Governos prepararam terreno para Bolsonaro atacar direitos indígenas

imagemGabriel Brito
Correio da Cidadania

“A saga histórica dos índios botocudos se constitui num patrimônio da humanidade”. É assim que o historiador Marco Morel define o povo que pesquisou durante anos, sobre o qual publica o livro A Saga dos Botocudos – Guerra, Imagens e Resistência Indígena, disponível gratuitamente na internet. A etnia, alvo das guerras de conquista e genocídio há séculos, é atualmente conhecida como Krenak e sua história e fama ilustram como poucas a violência do Estado brasileiro, sempre revista e atualizada, frente aos povos originários.

“O que acho mais notável na trajetória histórica destes índios é que eles demonstram, na prática, que a Conquista e a repressão não constituem uma linha progressiva e linear que vai aumentando e será inevitavelmente vencedora. Apesar de muitas perdas, dores e sofrimentos, ao longo de cinco séculos, eles sempre conseguiram espaços de Reconquista. Foi assim no século 16, nos seguintes e é ainda hoje”, contextualizou.

Como não poderia deixar de ser, a entrevista estabelece pontes com a atualidade brasileira e suas tendências políticas de momento, a anunciar um período de radicalização a partir da entronização de Jair Bolsonaro na presidência da República. No entanto, não há como deixar de lado toda a linha de continuidade que nos trouxe até aqui. O discurso de que a demarcação de terras atenderia interesses estrangeiros obscuros é um bom exemplo.

“Esta é uma das mentiras mais antigas que busca justificar o extermínio cultural e físico dos indígenas, e seu ‘branqueamento’ ou dissolução na argamassa da sociedade nacional. E, ao mesmo tempo, destruir as florestas numa exploração predatória e irresponsável, a que chamam de progresso. As terras indígenas são terras da União, portanto, inalienáveis. Alterar isto é beneficiar os que pretendem explorar e se apropriar destas terras, grupos nacionais e transnacionais”, afirmou.

Eis a entrevista.

Em primeiro lugar, como foi o trabalho de pesquisa e elaboração do livro?

Foi longo. O livro começou a ser elaborado em 1993 e resulta de materiais encontrados em arquivos e bibliotecas da França, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais, São Paulo e Bahia, além de pesquisa de campo com os índios. Encontrava-me em Paris fazendo doutorado sobre outro assunto, mas a vivência como estrangeiro, isto é, como Outro, numa sociedade marcada por tensões e preconceitos raciais que atravessavam o cotidiano, remeteram-me para posição diversa daquela que vivia em meu próprio país, despertando outro tipo de sensibilidade.

Daí, ao me deparar ao acaso com uma referência à declaração de guerra aos Botocudos em 1808 por D. João e, em seguida, ao encontrar nos arquivos do Museu do Homem (atual Museu Quai Branly) os daguerreótipos destes índios feitos na mesma Paris em 1844, realizei “mergulho” em mares até então não navegados por mim.

O livro foi finalizado (após várias interrupções) em 2006, e só agora publicado, doze anos depois. O trabalho é fruto de um misto de teimosia, encantamento pela saga de resistência dos indígenas e paixão intelectual, aliados ao rigor e amplitude detalhada da pesquisa e de leituras sobre o tema. Não “pesquisei” apenas pelo Google. Foi também, para mim, uma redescoberta do Brasil e de sua história, após a temporada europeia de quatro anos.

Qual o resumo da saga dos botocudos que pode ser transmitido ao leitor e como ele dialoga com a atualidade dos povos indígenas brasileiros?

Destaquei uma tradição de violência e, também, de resistência na história brasileira. A guerra foi constante durante cinco séculos nos contatos com os índios, o que não significava confronto permanente, pois tais encontros foram marcados também por negociações e diferentes níveis de incorporação à sociedade, ou seja, variadas estratégias de resistência. É importante que isso seja dito e escrito. Importante realçar esta dimensão bélica e de conflito, embora ela não seja incompatível com outras vias de sobrevivência e alianças e, mesmo, com outras formas de violência.

O potencial destas resistências, que rendeu grande notoriedade a tais índios e justificou ondas de violência sobre eles, resultou, ao mesmo tempo, em sua persistência enquanto grupo étnico diferenciado no interior da sociedade nacional. Eles eram cerca de 7 mil indivíduos em Minas Gerais e Espírito Santo, região dos rios Doce e Jequitinhonha, no fim do século 19 e, algumas décadas depois, nos anos 1950-70, foram dados oficialmente como extintos.

Pareciam totalmente derrotados, mas reapareceram, cresceram, crescem e existem, com dificuldades e esperanças. A saga histórica destes índios se constitui num patrimônio da humanidade.

