitação das supostas “vantagens” da existência de um segundo turno – sem que sequer tenhamos que questionar a própria ideia de que a soma dos votos pessoais, em uma democracia dos ricos, seja a melhor forma de auferir a “vontade da maioria”.
Se não houvesse segundo turno, a maior minoria elegeria sua candidatura, e essa teria de governar sem o respaldo formal da maioria. Existindo o segundo turno, a segunda maior minoria pode atrair o apoio de outras e vencer a maior minoria; ou a maior minoria pode englobar outras menores, e manter-se relativamente maior. Em todo caso, essa minoria se elege para governar sob o respaldo formal da maioria, mesmo que esta candidatura sabidamente não seja a mais precisa representação de sua vontade. É certo que há diferenças entre um sistema e o outro (eleições com ou sem segundo turno, como na Segunda República no Brasil). Mas, em nenhum caso, a diferença é realmente a garantia da “vontade da maioria” – apenas sua aparência, sua forma; e as consequências disto para a legitimidade da candidatura eleita.
Nesse sentido, o segundo turno tem um efeito relativamente estabilizador sobre a ordem política. Sem o segundo turno, toda a futura oposição ao governo eleito estaria ideologicamente facilitada, e a legitimidade deste relativizada. Mas o objetivo do presente texto não é, como pode parecer até aqui, defender o fim do segundo turno. Esse tipo de subterfúgio formal não poderia transformar a essência da democracia eleitoral burguesa, nem mesmo a essência do poder governamental sob o capitalismo, com todos seus laços de dependência que o atam à Bolsa, aos bancos e aos grandes proprietários rurais, industriais e comerciais. Em eleições mais ou menos sabotadas, mais ou menos fraudulentas, a perspectiva dos revolucionários comunistas segue a mesma: participar nas eleições apenas de modo a ampliar sua organização e influência, com vistas à derrubada revolucionária do Estado capitalista e a constituição do Poder Popular, rumo ao socialismo.
Há dois anos, durante as eleições de 2016, busquei sintetizar em um artigo os traços mais gerais da tática comunista no que diz respeito à participação ou à abstenção no processo eleitoral burguês. Partindo da questão do voto nulo, busquei apresentar a essência da tática eleitoral comunista. E, no fundamental, ainda sustento todos os pontos de vistas daquele texto – feita apenas uma ressalva. E é precisamente por conta dessa ressalva que escrevo, agora, uma análise mais minuciosa sobre a questão do segundo turno – uma questão que, no artigo anterior, foi apresentada com uma rapidez que merece reparo, tanto mais porque, em seu conteúdo, generaliza verdades que são apenas relativas, e cuja relatividade deve ser concretamente avaliada agora.
Uma autocrítica
No texto “O ponto de vista comunista sobre o voto nulo”, abordei a questão do segundo turno de um modo superficial e pouco cuidadoso. Mesmo quanto a seus princípios metodológicos, o trecho em que abordo a questão destoa do conteúdo geral do texto. Ao longo de todo artigo, busquei diferenciar a tática comunista das táticas “de princípio” reformistas e esquerdistas: nem a participação como princípio absoluto, nem a abstenção como princípio absoluto, mas a avaliação da tática correta com base na situação concreta. Ao abordar o tema do segundo turno (e, em relação a ele, ao tema do “mal menor”), contudo, a abordagem apressada da questão me conduziu, como que por princípio, para a pregação da abstenção.
Eu reconhecia que “na ausência de uma candidatura própria do proletariado”, este “não simplesmente deixará de votar, em sua maioria – mas votará em alternativas burguesas”. Contudo, eu não estabelecia qualquer diferenciação entre as candidaturas burguesas possíveis (a concretude na análise é o erro fundamental que me levou à generalização principista). Por isso mesmo, me punha do ponto de vista de que “o apoio, em segundo turno, a uma candidatura que não represente o ponto de vista do socialismo revolucionário apenas[aqui reside uma generalização imperdoável] contribuiria para disseminar confusões”, e significaria que nos deixamos “subornar pela fraseologia dos democratas” sobre o perigo do “mal maior”.
Em vez de citar o trecho em extenso, prefiro submeter à crítica seus equívocos mais evidentes. Mas, prontamente, é preciso afirmar: se no primeiro turno a abstenção ou a participação só pode ser avaliada com base na situação concreta da luta de classes; também no segundo turno a escolha entre a abstenção e o apoio ao “mal menor” só pode ser tomada com base na análise concreta da situação! Apenas esta pode ser a apreciação correta da questão – apreciação delicada, é evidente, e que coloquei em segundo plano em nome do combate ideológico ao oportunismo, caracterizado por sua defesa de princípio do apoio ao “mal menor”. No contexto eleitoral de 2014 e mesmo de 2016, tal erro poderia passar desapercebido. Mantê-lo no contexto eleitoral de 2018, por outro lado, seria um erro crasso.
Para analisar estes equívocos, seria pertinente investigar, antes, a posição clássica dos revolucionários comunistas no que diz respeito à questão do segundo turno e do “mal menor”. Assim como no artigo anterior, esse recurso pode ser bastante instrutivo, se buscarmos nessas “consultas” aos clássicos compreender o modo materialista dialético de raciocinar sobre a questão, mais do que a mera “aplicação” mecânica de prescrições.
Engels sobre o segundo turno
Na Alemanha, sistema eleitoral escolhido para a composição do Reichstag foi um sistema distrital. No Brasil, os assentos do parlamento são divididos proporcionalmente entre as coligações partidárias, conforme sua votação. No caso alemão, cada distrito eleitoral tinha o direito de enviar um representante ao parlamento, elegendo este pelo sistema de voto majoritário. Nesse sistema surgiu pela primeira vez a eleição em segundo turno – não para a presidência ou os governos (cuja nomeação era privilégio do Imperador), mas para o próprio parlamento!
O Partido Social-Democrata Alemão, no qual Marx e Engels atuavam, tomou parte nestas eleições desde o princípio. O marxismo foi a primeira tendência revolucionária proletária a defender, na teoria e na prática, a participação dos socialistas nos parlamentos burgueses. Combatendo todas tendências abstencionistas, a política comunista compreendia a participação dos partidos proletários na vida política nacional como parte indispensável do processo de organização e constituição da consciência revolucionária da classe trabalhadora. Em discurso realizado no ano de 1871, pouco após a insurreição em Paris, Engels afirmava:
“A abstenção absoluta em matéria política é impossível; por isso, todos os jornais abstencionistas fazem política. Trata-se apenas de como se a faz e de qual. Quanto ao resto, para nós, a abstenção é impossível. O partido operário existe já como partido político na maior parte dos países. Não nos compete arruiná-lo, pregando a abstenção. A experiência da vida atual, a opressão política que lhes é imposta pelos governos existentes para fins quer políticos quer sociais; força os operários a ocuparem-se de política, quer eles queiram quer não. Pregar-lhes a abstenção seria empurrá-los para os braços da política burguesa.”
Assim sendo, diversos dos escritos de Marx e Engels (em especial as suas cartas) abordam questões de tática política e eleitoral. Alguns escritos de Engels, nos seus últimos anos de vida, são especialmente ilustrativos a esse respeito, em especial sobre nosso tema principal.
