Ideologia burguesa e empreendedorismo
A ofensiva ideológica do capital e a falácia do empreendedorismo
Imagem: Charge de Vitor Teixeira, extraída da capa do livro Riqueza e miséria do trabalho no Brasil IV: trabalho digital, autogestão e expropriação da vida (Boitempo, 2019), organizado por Ricardo Antunes.
Edmilson Costa é doutor em economia pela Unicamp e secretário geral do PCB.
A ofensiva ideológica para favorecer o grande capital e, especialmente, a oligarquia financeira no Brasil não se restringe apenas ao ataque aos direitos, garantias e salários dos trabalhadores e das trabalhadoras, cortes dos gastos sociais e precarização dos serviços públicos. Existe um aspecto desse processo que é crucial para que a burguesia possa manter o domínio neoliberal: o marketing do empreendedorismo. Os meios de comunicação, as redes sociais, as escolas e universidades desenvolvem diariamente uma luta ideológica permanente para transformar o empreendedorismo numa solução mágica para todos os problemas que desesperam a juventude, os/as desempregados/as, informais e a população pobre. Todo dia, especialmente a TV Globo, por exemplo, coloca no ar depoimentos de pessoas que venceram na vida ao se tornar empreendedores, faz concursos promovendo o empreendedorismo, põe empreendedores felizes nas novelas, faz reportagens pelo Brasil inteiro promovendo essa atividade e o governo realiza cursos e seminários para empreendedores, tudo isso com o objetivo de apresentar a iniciativa como tábua de salvação para os graves problemas do desemprego, da informalidade e da pobreza no país.
Não é de se estranhar que o marketing do empreendedorismo vem influenciado uma parcela muito grande da população brasileira. Pesquisa realizada pelo Sebrae em parceria com a GEM (Global Entrepreneurship Monitor), consultoria que faz pesquisas sobre empreendedorismo no mundo, constatou que ter o próprio negócio é o terceiro maior sonho dos brasileiros, só superado pela atividade de viajar pelo Brasil e ter a casa própria (Tabela 1).[1] Por isso também não surpreende que existam atualmente no Brasil 15,7 milhões de microempreendedores individuais (MEIs) com CNPJ ativos, segundo levantamento do Ministério da Fazenda, um crescimento extraordinário levando-se em conta que em 2019 eram 9,5 milhões. Entre as atividades econômicas mais comuns entre os MEIs estão serviços de salão de beleza, como cabeleireiro/a, barbeiro, manicure, vendedores/as ambulantes, trabalhadores/as de aplicativos, geralmente trabalhos com baixa produtividade.[2] Entre os motivos que levam microempreendedores individuais a abrir um negócio é a própria necessidade, o que significa dizer que são jovens desempregados/as, trabalhadores/as demitidos/as ou ainda pessoas que estão na informalidade.
Tabela 1 Os cinco maiores desejos dos brasileiros, 2023 (%) |
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Viajar pelo Brasil |
53 |
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Comprar casa própria |
50 |
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Ter o próprio negócio |
48 |
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Viajar para o exterior |
45 |
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Comprar um automóvel |
42 |
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Fonte: Sebrae – GEM, 2024. |
Para se ter uma ideia da dimensão das micro e pequenas empresas, basta dizer que o Brasil tinha registrado, no primeiro quadrimestre de 2024, 21.738.420 empresas, sendo que 93,6% desses empreendimentos eram micro e pequenos negócios, ressaltando-se que a maioria (cerca de mais de 80%) atua no setor terciário e do comércio. No entanto, apesar do desejo de empreender, estimulado pelo marketing, a vida dos/as microempreendedores/as individuais não tem muita perspectiva de sucesso. De acordo com o Mapa das Empresas, do Ministério do Empreendedorismo, da Microempresa e de Empresas de Pequeno Porte, no primeiro quadrimestre de 2024 foram abertas 1.456.958 empresas, 97,5% das quais são microempresas e pequenos negócios. Desse total, no mesmo período, foram fechadas 854.150 empresas, o que significa um elevado índice de mortalidade dessa modalidade de atividade econômica.[3]
