Genocídio do povo Yanomami, um crime com muitas autorias

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Fração Nacional Indígena do Partido Comunista Brasileiro – PCB

As imagens dilacerantes dos indígenas yanomamis à beira da morte por doenças e inanição já devem estar circulando pelo mundo quando esta nota estiver sendo lida. Essas fotos, divulgadas por equipe multidisciplinar do Ministério da Saúde em ação emergencial na terra indígena Yanomami, são o retrato dos dados ora divulgados pelo Ministério e que indicam o terror vivido no território no qual 570 crianças desse povo morreram pela contaminação de mercúrio, desnutrição, fome e falta de acesso a medicamentos provenientes do SUS nos últimos quatro anos. No ano de 2022 foram 99 óbitos, conforme informou o recém criado Ministério dos Povos Originários.

Esse genocídio, potencializado pelos cortes de recursos para promoção de atendimento à saúde básica nos territórios pelo governo Bolsonaro, tomou vulto ainda maior com a explosiva exploração do garimpo ilegal de ouro a partir de 2020, na terra indígena Yanomami, ou seja, em plena crise sanitária provocada pela Covid-19. Centenas morreram e outros tantos possivelmente estão condenados à morte a curto e médio prazo pela contaminação do mercúrio, usado na extração do ouro, por malária ou outras doenças introduzidas nessa vasta região amazônica pelos garimpeiros e seus associados.

Há décadas Roraima convive com os garimpos ilegais, disso sabem até os centenários cavalos lavradeiros, quase extintos, mas que ainda grassam pelas vastas pastagens do Lavrado roraimense. Porém, nos últimos mais recentes anos, com a ascensão do governo Bolsonaro, o garimpo ilegal em terras indígenas, notadamente a garimpagem do ouro, tomou proporções indizíveis, e não só naquele estado, mas também no Pará e em outros estados da Amazônia Legal.

A proibição dessa atividade econômica em terras indígenas, embora definida pela Constituição da República (art. 231, par. 3º) sofreu inequívoco afrouxamento durante os últimos quatro anos, seja por deliberada omissão ou cumplicidade de órgãos do Estado responsáveis pela fiscalização e repressão, seja por projetos de lei e iniciativas administrativas, todos descaradamente inconstitucionais, afora atos e manifestações do ex-presidente da República estimuladores e impulsionadores da prática, ainda que, repete-se, ilegal e inconstitucional. Roraima, sem ter qualquer mineração legal de ouro autorizada e em funcionamento, exportou a partir de 2018, segundo reportagem da BBC Brasil ( https://www.bbc.com/portuguese/internacional-48534473 ) de 2019, cerca de 194 kg desse metal, tendo a Índia como expressivo e majoritário importador do produto. Como seria isso possível se não há atividade legal de garimpo de ouro naquele estado registrada nos órgãos federais responsáveis pelo comércio e exportação? A resposta para essa pergunta está na mesma reportagem e em outras que se produziram recentemente e em investigações iniciadas pelo polícia federal e Ministério Público Federal: esse ouro é “esquentado” via empresas sediadas em mais de um estado e que têm autorização para a lavra, que, por meio de declarações falsas e documentos idem, declaram muito mais do que extraíram das minas legalizadas, repassando o produto para empresas exportadoras, boa parte delas localizadas em São Paulo, que, também de modo conivente com essa cadeia de ilícitos, exporta o produto para vários países do mundo como denuncia reportagem da FolhaBV de 2022 (https://folhabv.com.br/noticia/ECONOMIA/Economia/PF-mira-compra-de-ouro-yanomami-por-grupo-que-movimentou-R–16-bilhoes/88620).

Portanto, por todo esse quadro, é indubitável que o genocídio perpetrado contra o povo Yanomami tem vários autores ou coautores. Enredam-se, como tipifica o direito internacional e a melhor doutrina, numa cadeia de mando e execução, como assim é interpretada por juristas patrícios e outros há bom tempo. Há agentes privados, agentes públicos e agentes políticos envolvidos nessa ação de extermínio que encontra-se configurada na Convenção para Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (ONU, 1948), na lei n. 2.889/56, e no Estatuto de Roma (1988) que instituiu o Tribunal Penal Internacional. Esses genocidas devem ser investigados, devem ser punidos, todas e todos que de algum modo vêm contribuindo com essa prática criminosa, um crime de lesa-humanidade.

No entanto, não basta investigar e aplicar as sanções cabíveis, é fundamental que se desmonte toda essa cadeia de ilicitudes e crimes, sem a qual seria impraticável a existência de uma atividade econômica desse porte e que demanda logística de milhões de reais, impossível de ser orquestrada e operada por homens humildes e simplórios que são a imensa maioria dos garimpeiros, ponta de lança do extermínio. E, para além disso, é fundamental que de um modo perene e consistente o Estado brasileiro assuma de fato sua responsabilidade pela defesa dos territórios indígenas, demarcados ou não, caso contrário o que se vê hoje com o povo Yanomami muito provavelmente será em breve atestado também entre os Mundukuru (https://observatoriodamineracao.com.br/garimpo-ilegal-destroi-mais-de-600km-de-rios-dentro-das-terras-munduruku-no-para-em-5-anos/) e outros povos que vivem sob a constante da ilegalidade do garimpo, da extração ilegal de madeira, da pesca predatória e do agronegócio que avança sem peias e meias por territórios dos povos indígenas e populações tradicionais país afora.