Em uma carta a Paul Lafargue, em 25 de fevereiro de 1893, Engels comentava sobre a tática comunista correta a ser adotada frente as eleições parlamentares francesas:
“[…] Quanto aos Socialistas Radicias a la Millerand & Cia, [Millerand foi, em 1880, um radical pequeno-burguês; justando-se aos socialistas nos anos 90 e tornando-se líder da tendência oportunista do movimento francês; aderindo finalmente aos quadros do governo burguês reacionários de 1899. N.T.] é absolutamente essencial que a aliança com eles deva estar baseada no fato de que nosso partido é um partido separado, e que eles reconhecem isto. Que de forma alguma desconsidera a ação conjunta nas próximas eleições, desde que a distribuição dos assentos a serem disputados conjuntamente seja feita de acordo com o estado atual das respectivas forças; esses senhores têm o hábito de reivindicar um quinhão leonino. [A expressão “o quinhão do leão” faz uma referência a uma fábula, segundo a qual o leão, ao dividir sua caça, sempre se reserva todas as melhores partes, e mesmo a pior das partes lhe serve para distribuir a título de isca para sua próxima presa. N.T.]
Não deixe que o desencoraje o fato de que seus discursos não criam tanta agitação quanto antes. Olhe para o nosso pessoal na Alemanha: eles foram vaiados por anos a fio, e agora os 36 dominam o Reichstag. Bebel escreve dizendo: se tivéssemos 80 ou cem (de 400 membros), o Reichstag se tornaria uma impossibilidade. Não há debate, seja qual for o assunto, em que não intervenhamos e sejamos ouvidos por todos os partidos. O debate sobre a organização socialista do futuro durou cinco dias e o discurso de Bebel foi desejado em três milhões e meio de exemplares. Agora eles estão publicando todo o debate em panfletos ao preço de 5 sous, e o efeito, já tremendo, será em dobro!
Você tem toda a razão em fazer preparações para as eleições. Nós devemos capturar pelo menos 20 assentos. Você tem a imensa vantagem de saber, pelas eleições municipais, a extensão mínima de suas forças em cada localidade [Engels refere-se às eleições municipais realizadas em 1 e 8 de maio de 1892, quando os socialistas receberam 160 000 votos e venceram em 27 municípios]; pois tenho certeza de que, desde o último mês de maio, você as aumentou consideravelmente. Isso irá ajudá-lo muito na repartição de candidaturas entre vocês próprios e os Socialistas Radicais. Mas possivelmente você preferiria lançar seus candidatos naqueles lugares em vocês tenham alguma chance, com a condição de retirá-los, se necessário, em favor dos Radicais, para um segundo turno, no caso de este terem obtido mais votos.
O mais importante nestas eleições é estabelecer de uma vez por todas que é o nosso partido que representa o socialismo na França, e que todas as outras facções mais ou menos socialistas – broussistas, allemanistas e blanquistas puros ou impuros – têm sido capazes de desempenhar um papel ao nosso lado em virtude apenas de dissensões temporárias, incidentais à fase mais ou menos infantil do movimento proletário; mas que agora o estágio dos distúrbios infantis terminou, e o proletariado francês alcançou plena consciência de seu papel histórico. Se ganharmos esses 20 assentos, todos os outros combinados não terão tantos, uma vez que é mais provável que eles percam alguns do que ganhem mais. Nesse caso, as coisas avançarão. Enquanto isso, cuide da sua reeleição: tenho a sensação de que sua ausência na Câmara não contribuiu muito para assegurá-la.”
Outro exemplo é a entrevista do revolucionário comunista ao jornal “Daily Chronicle”, em junho de 1893:
“Encontrei Herr Engels em sua casa na Regent’s Park Road, exultante, é claro, com o resultado das eleições para o Reichstag alemão.
‘Nós ganhamos 10 assentos’, disse ele, em resposta às minhas perguntas. ‘No primeiro turno obtivemos 24 assentos, e dos nossos 85 candidatos levados a segundo turno, 20 foram reeleitos. Ganhamos 16 assentos e perdemos 6, ficando com um ganho líquido de 10 assentos. Nós detemos 5 dos 6 assentos em Berlim’.
‘Qual foi sua votação?’
‘Isso nós não saberemos até que o Reichstag se reúna, quando os resultados serão apresentados, mas você pode imaginar algo acima de 2 milhões de votos. Em 1890, foram 1.427.000 votos. E você deve lembrar que este é um voto puramente socialista. Todas os partidos se uniram contra nós, com a exceção de uma pequena parcela do Partido Popular, que é uma espécie de partido Republicano-Radical. Nós lançamos 391 candidatos, e nós nos recusamos a fazer acordos com qualquer outro partido. Se tivéssemos feito tais acordos, poderíamos ter obtido 20 ou 30 assentos a mais, mas nós nos colocamos firmemente contra qualquer compromisso, e é isso que torna nossa posição tão forte. Nenhum dos nossos se comprometeu a apoiar qualquer partido ou qualquer medida, exceto o programa de nosso próprio partido.’ […]
‘Agora, me diga: qual é o seu programa político?’
‘Nosso programa é quase idêntico ao da Federação Social-Democrata da Inglaterra, embora nossa política seja muito diferente.’
‘Se aproximando mais da política da Sociedade Fabiana, suponho?’
‘Não, certamente não’, respondeu o Herr, com grande animação. ‘A Sociedade Fabiana, eu considero ser nada além de um ramo do Partido Liberal. Ela não procura salvação social exceto através dos meios que este partido fornece. Somos contra todos os partidos políticos existentes, e nós vamos combatê-los todos. A Federação Social-Democrata Inglesa é, e atua, apenas como uma pequena seita. É um corpo exclusivo. Não entendeu como tomar a frente do movimento da classe trabalhadora em geral, e dirigi-la para o socialismo. Transformou o marxismo em uma ortodoxia. Por conseguinte, insistiu para que John Burns desenrolasse a bandeira vermelha durante a greve dos portos, onde tal ato teria arruinado todo o movimento e, em vez de ganhar o apoio dos estivadores, os teria levado direto para os braços dos capitalistas. Nós não fazemos isso. Ademais, o nosso programa é de natureza puramente socialista. A nossa primeira proposta é a socialização de todos os meios e instrumentos de produção. Ainda assim, nós aceitamos tudo o que qualquer governo possa nos dar, mas apenas como um pagamento por conta, e pelo qual não oferecemos qualquer agradecimento. Nós sempre votamos contra o Orçamento, e contra qualquer votação por mais dinheiro ou homens para o Exército. Nos distritos eleitorais onde não tivemos nenhum candidato no qual votar no segundo turno, nossos partidários foram instruídos a votar apenas nos candidatos que se comprometeram a votar contra a Lei do Exército, qualquer aumento nos impostos e qualquer restrição aos direitos populares’.
‘E qual será o efeito da eleição na política alemã?’
‘O projeto da Lei do Exército será levado a cabo. Há um colapso completo da Oposição. Na verdade, somos agora a única Oposição real e compacta. Os Nacional-Liberais aderiram aos Conservadores. O Partido Livre-Pensador se dividiu em dois, e a eleição quase o aniquilou. Os Católicos e as pequenas seções não ousam arriscar outra dissolução, e vão ceder, antes deenfrentá-la’.
