O neoliberalismo e a ditadura das finanças
Charge: Mauro Iasi
Edmilson Costa*
O neoliberalismo é um projeto de poder das classes dominantes e a ditadura das finanças é a maneira como se operam os interesses do grande capital. São irmãos gêmeos na engrenagem da lógica regressiva da oligarquia financeira que reconfigurou as estruturas capitalistas desde o final da década de 70 do século passado, com Reagan e Thatcher, quando o setor mais reacionário da burguesia internacional passou a hegemonizar o poder nos países centrais. No Brasil, esse processo só veio a ocorrer a partir do início da década de 90 com a eleição de Collor, conforme já explicamos em outros artigos. Trata-se de um projeto no qual o setor rentista do capital financeiro sequestrou o conjunto das decisões econômicas, submeteu os estados nacionais aos ditames dos mercados financeiros, colocou o Banco Central a serviço de seus interesses, comandou o processo de desregulamentação da economia, flexibilizou as leis trabalhistas, implementou a abertura da economia, privatização das empresas públicas e definiu as diretrizes gerais das políticas neoliberais implantadas nos diversos países em praticamente todos os continentes.
Em termos práticos, a ditadura das finanças se expressa de várias formas e em todos setores da vida social, sempre com o objetivo de manter a hegemonia das finanças e o controle sobre as ações do Estado. Nos regimes neoliberais o centro da acumulação capitalista é deslocado do processo de produção para a órbita das finanças, sob o dogma do combate à inflação e da responsabilidade fiscal, tendo a dívida pública como uma das principais engrenagens do rentismo institucionalizado. Trata-se de uma arquitetura econômico-financeira que penaliza a produção, destrói a capacidade de investimento do Estado, reduz o investimento privado, levando os países a um baixo crescimento econômico, ao desemprego, à redução do consumo das famílias. Ao promover a supremacia do capital financeiro, da desregulamentação da economia e da austeridade fiscal, o neoliberalismo cria um conjunto de armadilhas econômicas e sociais que limitam o dinamismo da economia e promovem a especulação com o objetivo de privilegiar a valorização dos ativos financeiros e os rentistas em geral.
Com essa configuração, a política econômica deixa de ser um instrumento de promoção do desenvolvimento e passa a ser operada visando garantir a rentabilidade do capital financeiro. Ou seja, as principais variáveis da economia, como taxa de juros, taxas de câmbio, inflação e estrutura da dívida pública deixam de ser orientadas no sentido de atender as necessidades da população para satisfazer os interesses dos detentores de títulos da dívida, a sua grande maioria em poder do sistema financeiro e dos investidores de alto poder aquisitivo. Para controlar o destino da economia, as classes dominantes se apoderam do Banco Central, sob o argumento de que este deve ser uma instituição técnica e operar com independência de forma a evitar a influência de políticos ou governos populistas em suas decisões. Dessa forma, o Bacen se transforma em uma cidadela dos interesses dos rentistas, mediante a definição das metas de inflação impraticáveis, cujo objetivo é pressionar permanentemente as autoridades monetárias a elevar as taxas de juros e manter a lucratividade do capital ocioso.
Outro dos elementos da ditadura das finanças é a privatização das empresas públicas, a partir da qual as classes dominantes amealham o patrimônio público, na maioria das vezes a preços abaixo do valor de mercado, sob o argumento da eficiência empresarial e ineficiência do Estado. Ressalta-se que muitas dessas empresas, antes de serem privatizadas, são saneadas com recursos públicos para torná-las atraentes ao mercado. Não se pode esquecer ainda que essas empresas foram construídas com recursos públicos, ao longo de décadas, e sua transferência para o setor privado representa a reconfiguração do papel do Estado e supressão dos bens coletividade. Dessa forma, o que termina ocorrendo na prática é a transferência de setores estratégicos e monopólios naturais da economia para as mãos privadas, que se transformam em monopólios privados, reduzindo assim a capacidade do Estado de utilizar as empresas públicas para coordenar políticas industriais, tecnológicas, regionais ou sociais. Além disso, o controle geralmente leva à redução da qualidade dos serviços públicos por parte dessas empresas já privatizadas, com o aumento abusivo das tarifas.