Na verdade, a vontade de empreender tem uma relação direta com as dificuldades da conjuntura brasileira, em meio a uma grave crise social e econômica há várias décadas. Se somarmos o desemprego oficial com o desemprego oculto encontraremos mais de 10 milhões de trabalhadores e trabalhadoras sem emprego. A esse contingente poderemos acrescentar cerca de 40 milhões na informalidade, representando 38,8% de trabalhadores/as, sendo que em alguns Estados esse percentual envolve mais da metade da população trabalhadora (Tabela 2) e 16,2% dos/as trabalhadores/as estão subutilizados/as.[4] Além da precariedade do mercado de trabalho, as condições salariais dos trabalhadores e das trabalhadoras brasileiros/as são dramáticas. Pesquisa realizada pela LCA Consultores e publicada em O Globo demonstra os seguintes dados sobre o salário dos/as trabalhadores/as brasileiros/as: 35,63% (34,766 milhões) ganhavam até 1 salário mínimo; 31,56% (30,798 milhões) recebiam entre 1 e 2 salários mínimos; e 32,81% (32,009 milhões) ganhavam acima de 2 salários mínimos.[5] Em outras palavras, a precariedade das condições do trabalho e os baixos salários podem ser considerados os principais fatores que empurram trabalhadores e trabalhadoras para a aventura empreendedora.
Tabela 2 Taxa de informalidade dos trabalhadores por Estados (%) |
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Pará |
56,9 |
Rondônia |
42,8 |
|
Maranhão |
55,6 |
R.G. do Norte |
41,6 |
|
Piauí |
54,5 |
Espírito Santo |
38,1 |
|
Amazonas |
54,1 |
Rio de Janeiro |
37,9 |
|
Ceará |
53,6 |
Minas Gerais |
36,5 |
|
Bahia |
51,7 |
Goiás |
36,3 |
|
Paraiba |
50,3 |
Mato Grosso |
35,3 |
|
Sergipe |
50,2 |
R.G. do Sul |
32,9 |
|
Pernambuco |
50,0 |
M. G. do Sul |
32,1 |
|
Roraima |
47,8 |
Paraná |
31,4 |
|
Acre |
46,8 |
São Paulo |
30,6 |
|
Amapá |
46,4 |
D. Federal |
30,2 |
|
Alagoas |
45,1 |
Santa Catarina |
26,8 |
|
Brasil |
38,8 |
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Fonte: PNAD Contínua |
A dura realidade dos/as microempreendedores/as
Para compreendermos mais amplamente o panorama dos/as microempreendedores/as individuais no país, é importante observarmos estudo realizado pelo IBGE que, mesmo com dados de 2022, apresenta uma visão geral dessa atividade. Em 2022 existiam 14,6 milhões de MEIs, representando 18,8% dos ocupados, sendo que as três maiores categorias estão trabalhando na atividade de cabeleireiro/a, comércio varejista e restaurantes (Tabela 3). Desse conjunto, 133,8 mil microempresas possuíam empregados/as, o que significa apenas 0,9% no total de MEIs, ressaltando-se que 38% destas microempresas funcionam no mesmo endereço de residência dos seus titulares. Do conjunto dos MEIs, 7,8 milhões pertencem ao sexo masculino e 6,6 milhões ao feminino. Apenas 13,5 mil dos/as microempreendedores/as individuais possuem nível superior e 783.653 são analfabetos/as ou têm apenas o fundamental incompleto. Outra característica importante dos MEIs é o fato de que mais da metade daqueles/as que se inscreveram nessa atividade em 2022 foram demitidos/as de alguma empresa.[6]
Tabela 3 Número de trabalhadores/as em MEIs de acordo com o CNAE, 2022 |
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Cabeleireiros/as e outras atividades |
1.304.187 |
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Comércio Varejista de artigos de vestuário |
990.379 |
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Restaurante e outros serviços de alimentação |
876.004 |
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Serviços especializados para construção |
669.276 |
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Atividades de publicidade |
617.753 |
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Serviços de bufê e outros serviços de comida |
500.092 |
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Manutenção e reparação de veículos |
454.407 |
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Atividades de ensino |
452.092 |
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Transporte rodoviário de carga |
420.668 |
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Comércio Varejista de outros produtos |
335.707 |
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Fotocópias e preparação de documentos |
331.110 |
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Obras de acabamento |
315.284 |
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Comércio varejista de mercadorias em geral |
304.857 |
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Atividades de malote de entrega |