Por fim, vejamos a instrutiva carta de Engels a Sorge, datada de 12 de maio de 1894, sobre a situação na Inglaterra:
“Aqui as coisas continuam como antes. Nenhuma possibilidade de trazer à tona qualquer tipo de unidade entre as lideranças dos trabalhadores. No entanto, as massas estão avançando – lentamente, é verdade, e em primeiro lugar lutando em direção à consciência, mas inconfundivelmente, o mesmo vai acontecer aqui conforme está acontecendo na França e mais cedo na Alemanha: a unidade vai ser ganha por compulsão assim que uma quantidade de trabalhadores independentes (em particular aqueles não eleitos com o apoio dos Liberais) obtiver assento no Parlamento. Os liberais estão fazendo seu máximo para evitar isso. Em primeiro lugar, eles sequer estendem o sufrágio àqueles que já têm direito a ele no papel; em segundo lugar, eles estão tornando o registro eleitoral ainda mais caro para os candidatos do que eram antes, porque eles têm de ser renovados duas vezes por ano e o custo de um registro adequado devem ser arcados pelo candidato ou pelo representante do partido político respectivo, e não pelo Estado; em terceiro lugar, recusam expressamente que o Estado ou a comunidade assumam os custos da eleição; em quarto lugar, a questão dos salários e, em quinto lugar, o segundo turno. A preservação de todos esses abusos antigos equivale a uma negação direta da elegibilidade de candidatos da classe trabalhadora em 3/4 ou mais dos distritos eleitorais. O parlamento deve permanecer um clube dos ricos. E isso numa época em que os ricos, porque satisfeitos com o status quo, se tornam Conservadores e o Partido Liberal está morrendo e ficando cada vez mais dependente do voto do trabalhador. Mas os Liberais insistem que os trabalhadores deveriam eleger apenas burgueses, não trabalhadores, e certamente não trabalhadores independentes.
É isso que está matando os liberais. Sua falta de coragem estrangula o voto dos trabalhadores no país, reduz sua pequena maioria no Parlamento a nada, e se não derem alguns passos bastante ousados no último minuto, eles estão provavelmente condenados. Então os Tories virão à tona e alcançarão aquilo que os Liberais realmente pretendiam levar a cabo, e não apenas promessas. E então um partido independente dos trabalhadores será bastante certo.
A Federação Social-Democrata compartilha aqui com os seus Socialistas Germano-Americanos a distinção de serem os únicos partidos que têm logrado reduzir a teoria marxista do desenvolvimento em uma ortodoxia rígida. Essa teoria deve ser forçada garganta abaixo nos trabalhadores de uma vez e sem qualquer desenvolvimento, como artigos de fé, em vez de fazer com que os trabalhadores levantem por si próprios ao seu nível por força de seus próprios instintos de classe. É por isso que ambos permanecem meras seitas e, como Hegel dizia, vêm do nada através do nada ao nada.”
Tais escritos são mais do que interessantes registros históricos. É bastante instrutivo analisar como Engels aborda questões semelhantes de modo distinto, a depender do estágio concreto do desenvolvimento do movimento proletário em cada um dos países comentados: respectivamente, França, Alemanha e Inglaterra.
Na França, onde um partido proletário ainda não se firmara em bases independentes, Engels recomenda a aliança com os reformistas pequeno-burgueses. A condição dessa aliança é reveladora: o reconhecimento da separação entre esses dois partidos! Engels compreende que “a experiência da vida atual” “força os operários a ocuparem-se da política, quer eles queiram quer não”. Não existindo um partido proletário, a tendência seria a divisão dos votos proletários entre as candidaturas burguesas e pequeno-burguesas. Nesse contexto, as forças que buscam impulsionar um partido proletário deveriam apoiar a ala mais radical da sociedade civil, a pequena burguesia ‘socialista’; mas fazendo desse apoio uma condição da própria consolidação do proletariado como partido independente, exigindo seu reconhecimento oficial por parte do partido da pequena-burguesia radical. É nesse contexto que Engels recomenda a Lafargue que lance candidaturas proletárias onde elas tiverem viabilidade, “com a condição de retirá-las, se necessário, em favor dos Radicais, para um segundo turno”.
No caso da Alemanha, onde o partido proletário aumentava em apoio ano após ano, as recomendações de Engels são bastante distintas: a recusa aos acordos com qualquer outro partido; a defesa integral do programa social-democrata revolucionário. Contudo, mesmo nesse contexto de ausência de qualquer acordo com outros partidos, Engels não recomendava a abstenção em segundo turno. Sem estabelecer acordos, coligações, ou listas eleitorais conjuntas, a Social-Democracia instruía seus partidários a votar “apenas nos candidatos que se comprometeram a votar contra a Lei do Exército, qualquer aumento nos impostos e qualquer restrição aos direitos populares” – ou seja, precisamente aquelas que eram as principais bandeiras dos social-democratas no parlamento, seu programa mínimo!
Quanto ao caso da Inglaterra, a análise de Engels contém menos recomendações que apreciações. Por um lado, Engels nota a dificuldade na constituição de um partido independente do proletariado naquele país. Por outro lado, mostra que os Liberais atuam deliberadamente no sentido de dificultar esta realização, de manter o proletariado sob sua representação. Contudo, Engels constata que todas as manobras dos Liberais buscando minar o peso do proletariado nas eleições produziram o efeito oposto, debilitando os próprios Liberais, extremamente dependentes do voto proletário. Nesse contexto, Engels aponta como prioridade a luta pela eleição de candidaturas independentes do proletariado, inclusive insistindo na identidade programática entre Liberais e Conservadores: são diferentes não em seus objetivos, em sua qualidade; mas em sua capacidade de levar até o fim estes objetivos, em intensidade, quantidade. A esse respeito, não seria mera coincidência qualquer semelhança com a diferença existente entre o hesitante contrarreformismo do segundo governo Dilma e a Agenda Brasil de Temer: diferem em quantidade, não tanto em qualidade (ainda que todo aumento em quantidade permita, a partir de um determinado estágio, um desenvolvimento qualitativo). Não deixa de ser interessante, contudo, o comentário de Engels sobre o segundo turno, visto como uma forma adotada pelos Liberais para minar as candidaturas proletárias, forçando o apoio do proletariado a este partido burguês em um segundo turno, contra os Conservadores. Sobre essa “vantagem” do segundo turno comentei, em termos mais gerais, no início do presente artigo.
Os comentários de Engels são suficientes para lançar luz a diversas debilidades em meu modo de abordar a questão do segundo turno anteriormente.
Em primeiro lugar, de fato, a razão para os comunistas participarem nas eleições, a despeito de não nutrirem quaisquer ilusões na democracia burguês, está em “manterem a sua democracia, para manterem a sua autonomia, contarem as suas forças, trazerem a público a sua posição revolucionária e os pontos de vista do partido”; como dizia Marx. Em todos os três exemplos que Engels aborda, são esses mesmos os objetivos perseguidos, partindo-se da consideração concreta da situação das forças desta “democracia e autonomia” revolucionária do partido proletário. Os exemplos históricos demonstram meu equívoco em afirmar, em caráter universal, que em qualquer circunstância o apoio dos comunistas ao reformismo em segundo turno representaria uma “perda de autonomia”; que apenas “contribuiria para disseminar confusões e para rebaixar o partido”. Em algumas circunstâncias, esse apoio pode significar precisamente o contrário: um passo em frente na autonomia, uma redução das confusões através da consolidação formal da independência entre os partidos, mediante justamente os termos de seu apoio. Neste aspecto, minha generalização é reprovável, e conduzirá a outros equívocos, como demonstrarei mais adiante.
Em segundo lugar, fica mais nítido o modo pelo qual todo o trecho de meu antigo texto é atravessado por uma contradição. Por um lado, ao longo de todo o texto, condenei a agitação abstencionista por princípio, justamente porque a palavra da ordem do boicote deve ser levada a sério, deve ser historicamente viável. Aqui, afirmo: “sem as devidas condições objetivas, essa defesa do voto nulo jamais poderá evoluir rumo a um boicote de massas”. Reconheço que “na ausência de uma candidatura própria do proletariado e de um contexto de levante das massas, o proletariado não simplesmente deixará de votar, em sua maioria – mas votará em alternativas burguesas. É isso que, via de regra, ocorre nos segundos turnos.” Contudo, querendo facilitar o expediente da defesa do voto nulo em segundo turno, eu postulo que basta afirmar tudo isso com bastante franqueza: “É possível seguir, pela defesa do voto nulo, fazendo a propaganda de nossas posições – sem contudo acreditar que a mera necessidade de nos abstermos coloque na ordem do dia a agitação pelo boicote pelas massas. Sabendo que, inevitavelmente, faremos nossa propaganda em meio ao pragmatismo oportunista generalizado e a desesperada procura pelas massas de um “mal-menor”. É indigno de um partido revolucionário fazer qualquer coisa que não apontar, em meio a essa procura, os verdadeiros males em jogo, com suas possíveis nuances ou não”.