No Brasil, as consequências dessas políticas neoliberais tiveram como consequência a redução brusca do crescimento econômico, cujo resultado, de 1991 até hoje, é um crescimento médio anual do PIB de cerca de 2,5% ao ano, quando no período entre 1947 e 1980 esse mesmo crescimento foi de cerca de 7% na média anual. Trabalhadores, trabalhadoras e pensionistas são os mais prejudicados, mediante as reformas trabalhistas e da previdência, a desregulamentação de direitos, a precarização do trabalho e a queda nos salários, além da informalidade que atualmente atinge mais de 40 milhões de pessoas. No que se refere à previdência, as seguidas reformas ampliaram a idade mínima e o tempo de contribuição para a aposentadoria e reduziram direitos, fatos que se tornaram um campo fértil para o crescimento da previdência privada. A ditadura das finanças também se refletiu na precariedade dos serviços públicos, especialmente na saúde, educação, transporte e infraestrutura e pode-se dizer mesmo que esse é um sistema que bloqueia o desenvolvimento do País e o futuro de várias gerações.
Além disso, a oligarquia financeira se tornou uma ameaça às liberdades democráticas e à classe trabalhadora porque mantém um cerco permanente à política econômica, saqueando o fundo público, impondo políticas antipopulares e conspirando contra qualquer tipo de medida que favoreça aos trabalhadores e às trabalhadoras, inclusive se aliando ao fascismo para manter seus interesses, como se verificou no governo Bolsonaro. Essa oligarquia construiu um aparato político, institucional e midiático, que a blinda e repercute seus interesses diariamente numa luta ideológica permanente para a naturalização da política neoliberal, buscando tratar como inimigos todos aqueles que criticam seus postulados. Mediante financiamento e cooptação, conseguiu consolidar firmemente um aparato no Congresso e no Senado, nos meios de comunicação e nas redes sociais, nas instituições educacionais e nas várias esferas da sociedade.
Obedecendo ao Consenso de Washington
A partir do final da década de 80, como vários países ainda não tinham aderido plenamente ao neoliberalismo, a ditadura das finanças se tornou mais sistematizada a partir do chamado Consenso de Washington. Esse “consenso” foi definido em um seminário realizado no Instituto Internacional de Economia, sob a liderança de John Williamson, com o patrocínio do Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, grandes bancos e corporações transnacionais, cujo objetivo era fazer um balanço da agenda neoliberal no mundo e propor medidas que pudessem expandir o projeto para regiões que ainda não tinham se incorporado à nova agenda do capital, especialmente na América Latina. Nesse encontro, foi aprovado um programa de dez pontos que deveriam servir como orientação global e condição para que os países em crise pudessem receber empréstimos do FMI e Banco Mundial. Como se pode observar mais abaixo, esse programa foi implementado por todos os governos brasileiros a partir de 1990, quer os tipicamente de direita quer os sociais-liberais.
Esses são os dez pontos do Consenso de Washington:
1) Controle dos déficits públicos e disciplina fiscal.
2) Redução dos gastos públicos, priorizando os setores de saúde e educação.
3) Reforma tributária, com base em sistemas simplificados.
4) Estabilidade da inflação e taxas de juros definidas pelo mercado.
5) Taxas de câmbio competitivas.
6) Liberalização comercial, com redução de tarifas e barreiras alfandegárias.
7) Abertura das economias ao investimento estrangeiro.
8) Privatização das empresas públicas.
9) Desregulamentação da economia, para reduzir entraves ao mercado.
10) Garantia dos direitos de propriedade.
A ditadura das finanças pode ser considerada uma forma moderna de dominância econômica do capital financeiro em relação ao Estado e à sociedade. Trata-se de um processo de dominação de classe na qual deixa de ser condição sine qua non a utilização de tanques e canhões, prisões, torturas ou assassinatos políticos, como nas ditaduras clássicas, priorizando a utilização de um conjunto de mecanismos monetários-financeiros que subordinam as decisões dos governos à lógica dos interesses e da rentabilidade da oligarquia rentista, em detrimento dos interesses de trabalhadores e trabalhadoras, da soberania nacional e da justiça social. Essa ditadura opera a partir das regras definidas no Consenso de Washington, que incluem ainda o regime de metas de inflação, a autonomia do Banco Central, o endividamento público e as altas taxas de juros, câmbio flutuante e a austeridade fiscal. Nesse artigo vamos tratar apenas do regime de metas de inflação, da autonomia do Banco Central e da dívida pública. Em outros artigos trataremos dos outros assuntos. Vejamos como funcionam alguns desses mecanismos.
O regime de metas de inflação. Implantado no Brasil a partir de 1999, esse regime é regido por metas inflacionárias, que são definidas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) e operadas pelo Banco Central, tendo como âncora a política de taxas de juros. Essas metas, ao serem estabelecidas, obrigam o governo a cumpri-la, podendo variar geralmente um ponto percentual para cima ou para baixo do centro da meta. Tal modelo está baseado no dogma de que a inflação é o principal problema da economia e que os governos devem fazer todo o possível para mantê-la dentro dos padrões estabelecidos. Quando o Banco Central avalia que a inflação está saindo do controle porque, segundo o Bacen, o governo está gastando mais do que arrecada e as pessoas estão consumindo em demasia, então o Banco Central aumenta as taxas de juros para reduzir esse consumo agregado e desacelerar a economia nos patamares definidos pelo CMN.