289.160 |
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Confecção de peças de vestuário |
277.805 |
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Outros |
6.438.872 |
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Fonte: IBGE: Estatísticas dos Cadastros do Microempreendedor Individual |
Um dos primeiros aspetos que se pode observar nesta questão é o mito de que no empreendedorismo todos possuem potencial inerente para obter sucesso no mundo empresarial, o que leva grande parte desses/as trabalhadores/as à frustração ao fracassar na empreitada. Os casos de sucesso alardeados pelos meios de comunicação são isolados e não podem ser generalizados. Mas a mídia distorce a realidade e passa a impressão de que basta abrir um pequeno negócio que o espírito empreendedor do/a brasileiro/a transformará a todos num/a capitalista vitorioso/a. Essa propaganda enganosa não revela o fato de que grande parcela das microempresas vai à falência no primeiro ano de vida e, em sua grande maioria, os/as microempreendedores/as recebem em média uma remuneração menor que no mercado de trabalho formal, além do fato de que realizam jornadas de trabalho exaustivas, vivem em constante instabilidade financeira e não possuem direitos nem garantias sociais, não têm férias, nem 13º salário.
Recente pesquisa realizada pela FGV-Ibre (Sondagem do Mercado de Trabalho) possibilita uma melhor compreensão das dificuldades desses/as trabalhadores/as, ao demonstrar que a grande maioria de microempreendedores/as fez tal opção por necessidade. A pesquisa ouviu 1.108 trabalhadores/as autônomos/as e fez a seguinte pergunta: você gostaria de ter um trabalho com carteira assinada? A resposta mostrou que 67,7% deles/as gostariam de estar no mercado formal de trabalho, participação que aumenta à medida em que diminui a faixa de rendimentos das pessoas pesquisadas (Tabela 4). Por exemplo, entre aqueles/as que ganham entre 1 e 3 salários mínimos, esse percentual aumenta para 70,85% e, na faixa de renda de até 1 salário mínimo, encontramos o maior percentual de trabalhadores/as que gostariam de ter um emprego formal (75,6%). Ou seja, o empreendedorismo é uma válvula de escape desesperada para quem está sem emprego e não outra alternativa de vida.
Tabela 4 Trabalhadores autônomos que gostariam de emprego formal (%) |
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Com CNPJ |
54,6 |
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Acima de 3 SM |
56,1 |
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Mulher |
64,4 |
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Ensino superior |
65,6 |
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Brancos, amarelos e demais |
67,3 |
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Pretos e pardos |
68,1 |
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Ensino médio |
68,4 |
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Homem |
69,4 |
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Entre 1 e 3 SM |
70,8 |
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Sem CNPJ |
72,1 |
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Ensino fundamental |
72,4 |
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Até 1 SM |
75,6 |
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Média |
67,7 |
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Fonte: FGV – Ibre |
É importante esclarecer ainda que a natureza do empreendedorismo implica numa série de riscos e incertezas. Ao contrário dos trabalhadores e das trabalhadoras do mercado formal, que têm direitos e salários garantidos, carga horária definida e acesso a benefícios, microempreendedores/as enfrentam o desafio de atuar num ambiente muitas vezes desconhecido, saturado pela concorrência, sem rede de contatos, com recursos limitados e pouco crédito, fatores que os/as tornam vulneráveis diante das adversidades da economia. Na maioria das vezes aqueles/as que se lançam nessa atividade não possuem habilidades ou conhecimento para gerir um negócio e, ao assumir múltiplos papéis, como produzir, vender e gerenciar o negócio, terminam enfrentando grandes dificuldades ou falindo, isso sem levar em conta a baixa produtividades das atividades em que atuam. Em outros termos, enfrentam um mundo muito diferente daquela conjuntura cor de rosa vendida pela mídia corporativa.