E aqui, também, generalizei de modo absolutamente equivocado aquilo que apenas pode ser verdade em algumas circunstâncias. “É indigno de um partido revolucionário fazer qualquer coisa que não apontar, em meio a essa procura, os verdadeiros males em jogo, com suas possíveis nuances ou não”. Isso é verdade a todo tempo. Mas em algumas circunstâncias, essa tarefa de apontar os verdadeiros males em jogo, com suas possíveis nuances ou não, pode desembocar em uma ou outra recomendação – o voto nulo ou o apoio e alguma candidatura específica! Em algumas circunstâncias, “é possível seguir, pela defesa do voto nulo, fazendo a propaganda de nossas posições – sem contudo acreditar que a mera necessidade de nos abstermos coloque na ordem do dia a agitação pelo boicote pelas massas”. Em outras, não. Em outras ocasiões, as nuances concretas dos “males” em jogo permitem, com efeito, uma indicação de voto crítico.
É muito correto que a política revolucionária busque evitar sua desmoralização em direção ao reformismo. Se a cada vez que os reformistas gritassem “lobo!” os revolucionários corressem em seu apoio, apenas para depois verem seu apoio utilizado em favor de ataques à classe trabalhadora, certamente estaríamos naquela posição de quem apenas “difunde ilusões”. Por outro lado, se o lobo realmente vem, e os revolucionários não o repelem a tempo apenas porque se acostumaram a ignorar os gritos dos oportunistas, decerto tal situação seria igualmente desmoralizadora.
Não podemos descartar qualquer possibilidade de apoio a um “mal menor”, apenas em nome de vermo-nos livres de todo aquele oportunismo que defende por princípio o “mal menor”. Todo principismo abstrato em matéria de tática é inadmissível para o marxismo, e dá má compreensão entorno deste princípio da tática comunista decorrem boa parte dos desvios oportunistas e esquerdistas: a tática deve ser a mediação concreta entre os princípios gerais (estratégicos e programáticos) e a situação concreta.
Os exemplos de Engels são didáticos. Mesmo na Alemanha, onde o partido recusava qualquer acordo com partidos burgueses ou pequeno-burgueses, a recomendação em segundo turno se amarrava a um programa concreto: contra a Lei do Exército, contra o aumento dos impostos e contra a restrição de direitos. Onde não havia candidaturas proletárias, se promovia não uma agitação pelo boicote, mas a propaganda do programa social-democrata, autorizando o apoio a qualquer candidatura que erguesse o programa mínimo da fração social-democrata no parlamento. Posta nesses termos, a política que Engels defende para esses casos de segundo turno não tem nada a temer quanto à “perda de independência” ou à “difusão de ilusões”: em cada pleito, é preciso avaliar o compromisso efetivo de cada candidatura com esse programa mínimo, e então “instruir a votar apenas” nas candidaturas comprometidas com esse programa. Não se trata, certamente, de se deixar “subornar pelas frases dos democratas”, que ameaçam os revolucionários “irresponsáveis” de abrirem caminho ao “mal maior” com sua abstenção. É possível que, com efeito, entre todas as candidaturas postas politicamente na oposição, nenhuma delas possa se comprometer com essa programa mínimo – e então, certamente, não se poderia instruir a votar em tais candidaturas, não importa o quão eloquente seja sua fraseologia popular.
Um bom exemplo, a esse respeito, é o caso do provável segundo turno nas eleições para o governo do estado de São Paulo. É bem provável que, no segundo turno contra o PSDB de João Dória, uma série de oportunistas “de esquerda” recomendem o apoio ao burocrata demagogo Márcio França. Seria um “mal menor” minar a longa dominação do PSDB em São Paulo, afirmarão. Dória leva mais longe sua fraseologia privatista, então seria um “mal maior”. Todo esse raciocínio, isto sim, seria indigno em uma política revolucionário: de fato, nenhuma destas candidaturas pode oferecer qualquer compromisso sério e consistente com a agenda mínima da classe trabalhadora e do povo trabalhador contra a retirada de direitos, a austeridade, a repressão crescente, etc.
Outro bom exemplo é o caso da recomendação de voto nulo, feita pelo Partido Comunista Brasileiro em 2014. Naquela época, essa recomendação foi criticada por muitos reformistas como um monstruoso ato de esquerdismo, de abstencionismo por princípio, etc. Ora, como pregar a abstenção, se Dilma agitava uma retórica anti-banqueiros, e Aécio Neves defendia austeridade, reformas, privatizações, etc? Não tardou para que a posição dos comunistas se justificasse: eleita, Dilma rompeu com toda sua fraseologia, passando a concordar com a necessidade de austeridade, reformas e privatizações; nomeou o representante dos bancos, Joaquim Levy, para o Ministério da Fazenda e a adversária dos movimentos dos trabalhadores rurais pobres, Kátia Abreu, para o Ministério da Agricultura. A apreciação do PCB mostrou-se correta: a candidatura de Dilma tinha contradições que a tornavam incapaz de se comprometer com o programa mínimo da classe trabalhadora.
Buscando apresentar a correção da tática do voto nulo em segundo turno nestes casos, acabei generalizando afirmações que apenas são válidas para determinadas situações: aquelas em que, com base na análise concreta da situação concreta, seja possível sustentar que inexistem candidaturas capazes de se comprometer com o programa mínimo da classe trabalhadora. Longe de demonstrar que o voto nulo em segundo turno é, em todo caso, um “infantilismo de esquerda”, o que os exemplos históricos de Engels permitem compreender é a complexidade do tema. O único caminho para a verdadeira ciência está em escalar veredas escarpadas, sem recear a fadiga: não se pode descartar, em todo o caso, a possibilidade de apoio a um “mal menor”, apenas em nome de ver-se livre de todo o oportunismo que defende por princípio o “mal menor”.
A respeito dessa questão do “mal menor” e também sobre a tática no segundo turno das eleições, é bastante proveitoso consultar as apreciações do camarada Vladimir Ilitch Ulianov, o Lenin.
Lenin e o segundo turno
No texto sobre o voto nulo, expus o desenvolvimento histórico da tática bolchevique nas eleições para a Duma: o acertado boicote de 1905; o questionável boicote de 1906 (que Lenin defendeu e, mais tarde, considerou um equívoco parcial); o equivocado boicote de 1907 à II Duma. Ficou demonstrado de que modo a tática nas eleições deve se relacionar com o estágio concreto da luta de classes: conforme reflui a revolução de 1905, os bolcheviques gradativamente passam do boicote ativo combinado à agitação insurrecional para uma tática de luta parlamentar associada às lutas de massas. Do mesmo modo, é bastante instrutivo observar como essa progressiva desaceleração e reacomodação da luta de classes modifica a própria tática proposta por Lenin em cada pleito, em especial no que diz respeito aos acordos com os outros partidos e quanto à questão do “risco do fortalecimento da extrema-direita”.