Esse mecanismo está combinado com a autonomia do Banco Central. Alardeada pelo sistema financeiro como um mecanismo “técnico” para evitar a gastança governamental e a influência política nas decisões monetárias, essa autonomia se transforma num instrumento poderosíssimo de captura institucional da política monetária pelo sistema financeiro. Dessa forma, a política de juros do Banco Central passa a ser definida de acordo com as expectativas do mercado. Para se ter uma ideia de como isso é operado, basta dizer que semanalmente o Bacen publica o Boletim Focus, com as previsões para as principais variáveis da economia, como inflação, taxa Selic, câmbio, PIB, entre outros. Esse boletim é feito a partir de uma pesquisa realizada junto a cerca de 170 instituições financeiras, que inclui bancos, gestores de recursos, distribuidoras, corretoras, consultorias e até empresas do setor real da economia. As projeções servem como termômetro para as decisões do Bacen, ou seja, entrega-se o galinheiro para as raposas se refastelarem.
Além disso, outro aspecto importante da ditadura das finanças é o fato de que a independência do Banco Central não significa “neutralidade técnica” como a mídia costuma alardear. Na prática esse modelo de gestão responde muito mais aos interesses do mercado financeiro do que as demandas da economia real e seus diretores, temendo perder a confiança do mercado, do qual são oriundos, transformam-se em marionetes da oligarquia financeira. Ao priorizar a política de austeridade fiscal e altas taxas de juros, o chamado Banco Central Independente legitima a financeirização da economia e a especulação em detrimento da produção e do emprego no país. Existe ainda uma verdadeira promiscuidade público-privada na direção do Banco Central, uma vez que a grande maioria de seus executivos é oriunda dos grandes bancos privados, fundos de investimento ou do sistema financeiro em geral e sempre quando terminam seus mandatos retornam felizes ao mercado financeiro para dar continuidade à defesa dos interesses dos rentistas, só que com muito mais informações privilegiadas sobre os meandros da máquina pública.
As metas de inflação definidas pelo Conselho Monetário Nacional (no qual todos fazem parte do governo atual), entidade à qual o Bacen está subordinado, são irrealistas porque fixam patamares inflacionários muito baixos (atualmente 3% ao ano), o que se torna inalcançável em função das particularidades da economia brasileira e suas relações com a economia internacional. Segundo o ex-ministro Guido Mantega, em entrevista ao canal 247, essa meta está fora dos padrões históricos brasileiros. “Nos 27 anos de metas, a inflação foi de 6,3%, com meta fixada em 4,5%. A inflação de agora está em alta, com uma meta muito baixa, fora da realidade histórica do país”. Além disso, as taxas de juros não têm condições de influir decisivamente na dinâmica da inflação, pois não controlam as condições climáticas do país (emergência de secas ou de enchentes), os preços das commodities, que são definidos internacionalmente, nem os preços administrados pelo governo, como combustível e energia. Em outros termos, esses fatores estão fora do alcance da política monetária, o que significa dizer que perseguir uma meta nesse patamar não terá nenhuma capacidade de combater as causas da inflação.
Nessa conjuntura onde o Bacen está voltado principalmente para o combate à inflação, a questão do investimento, do crescimento econômico e do emprego se torna uma variável derivada da política ortodoxa, o que mais uma vez deixa evidente que a autoridade monetária não tem nenhum compromisso com o desenvolvimento do país. Prova disso é que, nos últimos 35 anos de política econômica neoliberal, as taxas de crescimento foram medíocres, ficando em torno de 2,5% na média anual, uma conjuntura muito diferente do período 1947-1980, quando o PIB cresceu a uma média de 7% ao ano. O crescimento medíocre nessas mais de três décadas de neoliberalismo também foi um dos principais responsáveis pela falta de uma política industrial e a reprimarização da economia e pelo desemprego estrutural, cuja expressão mais dramática são os 40 milhões na informalidade e a falácia do empreendedorismo.