Como tal grupo indígena foi percebido pela sociedade colonial e depois nacional?

Escrevi uma história de um determinado grupo indígena desde o século 16 até o 21, o que não é ainda muito comum em nossa historiografia. Tais índios estavam entre os que eram chamados de Aimorés no período colonial, Botocudos no longo século 19 e Krenak nos séculos 20 e 21. Foi um grupo que ganhou fama, em primeiro lugar, por sua capacidade de guerrear e perseverar, defender suas terras e vidas, recebendo daí um estigma de ferocidade. Na verdade, a ferocidade maior vinha, e vem, da civilização ocidental, etnocida.

Em segundo lugar, a fama deste grupo surgiu como reação perversa e dominadora: transformando-os em modismo intelectual e cultural, tratados como exóticos e, mais estranho ainda, como elo perdido ou permanência do homem das cavernas nos tempos da modernidade. Ainda hoje há estudiosos que acreditam nisso! Botocudo, nome pejorativo, virou sinônimo de tolo embrutecido. Foi gerada uma avalanche de imagens sobre estes índios e, por isso, construí a narrativa a partir da iconografia.

Quais fatos e dinâmicas históricas presentes no livro seriam de compreensão mais urgente da sociedade?

Olha, o que acho mais notável na trajetória histórica destes índios é que eles demonstram, na prática, que a Conquista e a repressão não constituem uma linha progressiva e linear que vai aumentando e será inevitavelmente vencedora. Apesar de muitas perdas, dores e sofrimentos, ao longo de cinco séculos, eles sempre conseguiram espaços de Reconquista. Foi assim no século 16, nos seguintes e é ainda hoje.

Não seria digno da história deles tratá-los de forma vitimizada, assim como não se pode negar a violência sobre eles. No século 18, por exemplo, tal grupo indígena reconquistou terras que haviam sido tomadas deles pela mineração nas Geraes. No século 20, retomaram uma parte de terras ancestrais que haviam sido usurpadas pelo Estado nacional, por fazendeiros e grileiros. E atualmente mantêm a perspectiva de ampliar tais Reconquistas em áreas contíguas.

O que esperar do futuro governo em relação aos povos indígenas? Acredita que na prática seus discursos encontrarão freios políticos e institucionais, inclusive do ponto de vista internacional?

O governo Bolsonaro que se avizinha é composto de facínoras, bandoleiros ou mistificadores de toda espécie. Dilapidadores do patrimônio nacional e da qualidade de vida das maiorias e minorias. É um governo que já nasce com as mãos sujas de sangue. O tal personagem indicado como ministro da Saúde já participou pessoalmente de ataque armado de fazendeiros a índios Guarani, resultando num morto entre estes.

Os futuros governantes, que na realidade já começaram a governar, retomam os discursos e as práticas dos “colonizadores bravos”, para quem índio bom é índio morto. Mas estão tentando renovar na retórica: afirmam defender a autonomia indígena, expressão tão cara aos povos originários das Américas, mas para entregar suas terras à exploração indiscriminada. Sob novo uso das palavras, seguem e incentivam a linha dos Bandeirantesmatadores de índios.

Seguem os passos de intelectuais como o historiador Francisco Varnhagen (visconde de Porto Seguro) e do cientista Von Ihering, respectivamente nos séculos 19 e 20, que pregavam o extermínio das populações indígenas por considerá-las empecilho ao progresso. Basta ver a hipocrisia debochada do vice-presidente eleito, general Hamilton Mourão, de se autodeclarar indígena. Abandonam assim uma tradição conciliadora, de “colonização mansa”, adotada inclusive por militares como o marechal Cândido Rondon.

Tal governo se propõe a aprofundar e acelerar, dramaticamente, a atitude destrutiva da natureza, dos povos da floresta e da exploração desmedida da força de trabalho em geral. É um progresso autodestrutivo, que já estava em marcha. Os possíveis freios políticos e institucionais e a pressão internacional serão decisivos, será uma batalha dura e sangrenta.

O Congresso Nacional será palco central de embates, embora a princípio os interesses dos índios sejam minoritários ali. Não devemos menosprezar a capacidade de mobilização e resistência dos povos originários, que têm larga experiência de viverem sob genocídio de longa duração.

Neste sentido, como fazer frente ao discurso de extrema-direita que atribui interesses estrangeiros sobre aquilo que seria uma falsa proteção ambiental, cultural e humanitária das terras indígenas?