Defendendo a participação socialista nestas eleições para a II Duma, realizadas de janeiro a março de 1907, Lenin ao mesmo tempo criticou severamente a tática eleitoral dos mencheviques. Na opinião de Ilitch, as alianças eleitorais entre a Social-Democracia e o partido Democrata Constitucionalista (Kadetes) burguês eram equivocadas. Enquanto os bolcheviques aceitavam acordos apenas com partidos que reconhecessem a necessidade da insurreição armada em favor da república (como os SR e os Trudoviques); os mencheviques permitiam acordos com qualquer “partido democrático de oposição”, mesmo os liberais mais hesitantes (os Kadetes defendiam posições atrasadas em relação a temas como a restrição do direito de voto, a existência de uma Câmara Alta, defendiam leis repressivas, vacilavam a questão da reforma agrária, etc). No contexto dessa polêmica, Lenin comenta uma das justificativas dos mencheviques para tal aliança: a “ameaça reacionária” nas eleições:
“Os bolcheviques permitem acordos com republicanos burgueses apenas como uma ‘exceção’. Os mencheviques não demandam que blocos com os Kadetes devam ser apenas uma exceção. […]
Os bolcheviques proíbem absolutamente acordos nas circunscrições eleitorais operárias(‘com qualquer outro partido’). […]
O principal argumento dos mencheviques é o perigo das Centúrias Negras [partido reacionário paramilitar]. A primeira e fundamental falha neste argumento é que o perigo das Centúrias Negras não pode ser combatido por táticas de Kadete e por uma política de Kadete. A essência dessa política está na reconciliação com o czarismo, isto é, com o perigo das Centúrias Negras. A primeira Duma demonstrou suficientemente que os Kadetes não combatem o perigo das Centúrias Negras, mas fazem discursos incrivelmente desprezíveis sobre a inocência e a irrepreensibilidade do monarca, o conhecido líder das Centúrias Negras. […]
A segunda falha neste argumento está no fato de que ele significa que a Social-Democracia tacitamente renuncia à hegemonia na luta democrática em favor dos Kadetes. No caso de uma votação dividia que assegure a vitória para as Centúrias Negras, porque nós deveríamos ser culpados por não votar nos Kadetes, em não os cadetes por não terem votado em nós?
‘Nós estamos em minoria’, respondem os mencheviques, em um espírito de humildade cristão. ‘Os Kadetes não mais numerosos. Você não pode esperar dos Kadetes que eles se declarem revolucionários’.
Sim! Mas essa não é uma razão para que os Social-Democratas devam declarar-se eles próprios Kadetes. Os Social-Democratas não obtiveram, e não poderiam obter uma maioria sobre os democratas burgueses em nenhum lugar do mundo em que o desfecho da revolução burguesa fosse indecisivo. Mas, em todos lugares, em todos os países, a primeira entrada independente da Social-Democracia em uma campanha eleitoral foi recebida pelos uivos e latidos dos liberais, acusando os socialistas de quererem dar a vitória às Centúrias Negras.
Nós estamos, então, bastante despreocupados com o lamento usual dos mencheviques sobre os bolcheviques estarem deixando as Centúrias Negras vencer. Todos os liberais gritaram isso para todos socialistas. Ao recursar-se a lutar contra os Kadetes, você está deixando sob sua influência ideológica as massas de proletários e semi-proletários que seriam capazes de seguir a liderança dos Social-Democratas. Agora ou depois, a menos que vocês deixem de ser socialistas, vocês terão que lutar de modo independente, a despeito do perigo das Centúrias Negras. […] Mas o verdadeiro perigo das Centúrias Negras, repetimos, reside não em as Centúrias Negras obterem assentos na Duma, mas nos pogroms e tribunais militares; e vocês estão tornando mais difícil para o povo combater esse perigo real ao colocarem viseiras Kadetes em seus olhos.”
Ainda no curso da agitação para as eleições da II Duma, quando os mencheviques romperam suas tratativas de acordo com os Kadetes por conta do número de assentos disponíveis (os mencheviques exigiam três, um para eles, um para os SR e um para os Trudoviques, enquanto os Kadetes ofereciam apenas dois assentos para esta “ala esquerda” da coligação), Lenin assinalou com dureza:
“Seu primeiro argumento é de que, tendo negado que exista um perigo das Centúrias em São Petesburgo, os bolcheviques não tem nenhum direito a se declararem a favor de um acordo com os Socialistas-Revolucionários e com os Trudoviques, uma vez que isso vai contra a decisão da Conferência de Toda a Rússia, que demanda uma ação independente por parte dos Social-Democratas na ausência de um perigo das Centúrias Negras. […]
Quando um socialista realmente acredita em um perigo das Centúrias Negras e está sinceramente combatendo-o – ele vota pelos liberais sem qualquer barganha, e não interromper as negociações se dois assentos em vez de três lhe forem oferecidos. Por exemplo, pode acontecer que num segundo turno, na Europa, surja um risco de vitória das Centúrias Negras quando os liberais obtiverem, digamos, 8.000 votos, o representante ou reacionário das Centúrias Negras, 10.000, e os socialistas 3.000. Se um socialista acredita que o perigo das Centúrias Negras é um perigo real para a classe trabalhadora, ele votará pelo liberal. Nós não temos segundo turno na Rússia, mas podemos chegar a uma situação análoga ao segundo turno na nossa ‘segunda rodada” eleitoral. Se de 174 eleitores, digamos, 86 são Centúrias Negras, 84 Kadetes e 4 Socialistas, os socialistas devem depositar seus votos no candidato Kadete, e até aqui nenhum único membro do Partido Operário Social-Democrata da Rússia questionou isso. […]
Fica cada dia mais claro que os Mencheviques tomaram o rumo político errado quando se levantam lamentações sobre o perigo das Centúrias Negras. Está ficando claro que os delegados e eleitores estão mais à esquerda este ano do que no ano passado. Em vez de agir como cúmplices ridículos e vergonhosos dos latifundiários liberais (o que não pode ser justificado pelo apelo de um perigo das Centúrias Negras, pois nenhum existe), um papel útil e responsável nos espera; exercer a hegemonia do proletariado sobre a pequena burguesia democrática em luta para impedir a subordinação das massas não esclarecidas à liderança dos liberais.”
Nessas eleições para a II Duma o prognóstico de Lenin se concretizou. Enquanto na I Duma as Centúrias Negras ocuparam 8 de 566 cadeiras (menos de 1,5%), na II Duma sua participação passou a pouco mais de 2% (10 de 453 cadeiras). Mesmo a Direita mais moderada, uma tendência monarquista-constitucional chamada Outubrista, oscilou apenas de 17 para 42. Em conjunto, os Social-Democratas, Trudoviques e SR (que participaram apenas no segundo pleito) passaram de 154 para 188 assentos.
Mas, para além disso, Lenin oferece uma exposição bastante complexa sobre a tática eleitoral comunista. Apresentando candidaturas independentes, a esquerda revolucionária busca contribuir para realizar a hegemonia do proletariado; exercer uma influência que não empurre a classe trabalhadora “para os braços da política burguesa”, como dizia Engels, mas a organize sob o programa mais avançado. Tudo aquilo que já vimos em outra oportunidade: “para manter sua democracia, para manter sua autonomia, para contarem suas forças, trazerem a público a sua posição revolucionária e os pontos de vista do partido”; para “educarem o setor atrasado da classe”; em suma: para construir a independência ideológica do proletariado, condição de sua hegemonia no movimento revolucionário. Lenin repete aqui o mesmo raciocínio de Marx: “mesmo onde não existe esperança de sucesso, devem os operários apresentar os seus próprios candidatos”, sem “deixar-se subornar pelas frases dos democratas, como por exemplo que assim se divide o partido democrático e se dá à reação a possibilidade da vitória. Com todas essas frases, o que se visa é que o proletariado seja mistificado. Os progressos que o partido proletário tem de fazer, surgindo assim como força independente, são infinitamente mais importantes do que o prejuízo que poderia trazer a presença de alguns reacionários na Representação.”