A armadilha da dívida interna
A dívida interna brasileira se transformou no instrumento central de expropriação de fundo público por parte dos rentistas, bem como no principal instrumento que garroteia a economia brasileira desde o início do período neoliberal. Enquanto o governo é permanentemente acusado de gastar demais, principalmente nas áreas sociais, na prática o Estado transfere anualmente centenas de bilhões de reais para a oligarquia financeira por conta do pagamento dos juros. Para se ter uma ideia da sangria de recursos dos cofres públicos, basta verificarmos que a Dívida Bruta do Governo Federal evoluiu de maneira impressionante nos últimos dez anos, passando de R$ 3,9 trilhões em 2015 para R$ 9,1 trilhões em 2024, ou de 65,% do PIB em 2015 para 76,1% em 2024 (Tabela 1). Vale ressaltar que a absoluta maioria dessa dívida é tipicamente financeira, em função do aumento dos juros e refinanciamento das amortizações, ou seja, esse endividamento não foi acumulado para construir estradas, hospitais, equipamentos para educação e saúde, entre outros, mas simplesmente para aprisionar o governo num esquema que beneficia os detentores de títulos da dívida pública.
Tabela 1. Dívida Bruta do Governo Geral em bilhões e como
porcentagem do PIB – 2015-2024 (R$ bilhões)
Valor % do PIB
2015 3.928 65,5
2016 4.378 69,8
2017 4.855 75,3
2018 5.272 75,3
2019 5.500 74,4
2020 6.616 86,9
2021 6.967 78,3
2022 7.225 73,5
2023 8.100 74,4
2024 9.100 76,1
Fonte: Até 2022, Portal do TCU. Outros anos – Bacen
Essa ciranda financeira é alimentada mensalmente pelo pagamento do serviço da dívida num mecanismo perverso onde os rentistas pressionam o Banco Central por aumento da taxa Selic, sob o argumento de que se não aumentar os juros a inflação ficará fora de controle. O próprio Banco Central contribui para essa ciranda mediante a pesquisa realizada semanalmente junto ao sistema financeiro, em que as instituições dos rentistas realizam suas previsões sobre a conjuntura brasileira. Tais previsões, ao serem veiculadas pelos meios de comunicação, reforçam o lobby do sistema financeiro e o resultado desse processo é o aumento da taxa de juros pelo Banco Central, que na prática se transformou num aparato dos rentistas. Ou seja, os próprios instrumentos do Estado passam a operar como uma estrutura subordinada aos interesses dos mercados financeiros em detrimento do conjunto da economia.
Para se observar como os rentistas se apropriam do fundo público basta dizer que somente nos últimos seis meses, de outubro de 2024 a março de 2025, os pagamentos de juros corresponderam a 499,1 bilhões de reais, numa média de R$ 83,1 bilhões mensais (Tabela 2). Portanto, parece até piada o governo fazer pacotes de ajustes de R$ 30 bilhões quando os juros mensais da dívida superam mais de duas vezes o montante de pagamentos mensais. Na verdade, o governo deveria fazer o ajuste em relação às altas taxas de juros e ao pagamento dos serviços da dívida, porque esse mecanismo significa uma brutal transferência de recursos do fundo público da sociedade, especialmente dos mais pobres, para uma minoria de rentistas, ou melhor, para os grandes bancos, instituições financeiras nacionais e internacionais, gestores de fundos de investimentos e pessoas físicas de alta renda. Enquanto isso, trabalhadores, trabalhadoras e o povo pobre tornam-se refém dos ajustes fiscais permanentes que comprimem os investimentos, os gastos sociais e levam o país à recessão.
Tabela 2. Juros nominais mensais e juros acumulados nos últimos 12 meses
R$ milhões. Nov/24-mar./25
Meses Acumulado
Out./24 116,6 869,3
Nov./24 92,5 918,2
Dez./24 96,1 950,4
Jan./25 40,4 918,2
Fev./25 78,3 924,0
Mar./25 75,2 935,0
Fonte: Banco Central – Estatísticas Fiscais
Os arautos do mercado costumam apresentar a dívida pública como uma fatalidade e uma exigência técnica de financiamento do Estado para garantir a sustentabilidade da economia e a credibilidade dos mercados. Acontece que a dívida brasileira não tem nenhuma relação com investimento produtivo ou gasto social: trata-se apenas de um instrumento que alimenta a dependência ao capital parasitário. O caso brasileiro é um exemplo típico da ditadura financeira porque o mecanismo da dívida está estruturado para remunerar permanentemente o capital ocioso, mediante taxas de juros que frequentemente estão situadas entre as maiores do mundo, tornando-se assim um dos sistemas mais escandalosos de remuneração do capital financeiro no mundo. Trata-se, na verdade, de uma verdadeira engenharia da desigualdade, pela qual se naturaliza o pagamento dos juros como algo sagrado, intocável e a austeridade como elemento necessário para o bom desempenho da economia.