Frente unida da desinformação
Diante da crise social, da possibilidade de uma revolta popular e das dramáticas condições de vida do povo brasileiro, as classes dominantes vêm desenvolvendo, em todas as áreas, uma campanha nacional de promoção do empreendedorismo como panaceia para resolver os problemas do país. Nessa frente única ideológica estão de mãos dadas os meios de comunicação, a grande maioria alinhados aos interesses do grande capital, a maioria das redes sociais, as empresas e bancos e as agências governamentais. Todos eles buscam de todas as formas ocultar as causas reais da crise social brasileira, da pobreza estrutural, do desemprego e da miséria, mediante a narrativa do empreendedorismo como se fosse uma varinha mágica capaz de mudar a vida das pessoas, mobilizar as esperanças individuais, libertar trabalhadores e trabalhadoras do jugo dos chefes e patrões e transformá-los/as em donos de seu próprio negócio. Essa campanha desempenha um papel central na difusão e legitimação da ideologia do empreendedorismo, ao romantizar microempreendedores/as individuais como novos heróis e heroínas da economia.
Os meios de comunicação, para glamourizar a atividade empreendedora, apresenta dados distorcidos e argumentos ideológicos cuidadosamente construídos nas peças de publicidade propagandeadas, tais como o sofisma de que os empregos formais estão desaparecendo e que é fundamental empreender para sobreviver nesse novo mundo do trabalho; que é na crise que surgem as grandes oportunidades; que o empreendedorismo está no DNA do brasileiro e você nasceu prá ser grande; que a geração Z está reinventando o mercado com startups bilionárias, este último voltado para a juventude que gosta dos desafios e da inovação. Assim, procuram criar entre os/as trabalhadores/as desesperados/as diante da conjuntura um discurso mitificado de sucesso e riqueza rápida, fato que alimenta uma visão distorcida da realidade cotidiana do mundo econômico e apaga o fato de que essas são atividades de sobrevivência para não morrer de fome, todas elas subordinadas à lógica do capital. O objetivo é blindar o sistema econômico da responsabilidade pelos graves problemas do país.
Outro tipo de propaganda também anuncia: Você é dono do seu próprio destino, faça do limão uma limonada. A mídia procura vender a ideia de que basta a pessoa decidir ser um empreendedor que uma caixinha de surpresa benfazeja se torna realidade do dia para a noite, pois só existe crise para quem não aproveita as oportunidades. E como os programas de TVs sempre apresentam os depoimentos de pessoas que conseguiram “vencer na vida” com seus empreendimentos de sucesso como se fosse representação típica da maioria dos/as empreendedores/as, logo, logo as pessoas desesperadas pelas difíceis condições de vida imaginam – se este conseguiu vencer com seu próprio esforço, eu também vou conseguir. E assim o marketing ideológico das classes dominantes vai se transformando em verdade absoluta e ganhando a adesão de setores cada vez mais vastos da população.
Diariamente, somos bombardeados com a propaganda, principalmente pela TV Globo, enfatizando casos de sucessos de empreendedores/as individuais – da cabeleireira que cresceu e hoje tem uma cadeia de salões de beleza, da vendedora de doces que hoje possui uma franquia; do garçom que fez um curso de gastronomia e agora é dono de um grande restaurante de sucesso ou ainda do jovem que acabou de sair da faculdade, montou sua startup de tecnologia, e agora é proprietário de uma grande empresa de tecnologia da informação. O mote da propaganda é sedutor: “seja dono de seu próprio negócio, patrão de você mesmo”, ou seja, o argumento busca passar a impressão de que, ao empreender, o/a microempreendedor/a individual sai de uma situação de informalidade ou desemprego para uma nova situação de vida, onde deixa de ser subordinado, conquista a liberdade para definir seu próprio horário de trabalho e, acima de tudo, poderá se tornar um capitalista vitorioso e ter até vários empregados trabalhando na sua microempresa.
O próprio governo, nas suas peças publicitárias, estimula essa falácia do empreendedorismo, ao veicular propagandas do tipo o brasileiro não desiste nunca, com o curso certo qualquer um pode empreender. E as agências governamentais, especialmente o Sebrae, difundem que o povo brasileiro é naturalmente criativo, inovador e empreendedor, que o empreendedorismo é responsável pela geração de empregos, pagamento de impostos, movimentação da economia, criando com isso uma vinculação emocional entre o esforço individual e o bem coletivo. Essa propaganda enganosa desconsidera que o sistema capitalista está baseado na desigualdade da sociedade, que essas desigualdades condicionam o acesso aos meios de produção e que a lógica da acumulação é implacável em relação aos trabalhadores e às trabalhadoras.