Ao mesmo tempo, Lenin é categórico: “Em um segundo turno”, “se um socialista acredita que o perigo das Centúrias Negras é um perigo real para a classe trabalhadora, ele votará pelo liberal”. Nas eleições para a II Duma, Lenin notava que esse cenário era uma possibilidade remota nas circunscrições eleitorais operárias, de modo que qualquer acordo com um partido burguês ou pequeno-burguês estava vedado. Nas gubernias (unidades administrativas) rurais que cobriam a Rússia, por outro lado, Lenin admitia como permissível o apoio aos liberais contra a reação (sem qualquer barganha, sem qualquer acordo). Mas considerava possíveis acordos, contra os liberais, com os Trudoviques e SR, essa ala esquerda da pequena-burguesia democrática – lançando listas conjuntas para a votação, por exemplo.
Não obstante, Lenin alerta sobre como “o verdadeiro perigo das Centúrias Negras” “reside não em as Centúrias Negras obterem assentos na Duma, mas no pogroms e tribunais militares”. Esse perigo não podia “ser combatido por táticas de” “reconciliação com o czarismo”, como pregavam os Kadetes. A política dos mencheviques dificultava o combate a este perigo real, essa violência reacionária que se alastrava; um perigo que mesmo a eleição de um liberal, derrotando um reacionário, não poderia fazer cessar de aumentar.
A II Duma se instalou em março, durando até junho de 1907, por 103 dias. Em 1 de junho de 1907, o primeiro-ministro Pyotr Stolypin acusou os Social-Democratas de prepararem um levante armado, exigindo que a Duma excluísse 55 Social-Democratas das sessões da Duma e privando 16 deles da imunidade parlamentar. Quando esse ultimato foi rejeitado pela Duma, esta foi dissolvida em 3 de junho por um decreto do czar. Foi o golpe definitivo da reação contra a Revolução Russa de 1905. Em outubro do mesmo ano se organizaram as eleições para a III Duma, que duraria até 1912, sendo um parlamento dos grandes proprietários, diante das modificações censitárias restritivas realizadas previamente sobre a legislação eleitoral. Mesmo sendo mais um “parlamento reacionário”, como descrevia Lenin, o bolchevique defendeu vigorosamente a participação em tais eleições – conseguindo, desta vez, reverter a atitude boicotista da ala revolucionária da Social-Democracia. Os Social-Democratas elegeram apenas 18 deputados de 465 (a maioria bolchevique), e os Trudoviques elegeram apenas outros 13. Os Outubristas foram os grandes vencedores, com 154, e as Centúrias Negras saltaram para uma cifra de 147!
Cinco anos depois, durante a campanha eleitoral para a IV Duma, Lenin destacou mais uma vez:
“Existem duas linhas de política da classe trabalhadora: a linha liberal – o medo acima de tudo da eleição de um reacionário, e portanto a rendição da liderança aos liberais sem luta. A linha marxista – não se permitir desencorajar pelos lamentos liberais sobre o perigo da vitória de um [candidato da] Centúria Negra, mas audaciosamente lançar-se em uma luta de “três cantos” (para usar a expressão inglesa)”.
Nesse período, após cinco anos de domínio absoluto da reação, a classe operária russa volta a se movimentar. Digna de nota é a greve nas minas de ouro em Lena, no começo de 1912, massacrada pelas tropas czaristas. Por isso, a despeito da força eleitoral dos reacionários, Vladimir Ilitch continua divergindo profundamente do reboquismo menchevique. Lenin explicaque a esquerda oportunista russa cometia um erro não só tático, mas inclusive técnico, reduzindo as possibilidades táticas da classe operária por não compreender as grandes diferenças entre o segundo turno alemão (um segundo turno efetivamente, como no Brasil) e o russo (na verdade, uma segunda eleição, que não oferecia apenas as duas alternativas mais votadas, permitindo aos partidos tanto reapresentar seus candidatos como compor novas alianças).
“O segundo turno é, na Alemanha, uma escolha entre apenas dois candidatos, aqueles que receberam o maior número de votos na primeira votação. No caso dos alemães, o segundo turno decide apenas qual dos dois candidatos que receberam o maior número de votos deve ser eleito. […]
Na Alemanha, há apenas uma questão de escolher o mal menor: aqueles que foram derrotados no primeiro turno (e todos eles são excluídos do segundo turno) não podem ter outro objetivo. […]
Na Alemanha, por um lado, o candidato de classe trabalhadora não pode obter qualquer benefício para si próprio, ou seja, qualquer benefício direto, da luta entre os partidos de Direita [reação] e os partidos de oposição burgueses. Ele pode apoiar a oposição liberal contra a Direita se ambos forem de força praticamente igual; mas ele não pode tirar proveito de um empate entre seu oponente liberal e reacionário para si obter a vitória. […]
[Na Rússia], quando quer que os liberais, na primeira eleição, se provem mais fortes que os reacionários, e os candidatos da classe trabalhadora mais fracos que os liberais, é o dever dos trabalhadores, tanto to ponte vista da tarefa política de organizar as forças da democracia em geral, quanto do ponto de vista da eleição de candidatos da classe trabalhadora para a Duma [mediante ‘coligações’], fazer causa comum com a democracia burguesa (Narodniks, Trudoviques, etc) contra os liberais.
É provável que tais casos ocorram frequentemente?
Não muito frequentemente nas assembleias eleitorais das gubernias; aqui, na maioria dos casos, os liberais serão mais fracos que os reacionários, e será, portanto, necessário formar um bloco de todas as forças de oposição no sentido de derrotar os reacionários. […]
Em casos de um segundo turno, principalmente na segunda circunscrição urbana, será mais frequente fazer causa comum com os democratas contra os liberais e contra a Direita; e apenas subsequentemente talvez seja necessário, no segundo turno, aderir ao bloco geral de oposição contra os reacionários.”
Uma outra caracterização peculiar pode ser vista em outro artigo da mesma época:
“Não obstante, nós repetimos mesmo em 1912 que tanto em um segundo turno quanto em uma segunda rodada das eleições é permissível entrar em acordo com os liberais contra a Direita. Porque, a despeito de sua ambiguidade, o liberalismo-monarquista burguês não é em absoluto a mesma coisa que a reação feudal. Seria uma péssima política da classe trabalhadora não tirar proveito desta diferença.”
Neste contexto, Lenin admite uma margem maior para a possibilidade de acordo com os liberais (inclusive lançando na segunda rodada eleitorais listas de candidatos conjuntas). Ainda assim, demonstra como as particularidades do sistema russo permitiam, em muitos casos, sustentar as candidaturas socialistas, buscando aproveitar-se da divisão dos votos entre os Liberais e a Direita para obter a vitória para o proletariado. Mas quando o primeiro turno já permitia prever uma maioria avassaladora da reação sobre os liberais, nestes casos era preciso, sim, “escolher o mal menor”, já que mesmo o mais débil liberalismo burguês ainda “não é em absoluto a mesma coisa que a reação feudal”. Porque, a despeito de sua debilidade, esse liberalismo representava ao menos um compromisso com o programa mínimo da revolução democrática, defendida naquela época pela Social-Democracia revolucionária, em oposição ao programa feudal e reacionário dos partidos abertamente pró-czarismo.