O que os propagandistas neoliberais escondem é o fato de que a dívida é uma bomba de sucção que sequestra cada vez mais amplas parcelas do orçamento para pagamento dos rentistas e impõe um teto de gastos decrescente para o investimento social em saúde, educação, infraestrutura, ciência e tecnologia, segurança alimentar e áreas sociais em geral. O resultado dessa dinâmica perversa é a brutal concentração de renda do país, os milhões que estão na informalidade, os outros tantos milhões empreendedores de si mesmos, a precarização dos serviços públicos e o caos no transporte urbano, os salários comprimidos, além das chamadas reformas que cada vez mais retiram direitos trabalhistas e previdenciários dos/as assalariados/as e pensionistas. Ou seja, esse mecanismo da dívida está a serviço de uma construção social que privilegia os ricos e poderosos, impondo uma camisa de força ao desenvolvimento do país e tornando a população brasileira cada vez mais pobre.
Neoliberalismo e fascismo, irmãos gêmeos
Desde a década de 80 do século passado o capitalismo passou a se estruturar em novas bases (no Brasil a partir da década de 90) e rompeu com a política keynesiana que então vigorava nos países centrais, passando a atuar mediante os postulados do mercado, como a dominância financeira, a austeridade fiscal permanente, a desregulamentação, as privatizações, a flexibilização dos direitos e garantias dos trabalhadores das trabalhadoras, as terceirizações e o ataque aos sindicatos. Com a promessa enganosa de mais liberdade para os indivíduos, mas eficiência empresarial e progresso econômico a partir da retirada do Estado da economia, o neoliberalismo se transformou na ideologia dominante na grande maioria dos países do planeta. Nessa perspectiva, os agentes econômicos neoliberais desmontaram os direitos sociais, destruíram a seguridade social, os empregos estáveis, os serviços públicos e esvaziaram a política democrática.
À medida em que o neoliberalismo avançava, tornava-se mais clara sua postura irracional e autoritária, principalmente quando trabalhadores e trabalhadoras começaram a protestar contra as políticas neoliberais. Com a dominação neoliberal como projeto de consenso estava cada vez mais sendo questionada, os agentes neoliberais passaram a flertar com o fascismo e implementar uma política estatal de repressão e criminalização dos movimentos sociais e construção de inimigos internos, como imigrantes, comunistas, professores, jornalistas, artistas, cientistas, além da promoção da política de ódio e violência, numa guerra preventiva contra a classe trabalhadora, a juventude, contra os povos indígenas, negros e negras, quilombolas e todos os movimentos que resistiam ao seu discurso. Essa conjuntura não é nenhuma novidade histórica, pois toda vez que o capitalismo está em crise, apela para o fascismo como tropa de choque especial para defender seus interesses.
Em outras palavras, o aumento do fascismo em todas as partes do planeta pode ser considerado como uma espécie de máscara de ferro do capital quando sua dominação não pode mais ser exercida apenas com os mecanismos do mercado e da ideologia neoliberal. Mesmo levando em conta que o fascismo atual não é idêntico ao fascismo clássico, compartilha com o velho fascismo muitos de seus elementos estruturantes, como o culto à autoridade, a recusa à razão, as críticas à ciência, ao mesmo tempo em que busca naturalizar a violência, o ataque às liberdades civis, a militarização dos territórios contra qualquer tipo de contestação política, além de desenvolver uma guerra cultural a tudo aquilo que a humanidade construiu de progressista em toda a nossa história recente. Nessa perspectiva, a repressão se torna necessária para impedir que a raiva social latente se converta em consciência de classe e ação revolucionária.
Quer queiram ou não os ingênuos, o liberalismo é cúmplice do fascismo porque, ao desmantelar as conquistas históricas da classe trabalhadora, necessita de mecanismos de contenção diante de uma possível resistência coletiva. Numa situação em que os salários são rebaixados, os trabalhadores e as trabalhadoras perdem seus direitos e seus empregos, os serviços públicos se tornam precários e a miséria se alastra entre vastos setores da população, o braço repressivo do fascismo é sua última cidadela para impedir a revolta popular. Por isso, o projeto neoliberal só pode ser aplicado plenamente com muita repressão, o que explica a aliança estreita entre o neoliberalismo e o fascismo contemporâneo e o crescimento do fascismo no mundo. Dito de outra forma, o fascismo é o rosto bárbaro do grande capital quando as classes dominantes já não conseguem hegemonizar a sociedade pelo consenso.
*Edmilson Costa é doutor em economia pela Unicamp e Secretário Geral do PCB