Esta é uma das mentiras mais antigas que busca justificar o extermínio cultural e físico dos indígenas, e seu “branqueamento” ou dissolução na argamassa da sociedade nacional. E, ao mesmo tempo, destruir as florestas numa exploração predatória e irresponsável, a que chamam de progresso. As terras indígenas são terras da União, portanto, inalienáveis. Alterar isto é beneficiar os que pretendem explorar e se apropriar destas terras, grupos nacionais e transnacionais. E que se apresentam como defensores da pátria e dos indígenas! Afirmam defender a autonomia indígena.

E há os que continuam argumentando que os índios não são brasileiros, ou que seriam mais facilmente manipulados pelos estrangeiros. Mas não dizem que no governo do general Ernesto Geisel a então eminência parda, o também general Golbery, articulou pessoalmente a entrega de imensos latifúndios na Amazônia a grupos transnacionais, precursores do agronegócio, beneficiando-se pessoalmente com isso.

Estamos diante de complexos desafios. Como é possível agir e reagir diante de tal quadro?

É difícil, mas há caminhos. Um deles é o trabalho de formação pedagógica, ideológica e cultural. Ainda que a curto, médio ou longo prazo. Despertar sensibilidades e informar esclarecendo. É um dos mais urgentes a ser feito hoje em dia pelos setores democráticos e libertários, apesar da insanidade coletiva que parece ter acometido considerável parcela da população. Desmascarar as máscaras novas que tentam encobrir a mesma face, antiga e cruel.

Outra ignorância insistente é afirmar que os índios não seriam mais índios porque usam computador e andam vestidos na rua. Isto é, porque não aceitam mais ficar cristalizados na vitrine do exotismo. Logo, um brasileiro que fala inglês e usa roupas e tecnologia importadas não é mais brasileiro?

Os brancos de hoje se comportam e têm a mesma aparência dos que chegaram aqui em 1500? Outro caminho fundamental é repensar na atual conjuntura, mas não abandonar, as formas diretas de ação política e social.

Devemos temer a ascensão de um possível discurso de cunho negacionista ou diversionista sobre a história do extermínio de nossos povos originários, a exemplo do que se tenta empreender a respeito da escravidão negra?

O discurso negacionista da violência contra os índios já existe e sempre existiu, de várias maneiras. A começar pela invisibilidade que cobre a história das populações indígenas no Brasil. Ou pela formação de um olhar que considera tais seres humanos como exóticos e “diferentes” do ser humano “normal”. Uma coisa é a especificidade e a pluralidade cultural, outra é o pertencimento comum à espécie humana. Todos parentes, todos diferentes. Já em Casa Grande & Senzala, Gilberto Freyre afirmava com toda tranquilidade que não houve resistência indígena na história do Brasil, que diante do contato com o colonizador os índios agiam como vegetais, passivos, se “amarfanhavam” por incapacidade de se adaptar a outros modos de vida.

Coloquei esta afirmação dele como epígrafe de meu livro, por contraste. Agora, como tudo que é ruim tende a ser potencializado pelo futuro-atual governo, não será espantoso que este negacionismo se amplie. Mas ele encontrará pela frente o protagonismo dos povos indígenas e das formulações intelectuais relacionadas, assim como das repercussões institucionais e internacionais.

Os povos indígenas sempre foram protagonistas importantes da história do Brasil. As falas diversionistas aparecem agora sob o manto cínico da defesa da autonomia indígena!

Inclusive há relação com outros negacionismos históricos na atualidade…

Sim, sem dúvida, como o da ditadura civil-militar implantada em 1964. Aliás, o próprio Lula, em seu primeiro mandato como presidente da República, afirmou publicamente que no Brasil houve uma “ditabranda”. A trajetória histórica dos índios que estudei, os atuais Krenak, é também exemplar neste sentido: durante a dura ditadura, digamos assim, existiu em seu território tradicional um campo de prisioneiros de caráter étnico e político, para onde eram enviados indígenas considerados rebeldes de várias etnias e de todos cantos do país.

Entrevistei vários destes ex-detentos, mulheres e homens, que relataram assassinatos, torturas e proibição de falar na própria língua. Houve também lá a Guarda Rural Indígena (GRIN), que tentava formar militarmente indígenas para reprimirem outros indígenas. Quando visitei o local no finalzinho do século 20, o imóvel do presídio estava em ruínas. Os índios, inclusive, “canibalizaram” o local, isto é, pegavam material para construir e melhorar suas próprias casas.

Com ar de triunfo e ironia, os índios mostraram-me o destino do centro de repressão, destruído pelo tempo (em seus vários sentidos) e pela ação humana. Quanto aos maus usos atuais da história da escravidão de origem africana, são infames e numerosos. Importante assinalar que a escravidão de indígenas foi constante na história do Brasil, inclusive durante o século 19, após a Independência.