O segundo turno no Brasil
Todas essas colocações são bastante esclarecedoras do ponto de vista mais geral, de princípios. Do ponto de vista técnico tanto quanto do político, porém, as situações abordadas são bastante diferentes da situação brasileira. Aqui, todo o debate se dá em torno de eleições para os governos executivos, enquanto na Rússia se tratava de eleições parlamentares. Lá, uma tática equivocada em segundo turno poderia implicar, no máximo, na vitória de um punhado de reacionários a mais para a representação parlamentar. Aqui, contudo, trata-se da disputa pela poderosa maquinaria coercitiva do poder executivo. Esse é o aspecto “técnico” da diferença, que tem na verdade uma origem política.
Na Rússia do começo do século passado, o poder de Estado era ainda um poder hereditário e sem limites constitucionais. Nessa época do governo autocrático, subsistia não apenas a forma do antigo poder, mas uma grande classe feudal de proprietários de terras, diretamente associados à estrutura administrativa e repressiva, e que obstruíam significativamente o desenvolvimento do capitalismo no campo e, por consequência, de um mercado interno para a indústria russa. A burguesia, que ainda não estabelecera seu domínio republicano, ainda tinha nesta época alguns representantes na oposição política, defensores da liberdade de expressão, de organização, do direito de voto, do “império da lei” sobre os funcionários públicos, etc. A Social-Democracia, vanguarda da nascente classe trabalhadora, considerava como seus maiores adversários a autocracia feudal e seus partidários reacionários. Alertava a classe trabalhadora a manter sua independência sem negligenciar que, em sua luta, contava com dois aliados mais ou menos consequentes. Por um lado, podia marchar até mais longe ao lado dos democratas, representantes das parcelas mais radicais dos camponeses pobres e da intelectualidade urbana. Por outro lado, alerta às vacilações desse setor, também deveria reconhecer na ainda mais vacilante burguesia reconciliadora, os liberais, um potencial aliado em algumas batalhas contra a reação, em especial essas eleitorais.
No Brasil, a situação é bastante diferente: já há mais de um século a dominação burguesa se estabeleceu, sob a forma de um estado de direito. Esse estado pode ser mais ou menos democrático, a depender das pressões da massa proletária e das camadas médias oprimidas, e a depender dos diferentes arranjos entre as várias frações burguesas: o agronegócio capitalista, os investidores, os industriais, os grandes capitais comerciais, etc. Mas mesmo nas suas formas mais despóticas, essa dominação permanece baseada sobre a igualdade jurídica entre todos os proprietários, e não sobre a ordem dos privilégios feudais ou escravistas dos grandes proprietários agrários. Aqui, via de regra, as forças da reação não são as forças de uma restauração escravista ou feudal, nem são as forças regularmente dominantes: são forças bonapartistas burguesas, fascistóides, que apenas nos momentos da maior crise social podem se fortalecer e impôr, em caráter de exceção. Mesmo que nos momentos de ascensão dessas forças reacionárias algumas alas burguesas mais liberais possam vacilar, nenhuma delas pode se colocar em qualquer oposição consequente à dominação vigente, ela própria burguesa. Se no período de Lenin os Kadetes são apenas uma fração burguesa da oposição parlamentar, uma ala esquerda da burguesia conciliadora com a autocracia; em nosso período a política Kadete, a política liberal burguesa, é a política dominante e, ainda mais, está dividida entre si em inúmeras tendências mais ou menos centristas, mais ou menos social-liberais: se dividem muito nitidamente numa ala mais à direita e outra mais à esquerda, mediados por um gigantesco “centrão” burguês, mas em todo caso mantém seu caráter comumente republicano burguês. Justamente por isso, ainda que possam ser aliados pontuais em algum combate contra a reação, são aliados demasiadamente instáveis. Os motivos para a desconfiança da classe trabalhadora revolucionária nestes aliados é ainda mais justificada, e por isso mesmo deve-se refletir num apoio crítico, reticente, independente. Um apoio que ponha em destaque as insuficiências e riscos da tática de conciliação de classes.
É por isso mesmo que não se pode adotar como regra a tática do “mal menor”. Nos segundos turnos, quando a esquerda liberal enfrenta alguma direita qualquer, as forças revolucionárias são sempre interpeladas publicamente pela forte maré do “pragmatismo”. O “mal menor” é a palavra de ordem permanente do oportunismo. Acertadamente, em diversas ocasiões, os comunistas resistiram a esse assédio, e sustentando a defesa do voto nulo, além de outras linhas de demarcação entre a política revolucionária e a política de conciliação de classes.
Nas eleições em que os social-liberais se batem com os neo-liberais, a bandeira do voto nulo realmente pode contribuir para a consolidação da esquerda revolucionária como força independente. Se no segundo turno não há nenhuma força reacionária, mas apenas alternativas democrático-burguesas (mais ou menos sociais, mais ou menos liberais, distintas não tanto em qualidade, mas em quantidade, “intensidade”, etc); nesse caso, o voto nulo é correto e educativo do ponto de vista político. Nesses casos, é até mesmo impossível mesurar qual dos evidentes males é, efetivamente, o menor (e, na verdade, poderíamos argumentar infinitamente sobre os males maiores ou menores de uma ou de outra candidatura, tanto em termos de suas propostas para cada tema, quanto do pondo de vista dos efeitos de sua vitória para o combate independente da classe trabalhadora e das camadas oprimidas).
Mas se o caso é de um perigo real; havendo o risco verdadeiro de um fortalecimento das posições da reação na luta de classes, como resultado de uma eleição; então a defesa do voto nulo seria equivocada; a “indiferença eleitoral” seria um abstencionismo vazio, que não expressaria realmente nenhuma combatividade consequente neste cenário. Há, nesse caso, um mal realmente maior, que não diz respeito apenas à retórica eleitoral, mas à dinâmica da luta de classes.
Passemos da formulação abstrata para as situações concretas. Quais são as diferenças fundamentais entre as eleições de 2014 e as eleições de 2018, por exemplo?
Em 2014, vivíamos os primeiros estágios da crise do ciclo petista. Desde junho de 2013 as massas passavam a se movimentar mais amplamente, com mais vigor, precipitando a crise das alternativas de conciliação de classes – enquanto a burguesia manobrava e se reorganizava para iniciar uma contraofensiva. Nesse contexto, Aécio e Dilma não representavam terrenos tão diferentes, em termos objetivos, para a luta social. Com suas diferenças subjetivas, representavam do ponto de vista econômico diferenças de intensidade e ritmo, não de qualidade (com sempre, o petismo sinalizava tranquilidade à burguesia, por baixo de sua agitação “popular” de campanha – o curto segundo governo Dilma comprovou esta tese). Do ponto de vista político mais geral também não apresentavam distinções objetivas: nenhuma candidatura ia além nem ia aquém da república democrática burguesa, em um momento em que sua crise ainda começava a amadurecer. Dilma não podia se comprometer, naquele estágio da luta, com o programa mínimo ofensivo da classe trabalhadora.