Vale ainda ressaltar um aspecto muito importante: o fato de que essa difusão do empreendedorismo está inserida no receituário neoliberal, que busca esvaziar o papel do Estado e das políticas públicas e responsabilizar os trabalhadores e as trabalhadoras por suas próprias condições de vida, ou seja, se a pessoa não teve sucesso é porque não se esforçou o suficiente. Coisa muito semelhante às igrejas pentecostais, que justificam o fracasso do que foi prometido porque os fiéis não tiveram fé. Com a estratégia do empreendedorismo, o Estado reduz os gastos com as políticas sociais, cria mercado para bancos, fintechs, plataformas digitais, empresas em geral e, especialmente, para uma infinidade de picaretas (os coachings) que oferecem cursos milagrosos e livros de autoajuda para enganar trabalhadores e trabalhadoras. Assim, a burguesia naturaliza a informalidade, ao inserir de maneira marginal e controlada os/as trabalhadores/as na atividade econômica, desmobilizando a luta sindical e os movimentos sociais.
Em outras palavras, estamos diante de uma ofensiva ideológica da burguesia que vem ganhando cada vez mais espaço junto à população brasileira, com esses argumentos meritocráticos. Ao explorar a insatisfação dos/as trabalhadores/as com as relações de trabalho autoritárias nas fábricas, bancos e empresas em geral, promove o mito de que o/a empreendedor/a é livre das regras do patronato e não está sujeito/a aos ditames do capital. Como nas antigas propagandas de cigarro, onde quem fumava eram os campeões, os propagandistas do empreendedorismo criam uma imagem do/a microempreendedor/a individual como uma pessoa ousada, criativa, que não tem medo das dificuldades e supera todas as adversidades, um símbolo da garra individual e da vontade de mudar a vida porque soube se reinventar.
Marketing para manter a ordem do capital
O objetivo das classes dominantes com esse tsunami propagandístico em relação ao empreendedorismo visa dois objetivos básicos: a) transformar o marketing num poderoso instrumento que busca ocultar os verdadeiros problemas do país, como o desemprego, a informalidade, a fome e a miséria, os baixos salários, a precariedade da saúde e dos serviços públicos; b) transferir para os indivíduos e para o mercado aquilo que é um problema público e uma responsabilidade do Estado. A promessa de ascensão individual através de um negócio próprio ofusca a percepção das injustiças sociais e das relações de exploração, dissolve a identidade de classe e a substitui por valores empresariais de concorrência, meritocracia e superação dos problemas pela via individual. Trata-se de um efetivo instrumento de manutenção da ordem do capital que naturaliza os graves problemas econômicos e sociais e cumpre a função ideológica de desmobilizar a luta coletiva, neutralizar a luta de classes e regular o exército industrial de reserva para manter as necessidades do capital.
Esse marketing se enquadra perfeitamente numa ofensiva ideológica que busca safar a burguesia das responsabilidades pela crise social e econômica, ao desconsiderar que os problemas estruturais do capitalismo brasileiro são resultantes da própria lógica da acumulação do capital, ao mesmo tempo em que procura apresentar a crise social como resultado do fracasso, da falta de iniciativa, criatividade e ousadia dos indivíduos. Desta forma, desloca a responsabilidade por esses problemas para os próprios prejudicados, ou seja, dos capitalistas para os indivíduos e do Estado para o mercado, de forma a manter o controle de sua hegemonia e reproduzir a dominação. Além disso, o discurso do empreendedorismo e da ascensão pelo esforço individual atua tanto como um amortecedor ideológico quanto um instrumento político para os cortes de gastos nas áreas sociais. Afinal, se todos têm oportunidade para crescer, o Estado não teria obrigação de realizar políticas de proteção social – que o mercado se encarregue de regular as relações sociais.