O governador eleito de Minas, Romeu Zema, empresário e aprendiz de neofascista, comparou os “privilégios” dos funcionários públicos aos dos senhores de escravos. Tal tipo de distorção se nutre da ignorância. Historiadores, pesquisadores e educadores têm um desafio pela frente. Não é à toa que a educação crítica e os povos indígenas estão sob ataque simultâneo.

Voltando um pouco no tempo, é difícil considerar que chegamos a este momento de forma casual. No que tange às políticas indigenistas, como avaliar os governos recentes, em especial os do PT e também o de Temer?

É uma avaliação ruim, trágica. Num breve histórico desde o fim da ditadura, segundo dados do Instituto Socioambiental (ISA), os governos do PTrepresentaram um nítido retrocesso na demarcação e homologação de terras indígenas. Houve um crescimento destas iniciativas nos governos Collor e FHC. Foram, respectivamente, 112 e 145 terras indígenas homologadas. Foi o resultado do protagonismo indígena a partir da Assembleia Constituinte em 1987 e do aumento da pressão nacional e internacional pela preservação do meio ambiente, como a ECO 92, entre outras iniciativas.

Nos governos Lula tais homologações diminuíram para 87 e no período Dilma caíram ainda mais, para 21. A Dilma tinha uma clara postura anti-indígena. Tal política expressa o avanço do capitalismo selvagem, do agronegócio e as tentativas constantes de alianças com tais setores da parte dos governos petistas. O desgoverno Temer zerou as homologações.

Existem mais de 800 terras indígenas à espera da demarcação no Brasil. Preparou-se, assim, o terreno para o presidente recém-eleito afirmar que, se depender dele, não haverá um centímetro de terra indígena. Bolsonaro fez uma declaração de guerra ofensiva, ao estilo da tradição militarizada no trato com os índios na história do Brasil. As violências contra os povos originários já crescem antes do novo presidente tomar posse. Mas o resultado não depende só da vontade dele.

Como vê o futuro dos povos originários no Brasil?

Desde o século 19 havia uma previsão, dita científica ou pelo senso comum, de que os índios estavam irremediavelmente destinados a desaparecer. Mas tal não ocorreu, pelo contrário. É muito difícil conter a ressurgência indígena em curso. A campanha de Sonia Guajajara a vice-presidente da República e a eleição inédita de Joenia Wapichana para o Congresso Nacional são expressões de setores crescentes de uma população indígenaaguerrida e muito bem preparada, espalhada Brasil afora.

Ainda é pouco, mas são sinais de vitalidade. Não tenho dúvida de que o futuro de todos nós, inclusive dos patéticos bolsominions, está ligado ao futuro dos povos originários. Estamos no mesmo barco, na mesma arca de Noé. A destruição sistemática do meio ambiente, das diversidades biológicas e das culturais, e a exploração ainda maior da força de trabalho deixam entrever um cenário catastrófico.

E tal perspectiva aparece na vida dos índios retratados em seu livro?

Sim, aparece. Ainda aqui serve de exemplo o caso dos Krenak, diretamente afetados pela criminosa tragédia ambiental do rio Doce, causada pela Samarco, já concretizando o cenário de terra arrasada. Depois de lutas duríssimas, corajosas e eficientes, através de gerações, em que conseguiram reconquistar uma parte ínfima de seus territórios tradicionais e recriar preservando suas identidades, estão agora cercados de lama e privados de sua principal fonte de vida, as águas do rio Watu, na língua Borum. Assim como as demais populações ribeirinhas. A dívida histórica da sociedade nacional com estes povos é incomensurável. E estamos falando de região Sudeste.

Considera que ainda há espaço para lutas e esperanças?

Sim, ainda há! O que está em jogo no território dos antigos Botocudos, por exemplo, é o futuro do planeta. Para que o mundo não se transforme num grande rio Doce, com água apodrecida, os historiadores, educadores e pesquisadores em geral podem desempenhar um papel.

Elaborar e difundir uma história que seja ao mesmo tempo consistente e resistente, desconstruindo preconceitos e exclusões de forma fundamentada, tomando partido sim, ao lado da afirmação da criatividade, da liberdade e da vida, em suas melhores dimensões. Os Krenak, dados como mortos e extintos, resistiram, ressurgiram e recriam suas vidas. Quem sabe será assim com o rio Doce? É uma esperança que dança na corda bamba de sombrinha.

Temos muito o que aprender com os povos indígenas nas relações com o meio ambiente e os demais animais e, sobretudo, na sabedoria das longas resistências à opressão. Não se trata de idealização, mas de condições culturais e históricas estabelecidas e por estabelecer. Projetos de sociedade e de civilização. Será importante caminharmos com os povos originários e com as demais forças potencialmente libertadoras, ainda que em direção a futuros incertos.

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