Em 2018, a luta de classes se encontra em um estágio distinto. O governo de conciliação de classes foi deposto por uma ofensiva política burguesa. A classe trabalhadora passou à defensiva, sob ataques. De modo semelhante, do ponto de vista econômico, Bolsonaro e Haddad também não representam diferenças de qualidade, mas de quantidade (e talvez isso seja ainda mais nítido hoje do que em 2014, porque os métodos liberais do petismo levam Haddad a sinalizar à burguesia com ainda mais concessões, ainda mais cedo). Mas a eleição de um ou de outro implica, politicamente, um terreno qualitativamente distinto para o desenvolvimento da luta de classes do proletariado, no próximo período. Por um lado, num estágio avançado da crise da república democrática burguesa, Haddad representa (tragicomicamente) sua continuidade; enquanto Bolsonaro aponta para seu progressivo solapamento em favor da maior repressão. A eleição de Bolsonaro não implicaria apenas a intensificação da violência estatal contra as massas, mas a intensificação de todo o tipo de violência reacionária. Todo o tipo de miliciano reacionário, clubes de tiro, bandos armados dos latifundiários e gangues urbanas de extrema-direita seriam estimulados e encorajados, erguendo-se moralizados contra a classe trabalhadora organizada, o povo negro, as mulheres, as LGBT, toda a massa precarizada de trabalhadores imigrantes, etc. Hoje, o “risco do fascismo” ainda precisa amadurecer para poder se impôr plenamente, ainda carece de tropas melhor centralizadas (ainda que seja, já no atual momento, superior aos revolucionários em termos de organização da coerção), etc. A eleição de Bolsonaro oferece as condições mais propícias para esse amadurecimento. Por isso, em síntese, mesmo no caso de Haddad girar o mais à direita que puder, no plano das concessões econômicas à burguesia; ou mesmo no caso de Haddad ser deposto; nestes dois casos ainda sim estamos em um terreno mais favorável para travarmos abertamente nossa luta do que sob o porrete de Bolsonaro.
Justamente essa compreensão dialética da questão tática (levando em conta que a verdade é sempre concreta) permite aos comunistas distinguirem sua política ao mesmo tempo do esquerdismo e do oportunismo; da conciliação desesperada e do vanguardismo inconsequente.
Os comunistas participam nas eleições para manterem sua independência. Isso é um ponto de princípio. Mas é um grande equívoco acreditar que em qualquer circunstância o apoio dos comunistas ao reformismo, em segundo turno, representaria uma “perda de autonomia”. Na verdade, quando o perigo reacionário se ergue e a parcela mais ativa da classe trabalhadora, movida pelo seu mais imediato instinto de classe, pende ao voto útil nos reformistas, nossa abstenção significaria precisamente conceder nossa independência sem luta; permitir que a agitação contra a reação seja conduzida pelas lideranças mais liberais e vacilantes, sem nos lançarmos, com a devida força e prioridade, a uma agitação independente e classista, que explique pacientemente a questão dos “dois males”, e de que modo há, efetivamente, neste caso, um “mal maior”. Em tal situação, com nossa abstenção, não estaríamos combatendo as ilusões no reformismo. Estaríamos difundido ilusões de um outro tipo: ilusões na possibilidade de um desenvolvimento pacífico da luta de classes; ilusões a respeito da “equivalência” completa entre os reformistas burgueses e os bonapartistas burgueses!
Muitos revolucionários manifestam preocupação (não despropositada) sobre o efeito ideológico de uma vitória petista sobre a massa. É uma questão digna de discussão, certamente. Mas se o que tememos é prolongar a hegemonia do reformismo sobre o movimento operário, é preciso ter em mentes que essa possibilidade está dada de modo igualmente intenso em ambos os cenários: tanto no cenário em que Bolsonaro se eleja, e o PT assuma debilmente a posição de força maior da oposição; quanto no cenário em que o PT seja eleito (talvez aqui, na verdade, seja um terreno inclusive mais favorável aos revolucionários nesse aspecto, com vistas a escancarar a debilidade dos métodos e concepções petistas, etc). Do mesmo modo, a vitória de Haddad também não implica a derrota completa do fascismo, mas apenas uma condição menos favorável para seu amadurecimento acelerado (ainda que este siga se desenvolvendo por meio da agitação de oposição ao governo petista, será mais facilmente minado e subordinado pela oposição parlamentar burguesa a Haddad, etc).
Se considerarmos que ambas candidaturas são males aproximados, e contra uma delas pesa o evidente mal maior do ponto de vista das liberdades políticas e do desenvolvimento das forças da reação; enquanto contra a outra pesa como evidente mal maior apenas as debilidades do governo vindouro e as ilusões maiores ou menores que este possa difundir; nesse caso é evidente que um potencial risco subjetivo não pode ser posto em primeiro lugar em relação a um muito mais provável revés objetivo.
O essencial, nesse aspecto ideológico, é derrotar Bolsonaro eleitoralmente sem, contudo, silenciar sobre a impotência da tática petista para oferecer combate à reação para além das urnas. Sabemos que o perigo reacionários não pode ser combatido por táticas de reconciliação com a ofensiva burguesa. Uma coisa é dizer que há vantagens em prolongar o período de desenvolvimento pacífico e democrático dessa ofensiva; outra coisa é acreditar que ela será interrompida pelos métodos liberais-democráticos do petismo.
Por isso tudo, de um ponto de vista comunista revolucionário, a defesa de uma oposição ferrenha a Bolsonaro, no segundo turno de 2018, é absolutamente correta. Ao mesmo tempo, se apresentada de modo independente, essa bandeira (#EleNão) carece de graves insuficiências. Não destaca o significado histórico de Bolsonaro e da oposição das forças revolucionárias a ele. Não permite destacar a relação entre Bolsonaro, Haddad e a ofensiva burguesa contra a classe trabalhadora e o povo oprimido. Não serve de arma para combater, desde já, as ilusões nos métodos reconciliadores de Haddad; nem para agitar, desde já, a preparação para as lutas de classes no terreno de um novo governo petista. Por isso mesmo, é necessária uma palavra de ordem delicadamente equilibrada, que não engane a massa nem sobre as diferenças nem sobre as semelhanças entre Haddad e Bolsonaro. É preciso afirmar com precisão que tipo de tragédia significa, para nossa classe, a possível vitória de cada um destes candidatos – o reacionário burguês e o democrata burguês. É preciso combater a vitória eleitoral do reacionário, para enfrentar em um melhor terreno as vacilações do democrata e a ofensiva da classe dominante.
A palavra de ordem “Derrotar Bolsonaro e construir a alternativa socialista” responde de modo bastante adequado a estes requisitos, e sobre ela podemos lastrear de modo bastante seguro nosso combate a Bolsonaro: abordando em nossa propaganda cada um dos aspectos da atual situação do modo mais vasto possível, sintetizando nossa compreensão sobre a agenda burguesa, sobre o risco do fortalecimento dos reacionários e sobre as insuficiências dos métodos de reconciliação petistas. Ao mesmo tempo, a agitação comunista não apenas convocará as massas a intervir politicamente através do voto em Haddad contra Bolsonaro, mas especialmente prosseguindo em formas de luta mais avançadas, organizando novas manifestações de massas (como as do dia 29/09), e pacientemente preparando as forças das camadas oprimidas para seguir em luta ao lado da classe trabalhadora contra todas as manifestações da ofensiva burguesa.
Respeitamos e compreendemos toda a militância combativa de nossa classe que optará, neste segundo turno, pela abstenção eleitoral. Mas é preciso afirmar pacientemente que, neste caso, a abstenção seria apenas uma equivocada repetição mecânica dos acertos passados da esquerda revolucionária. É preciso explicar pacientemente a essas parcelas das forças revolucionárias que o boicote ao segundo turno, por si só, é absolutamente incapaz de elevar o movimento proletário e a luta revolucionário a uma fase superior – do combate à reação burguesa para a ofensiva socialista. E que apenas lutando contra Bolsonaro desde já, ao lado das camadas mais avançadas do povo explorado e oprimido, será possível às forças revolucionárias manterem-se à frente do movimento popular, lutando pela sua reorganização no bojo da própria luta contra a reação, sob as bases de um programa classista, revolucionário e socialista!