Um dos pilares da ideologia do empreendedorismo é manter a lógica da exploração através dessas novas formas, ao tentar obscurecer as relações e os conflitos entre as classes: agora não há mais empregados/as, mas colaboradores/as ou prestadores/as de serviços; não há mais salários, mas renda variável, de acordo com o esforço individual de cada empreendedor/a; não há mais jornada de trabalho regulamentada: cada um faz a sua própria jornada e, como o/a empreendedor/a procura se esforçar ao máximo para obter maior renda, termina realizando longas jornadas de trabalho (muito maiores do que se estivesse trabalhando numa empresa); também já não há mais direitos garantidos pela CLT, como descanso semanal remunerado, previdência, salário garantido, 13º salário; agora a remuneração depende do esforço de cada microempreendedor/a.
Dito de outra forma, a ideologia do empreendedorismo faz parte de uma engenharia social cujo objetivo é adaptar a população mais pobre ao conformismo e à precariedade das condições sociais e substituir a luta por direitos por uma disputa de cada indivíduo pela sua sobrevivência pessoal. Nessa conjuntura, a burguesia torna permanente o exército industrial de reserva, naturaliza a precarização, a informalidade, a ausência de direitos e garantias para os trabalhadores e as trabalhadoras, de forma a manter o processo de exploração com novos rostos. Além disso, tal estratégia tem uma vantagem adicional: essa massa de reserva contribui indiretamente para manter a disciplina social do capital, fragilizar as negociações coletivas e conter os salários de quem está empregado. É como se a burguesia estivesse dizendo para os trabalhadores e as trabalhadoras: não reivindiquem e não lutem porque, do contrário, serão substituídos/as, afinal tem milhões na fila para ocupar o seu posto de trabalho.
Um dos efeitos mais danosos dessa lógica empreendedora é fragmentar ainda mais a classe trabalhadora e dificultar a organização coletiva. Em vez de milhares de pessoas trabalhando em uma fábrica, no comércio ou no sistema financeiro, o que o empreendedorismo provoca é a maior dispersão da classe trabalhadora, numa espécie de salve-se quem puder, onde uma massa de milhões de precarizados/as está sempre à sua disposição tanto para prestar serviços a baixo custo, sem direitos trabalhistas, previdenciários, FGTS, férias, 13º salário, quanto para servir ao capital em atividades complementares, desorganizados/as e sem perspectiva de classe. Esse processo perverso dissolve a solidariedade de classe, enfraquece os sindicatos e movimentos sociais, reduz a possibilidade de reivindicações coletivas, minimiza as possibilidades das lutas coletivas e fortalece o domínio da burguesia.
A realidade brasileira é um terreno fértil para compreendermos, de forma bastante crua, que o empreendedorismo é um projeto de burguesia para esconder a exploração capitalista, esvaziar os espaços de organização da classe trabalhadora e obrigar os/as trabalhadores/as precarizados/as e sem direitos a competirem entre si por migalhas. Em termos práticos, o/a empreendedor/a é um/a trabalhador/a que foi demitido/a, perdeu seus direitos, está subordinado/a à lógica do capital e assumiu os riscos de uma aventura na qual não controla os custos nem os preços do que produz. Ao propagandear o empreendedorismo como solução, a burguesia transfere para o/a trabalhador/a a gestão de sua inserção no mercado, os riscos de sua nova atividade e coloca em sua própria conta o destino da aventura empreendedora. Ou seja, as classes dominantes transformam o empreendedorismo na proteção de seus privilégios, numa ferramenta de controle social e num instrumento de administração da miséria.
1 Sebrae – GEM (Global Entrepreneurship Monitor). Pesquisa sobre empreendedorismo no mundo, março 2024.
2 Disponível em https://brasil61.com. Acesso em 23 de abril de 2025.
3 Ministério do Empreendedorismo, da Microempresa e de empresas de Pequeno Porte. Mapa das empresas, 2024.
4 IBGE. PNAD Contínua, 2024.
5 Disponível em https://g1.globo.com. 7 em cada 10 trabalhadores ganham até dois salários mínimos, mostra levantamento. Acesso em 24 de abril de 2025.
6 IBGE: Estatística dos Microempreendedores Individuais, 2022.